A Floresta de Carne e Sangue

2416 Words
ㅤㅤㅤㅤFazem anos que Sirandela não vê o brilho de um Sol de Primavera. O Inverno Infinito é nossa maldição c***l, que nos castiga com um frio do qual ainda não me acostumei. ㅤㅤㅤㅤA fogueira que ascendi para me aquecer nessa manhã ofuscada pela nevasca arde tanto quanto a água gelada do rio. A chama pequena agonizando sob lufadas fortes do vento. O fio de fumaça quase morrendo. ㅤㅤㅤㅤQueria poder ascender uma maior. O calor seria bom, acalmaria minha angustia e descongelaria a ponta dos meus dedos. Mas não posso me dar esse luxo, porque sei que a essa altura A Casa da Raposa já deve estar me rastreando. ㅤㅤㅤㅤDesaparecida. Eles diriam. Não uma ladra, ou uma traidora. ㅤㅤㅤㅤPorque seriam palavras fortes demais para levar ao povo. Para descrever a filha mais nova que roubou o símbolo de poder do pai e matou o irmão. ㅤㅤㅤㅤO que você fez, Branca? ㅤㅤㅤㅤSó a lembrança já faz o gosto amargo do vomito subir por minha garganta. ㅤㅤㅤㅤJá fazem dias que estou correndo e os olhos cinzentos de Fosco ainda surgem na escuridão quando pisco. Ainda sinto seus raios formigando minha pele, a lamina da Estigma rasgando sua carne, o cheiro do seu sangue sendo levado pela chuva, as pernas caindo a minha frente enquanto o tronco despencava para dentro do Rio. ㅤㅤㅤㅤRaposa estúpida. ㅤㅤㅤㅤQuanto ódio eu sinto. ㅤㅤㅤㅤQuanta tristeza fere meu coração toda vez que deixo os pensamentos daquele dia tomarem conta da minha mente. Não deveria ter acontecido isso. A ultima coisa que eu queria era m***r um dos meus irmãos. ㅤㅤㅤㅤMas ele não me deixou explicar. Ele estava com raiva demais. E atacou de forma desajeitada e precipitada. E a espada parecia tão leve em minha mão. ㅤㅤㅤㅤE agora o problema que eu tentei evitar fugindo da Corte do meu Pai se tornou um m*l terrível. E nenhum dos outros irá me perdoar. ㅤㅤㅤㅤEles amavam Fosco. ㅤㅤㅤㅤVomito sobre a última chama da fogueira. ㅤㅤㅤㅤA Casa da Raposa deveria ser eterna e intocável. O que deu errado? ㅤ ㅤ ㅤㅤ ㅤㅤㅤㅤMeu peito dói. ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤㅤㅤPor um momento penso ser os sentimentos rasgando caminho para fora, mas não. ㅤㅤㅤㅤMe levanto, meus movimentos são rápidos e desesperados quando me jogo para detrás da árvore mais próxima. ㅤㅤㅤㅤO cheiro de sangue vem primeiro, depois a dor aumenta e só então vejo o que me feriu. Não eram os sentimentos, mas sim uma flecha de penugem branca. Cravada no meu ombro, onde o metal da armadura não protege. ㅤㅤㅤㅤNão é possível, eles já me encontraram? ㅤㅤㅤㅤNão tenho tempo para pensar. Deixo os instintos me moverem e empunho a lamina maldita que ceifou a vida do meu irmão. Sem meu Manifesto ela é tudo o que tenho agora. ㅤㅤㅤㅤO problema é que estou ferida por dentro, cansada, enjoada e com os instintos endurecidos pelo frio. Levo algum tempo para sentir o cheiro de algo diferente no meio do vento forte e quanto finalmente consigo já é tarde demais. Uma adaga afiada toca meu pescoço. ㅤㅤㅤㅤ— Não foi um disparo de execução, foi de aviso, Alteza — a voz é um susurro encoberto por uma mascara de tecidos. — Por favor, não torne isso pior do que já está sendo. ㅤㅤㅤㅤAs silhuetas surgem do véu pálido da nevasca. Trajando pelagens brancas costuradas sob couro e metal, camuflados nas cores do Inverno. Eles vão surgindo no meu campo de visão a medida que saem de seus esconderijos e os que permanecem ocultos se revelam para mim pelo som da sua respiração. ㅤㅤㅤㅤNão há outras cores além do branco, o que indica que não são soldados de qualquer Raposa, mas sim os meus soldados. ㅤㅤㅤㅤ— Vocês feriram sua princesa e agora apontam uma faca para o pescoço dela. Devo recompensa-los por sua coragem ou puni-los por sua burrisse? — minha voz soa com o tanto certo de agressividade. ㅤㅤㅤㅤ— São as tradições da sua Casa, Alteza. A Senhora as conhece bem — ele diz. — Somos soldados juramentados. Se nossa Princesa General é desonrada, nós também somos. Só que nossas vidas não são tão importantes quanto a dela. ㅤㅤㅤㅤEu me levanto, com a lamina da sua adaga riscando meu pescoço. Olho em seus olhos. Não posso fraquejar. ㅤㅤㅤㅤ— Entendo que esteja seguindo ordens, soldado. Mas não vou permitir que me ameace. Abaixe a arma e me diga o nome do homem que feriu minha carne. ㅤㅤㅤㅤ— Eu sou o Coelho. Lutei sob seu comando quinze vezes, em seu nome já fiz coisas muito piores do que simples feridas na carne. ㅤㅤㅤㅤA voz do soldado carrega um ódio amargo. Sinto que não é por causa das tradições, ou pelo que eu fiz. Imagino que ele esteja gostando de apontar uma faca para mim. ㅤㅤㅤㅤ— Pelo visto foi um soldado leal. E eu peço sua lealdade uma última vez. ㅤㅤㅤㅤ Não posso fraquejar, mas também não quero lutar com eles. Ainda não superei o que fiz com Fosco e não preciso de mais sangue em minhas mãos. ㅤㅤㅤㅤ— E então dirá que não pode voltar — Coelho rosna, pressionando com mais força a lamina contra minha pele. — Tentará nos convencer de que sua traição vale nossas vidas e esperaremos que a Casa da Raposa veja com bons olhos o fracasso. ㅤㅤㅤㅤLá está o odio em suas palavras outra vez. Duvido que qualquer coisa que eu diga vá convence-lo. ㅤㅤㅤㅤRespiro fundo. ㅤㅤㅤㅤ— Eu perdi meu irmão, Coelho. Porque ele se precipitou e não me deixou explicar o que estava acontecendo. Por favor, não cometa o mesmo erro. ㅤㅤㅤㅤ— Seria um de centenas de erros que já cometi em seu nome. ㅤㅤㅤㅤSangue dourado escorre do ponto em que sua lâmina me toca. E percebo que é inútil tentar conversar, Coelho já escolheu como quer morrer. ㅤㅤㅤㅤEntão ataco. ㅤㅤㅤㅤ Eu poderia corta-lo em pedaços sem dificuldade, mas decidi tomar mais cuidado agora, preciso sair daqui sem m***r. ㅤㅤㅤㅤUm unico movimento silencioso. A espada desliza por seu pulso e antes que ele perceba o que aconteceu agarro sua armadura e o jogo para dentro do rio às minhas costas, como se não pesasse nada. A mão que me ameaçou cai aos meus pés, ainda agarrada a adaga, agora decepada. ㅤㅤㅤㅤSem m***r. ㅤㅤㅤㅤAh arqueiros entre os Soldados Brancos. Camuflados em seus esconderijos há uma distância segura. Calculo que tenho meio segundo antes de começarem a disparar as flechas e quando a primeira delas corta o ar em minha direção já estou avançando sobre o Soldado mais próximo. ㅤㅤㅤㅤSem m***r. ㅤㅤㅤㅤRepito em minha mente. Preciso reforçar esse pensamento porque a lamina da Estigma é extremamente leve, um movimento mais brusco e posso partir um homem ao meio facilmente. E sei bem disso. ㅤㅤㅤㅤArranco a perna de um. ㅤㅤㅤㅤAs flechas são grandes e pesadas, chiam no ar, invisiveis para qualquer um menos para mim. Consigo desviar delas sem pensar muito. Eu poderia corta-las ao meio, ou parar com as maos nuas se tivesse mais tempo, mas preciso ser rapida. ㅤㅤㅤㅤ Braços decepados voam ao meu redor e o sangue jorra em meu rosto. ㅤㅤㅤㅤSe todos da minhas tropas estivessem aqui não caberiam na floresta. Eram milhares de soldados. Então preciso considerar que só algumas dezenas estão nessa emboscada. E que terei que enfrentar todos para sair daqui com vida. ㅤㅤㅤㅤEncontro os arqueiros posicionados em pontos opostos, muitos deles. Sobre as arvores, atrás dos troncos, entre arbustos congelados. A primeira das flechas a me atingir faz nada além de um corte na bochecha e eu vanço, rasgando tudo o que encontro pelo caminho. Preciso me livrar deles primeiros. ㅤㅤㅤㅤSem m***r. ㅤㅤㅤㅤSou mais rapida, sou mais forte, meus movimentos são precisos, os cortes leves como passar a lamina pela água. Chego no arqueiro mais perto em um piscar de olhos, sobre uma árvore alta e ele despenca do galho com apenas um soco. Mas consigo apanhar sua arma com uma flecha, que utilizo para derrubar o arqueiro mais distante, do outro lado do lago. ㅤㅤㅤㅤOs que sobraram não param de disparar, mas agora posso dar uma função para suas flechas, apanho elas quando passam por mim e usando o arco mando de volta na mesma direção. Um a um os arqueiros vão caindo. Mesmo camuflados, mesmo a distância, os soldados não tem nem chance. ㅤㅤㅤㅤSem m***r. ㅤㅤㅤㅤA corda do arco se rompe sob minha força, mas já não há mais arqueiros escondidos. Então volto para o chão, um borrão branco no meio da neve também branca. A lamina da Estigma pingando sangue enquanto arranco braços, pernas voam, entranhas se derramam pelo chão. Troncos de arvores despencam ao meu redor. ㅤㅤㅤㅤOs gritos aumentam, pedidos de socorro distantes, os soldados tentando fugir desesperadamente. E não posso parar. ㅤㅤㅤㅤPreciso chegar no final dessa floresta congelada. E no que há depois dela. No ponto mais distante do Reino do meu pai. ㅤㅤㅤㅤTropeço em uma cabeça decepada. Apesar de não saber como ela chegou ali. E quando tento firmar meus pés no chão pegajoso e escorregadio caio por cima de tripas ainda quentes. ㅤㅤㅤㅤDe onde veio tanto sangue? ㅤㅤㅤㅤTento levantar outra vez, minhas mãos deslizando por cima das vísceras e membros decepados. Mas uma adaga afunda até o cabo entre minhas costelas, me fazendo soltar um grito alto. ㅤㅤㅤㅤ— Morra monstro! ㅤㅤㅤㅤÉ o Coelho, mesmo sem uma mão ele ainda consegue empunhar a adaga e me atacar. Mas o afasto alguns metros com um empurrão. Preciso me recuperar rapido, o ferimento que ele causou não foi tão fundo, mas deve ter ferido algum órgão importante porque a dor se espalha muito rapido. ㅤㅤㅤㅤ— Eu sei que vocês não podem voltar para casa de mãos vazias — arfo. — Sei que serão executados em praça pública. Então fujam, vão para qualquer lugar. Não morram por isso. ㅤㅤㅤㅤ— Não — Coelho grita, preparado para atacar outra vez. — Não dou a minima para minha vida, as Raposas me criaram assim, para ser nada além de uma arma. E agora eu quero ver essa arma derrubar vocês. ㅤㅤㅤㅤ— Isso não vai te levar a lugar nenhum. Você não pode me vencer, Coelho. Estou sendo misericordiosa. ㅤㅤㅤㅤ— Misericórdia? Olhe ao seu redor, Princesa. Chame isso de misericórdia. ㅤㅤㅤㅤPerco o folego quando percebo o que ele quer dizer. Quando acordei nessa manhã, essa floresta era branca por conta do Inverno sem fim. Mas agora está vermelha. Com corpos que se amontoam uns sobre os outros, sangue banhando as arvores congeladas. O que aconteceu? ㅤㅤㅤㅤ— Não — minha voz falha. — Não era para eles terem morrido. . . ㅤㅤㅤㅤO que eu fiz? ㅤㅤㅤㅤEram minhas tropas, meus Soldados Brancos. E agora estão todos despedaçados e dilacerados e jogados por ai como pedaços de carne sem valor. ㅤㅤㅤㅤ— Sequer percebeu que estava matando — o ódio de Coelho agora soa como nojo. — Você é um monstro, Raposa Branca. ㅤㅤㅤㅤMas não consigo entender o que aconteceu. Eu não queria m***r ninguém, lutei planejando incapacita-los. Mas estão todos mortos, todos, não sobrou ninguém. ㅤㅤㅤㅤEstou em choque, coberta de sangue, nos cabelos, nas roupas, no rosto, sinto o gosto de ferro cru até mesmo dentro da minha garganta. ㅤㅤㅤㅤO que eu fiz? ㅤㅤㅤㅤO que estou fazendo? ㅤㅤㅤㅤNão é justo. ㅤㅤㅤㅤ— Não é justo. Eu não me lembro do que era antes de ser recrutado para o exército. Toda minha vida se resumiu a servir vocês e lutar em suas guerras estupidas por poder. ㅤㅤㅤㅤSei que estou vulnerável e Coelho também sabe. Ele se aproxima, puxa a adaga do meio das minhas costelas e me esfaqueia de novo no mesmo lugar e de novo e de novo. Mas estou desesperada demais para tentar me defender. ㅤㅤㅤㅤ— E agora estou pisando sobre os pedaços das pessoas que eram importantes para mim — ele rosna. — Seguindo um caminho que não escolhi. ㅤㅤㅤㅤCoelho saboreia a minha dor o quanto pode. Gira a adaga dentro do meu peito. Faz meu sangue dourado se misturar ao vermelho. E quando se cansa prepara o golpe final. Sem meu Manifesto tudo o que ele precisa é arrancar minha cabeça. ㅤㅤㅤㅤO que eu fiz? ㅤㅤㅤㅤEu roubei do meu pai. Matei meu irmão. Traí meus principios, a custa de quê? Para fracassar e encontrar meu fim nessa floresta de carne e sangue inocente? ㅤㅤㅤㅤEu irei fracassar. ㅤㅤㅤㅤTudo terá sido em vão. ㅤㅤㅤㅤE A Casa da Raposa caíra. ㅤㅤㅤㅤ— Não — rosno, o som reverbera pelo vale e faz Coelho se afastar. — Se quer me odiar, pois bem. Mas não será você quem irá me m***r.
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