A Raposa Cinzenta

962 Words
ㅤㅤㅤㅤUM RELAMPAGO PÁLIDO RASGA O CÉU NOTURNO DESSA NOITE CHUVOSA. ㅤㅤㅤㅤEle ilumina a margem do rio em sua correnteza forte, o píer de madeira mofada, os barcos ancorados e a silhueta alta que está parada entre o caminho que percorri e o que pretendo percorrer. Atravessei a cidade correndo para chegar até aqui, ninguém deveria conseguir me alcançar. ㅤㅤㅤㅤMas é como dizem: a Raposa Cinzenta sempre foi mais rápida que a Branca. ㅤㅤㅤㅤ— O que está fazendo? — Fosco não é muito mais velho do que eu. Crescemos juntos nos Jardins do Palácio e fomos treinados da mesma forma, mas além de mais rápido, ele também sempre foi mais maduro, percebo isso por sua postura agora. Ele está sério, enquanto eu estou assustada. — Pare com essa brincadeira boba, devolva a Estigma e vamos voltar para casa. ㅤㅤㅤㅤ— Sabe que não posso mais voltar — minha voz treme sob o frio da chuva que se debate com o vento. — Eu sei o que fiz, sei as consequências disso. Não há lugar na Corte para uma traidora viva. ㅤㅤㅤㅤ— Nosso pai já mudou as tradições uma vez por você. Ele faria de novo, tenho certeza. ㅤㅤㅤㅤ— Dessa vez é diferente. Eu não posso voltar e preciso que você confie em mim. ㅤㅤㅤㅤ— Por que você roubou? — um trovão acompanha suas palavras, só que menos barulhento, com menos raiva do que ele. Apesar de manter a postura dentro de sua armadura grande demais para o corpo desajeitado, eu vejo que meu irmão também treme, por causa de sentimentos dolorosos muito parecidos com os meus. — Você nos traiu, Branca. Você feriu nossa Casa. Tudo isso a custa de quê? Birra? Nós não te apoiamos? Eu não te apoiei? ㅤㅤㅤㅤEle não entende. Não poderia entender. E saber que me culpa e que culpa a si mesmo por isso, me magoa. Mas é um sentimento que, pelo bem de todos, preciso ignorar agora. ㅤㅤㅤㅤ— Fosco, me escuta, por favor. Não é birra dessa vez. . . ㅤㅤㅤㅤ— Volte comigo — ele me interrompe, enquanto caminha em minha direção sobre a ponte de madeira. Suas mãos seguram meus ombros. Vejo lagrimas nos olhos cinzentos. Os dois filhos mais novos da Casa da Raposa e um abraço dolorido sob a chuva. — Vamos voltar, você se ajoelha e pede perdão. Nosso Pai vai entender. E se não entender. . . deixe que o riacho leve seu sangue dourado. Morra com honra, se for o caso e juro que eu mesmo darei o golpe final. ㅤㅤㅤㅤParte de mim quer aceitar. Porque seria mais fácil simplesmente voltar e morrer em casa com a aprovação do meu Pai. Com honra. E então descansar. ㅤㅤㅤㅤMas eles não viram o que se esconde depois do Inverno Infinito, não sentiram o medo que eu senti. ㅤㅤㅤㅤ— Ah algo sobre essa espada. Algo sobre nós e nosso Reino. Algo sobre eu precisar fazer o que é certo, mesmo que pareça r**m. A Estigma não pode continuar aqui. ㅤㅤㅤㅤOs raios rasgam o céu escuro como galhos finos de uma árvore de luz. O brilho reflete nos olhos do meu irmão, em seu rosto molhado, nas gotas de chuva que escorrem por sua bochecha como lagrimas de decepção. ㅤㅤㅤㅤEle realmente não entende. Em sua mente essa é só mais uma das minhas provocações infantis. E tenho um mau pressentimento ao perceber onde isso vai nos levar. ㅤㅤㅤㅤObservo Fosco se afastar com a cabeça baixa, os olhos escurecidos por suas próprias sombras. Sua mão se ergue, seus dedos finos arrancam os relâmpagos das nuvens do céu. ㅤㅤㅤㅤ— Eu sempre te dei ouvidos e olha só onde isso nos trouxe. Mas não dessa vez. Você fez sua escolha, Branca. ㅤㅤㅤㅤEle empunha sua espada, mas a dele é feita de tempestade, de raios cinzentos que evaporam a chuva e incendeiam as madeiras da ponte e as canoas ancoradas na margem e chiam como o som ensurdecedor de milhares de pássaros gritando. ㅤㅤㅤㅤ— Prostrarei seu corpo perante a Corte — Fosco me sentencia. — Direi que se sacrificou pela honra do nosso Pai. Mas irei dormir sabendo que a Casa da Raposa foi profundamente ferida. E que esse corte nunca cicatrizará. ㅤㅤㅤㅤEle avança, cada passo reverberando com o estrondo dos seus trovões. Mas a luta termina antes mesmo de começar. O desgosto enfraquece sua mente. A tristeza enfraquece seu corpo. Imagino que as lagrimas estejam ofuscando sua visão, que os sentimentos estejam ofuscando os relâmpagos que nunca falharam ao fulminar centenas dos nossos inimigos, mas que falham agora. ㅤㅤㅤㅤ— Por favor, Fosco. Não. ㅤㅤㅤㅤPenso apenas em me defender, eu não quero ferir meu irmão, mas a forma como ele ataca é cheia de magoa e isso desestabiliza seus próprios movimentos. E quando sinto o calor da sua espada de luz, a minha lamina já está rasgando o metal da armadura, a cota de malha, os tecidos da carne. ㅤㅤㅤㅤUm ultimo relâmpago cinzento ilumina o porto, o rio, os barcos ancorados. A chuva para. Os dedos de Fosco tocam minha bochecha enquanto seus olhos e sua espada se apagam. ㅤㅤㅤㅤMetade do corpo do meu irmão cai sobre a ponte e a outra metade despenca dentro da água.
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