Coelho

2234 Words
ㅤㅤㅤㅤDeslizo a lamina da Estigma para dentro da bainha em minha cintura. O som de metal sibilando. ㅤㅤㅤㅤ— Sei que não vou te convencer, mas quero que saiba que não precisamos lutar. Essa batalha nem mesmo é sua. ㅤㅤㅤㅤCoelho se posiciona. O punho ainda sangrando onde arranquei sua mão. Ele tem apenas uma adaga, a arma padrão dos Soldados Brancos. Que empunha com seus dedos restantes. ㅤㅤㅤㅤ— É fácil para você dizer isso coberta de sangue inocente? — sua voz deixa bem claro que não irei mesmo convence-lo. — Para ser sincero não estou mais interessado no problema das Raposas. Agora eu só quero ver vocês sangrarem. ㅤㅤㅤㅤEle avança, mas nós dois sabemos que isso não é um duelo. O desafio para mim é mínimo, o risco é inexistente. Seu primeiro ataque é preciso na direção do meu pescoço, mas eu o desarmo com um golpe simples no pulso. ㅤㅤㅤㅤVou tomar mais cuidado agora. Não quero matá-lo. Preciso acabar com isso rápido. ㅤㅤㅤㅤMesmo assim o meu golpe mais fraco ainda é mais forte do que um corpo meramente humano pode aguentar e quebro os ossos do seu antebraço sem querer. ㅤㅤㅤㅤA adaga cai no chão, um rosnado de dor e raiva escapa por debaixo da mascara de tecidos que cobrem o rosto do Soldado Branco. Deslizo o pé sobre o barro, me inclinando, planejando agarra-lo pelo pescoço. Apenas um dedo no ponto correto e o Coelho irá desmaiar e a luta terá acabado. Mas ele antecipa meu movimento, consegue desviar e atira um punhado de barro de neve e sangue em meus olhos. ㅤㅤㅤㅤMas é inútil. ㅤㅤㅤㅤTenho outros sentidos para me guiar, tudo nas Raposas é superior ao de qualquer outro ser vivo. Por isso sei que ele está emendando um novo ataque, um chute, que acerta o centro da minha barriga, com um impacto fraco demais para me abalar. ㅤㅤㅤㅤ— Lute, Alteza. Vivi como um soldado, me permita morrer como um. É o mínimo que você pode fazer. ㅤㅤㅤㅤÉ possível sentir na pele o ódio que exala das suas palavras. Vejo sua silhueta logo a minha frente, turva por causa da lama vermelha que mancha minha visão. ㅤㅤㅤㅤ— Você é um homem bom, Coelho. Não quero matá-lo. ㅤㅤㅤㅤ— Seria só mais uma morte no meio de tantas outras. Você sequer lembraria. ㅤㅤㅤㅤEle está perdendo as forças por causa do sangramento. Seus golpes estão ficando mais lentos. Mesmo sem enxergar consigo desviar dos cortes de adaga com muita facilidade e como Coelho é muito maior do que eu, consigo usar isso ao meu favor. Seguro seu pulso e tombo o corpo pesado por cima das minhas costas, faço com que caia em uma posição fácil de imobiliza-lo. ㅤㅤㅤㅤJá venci. ㅤㅤㅤㅤEle se debate, tenta me atacar até com os dentes. Alimentado por um sentimento irracional. E eu o entendo. Entendo o seu ódio. Entendo o motivo para direciona-lo à mim. E quando penso nisso uma cor vem à minha mente. A mesma cor que está espalhada pela floresta de carne, a mesma cor que escorre com o sangue. ㅤㅤㅤㅤVermelho. ㅤㅤㅤㅤ— A guerra tinha acabado para nós, isso não é justo — Coelho rosna. — E todos os que sobreviveram ao campo de batalha agora vão morrer. ㅤㅤㅤㅤNão é culpa minha, penso em dizer. Mas sei que não teria nenhum efeito. Fecho o punho e o golpeio na parte detrás da cabeça, fazendo Coelho apagar. ㅤㅤㅤㅤ— Me desculpe. ㅤㅤㅤㅤMinha voz é baixa, cansada. Um suspiro. Carregada por todas as lagrimas que derramei desde que fugi de casa. Por cada gota de sangue. ㅤㅤㅤㅤO que está acontecendo? ㅤㅤㅤㅤOnde foi que eu errei? ㅤㅤㅤㅤEu não queria m***r ninguém. E agora há sangue sobre mim e corpos por todo lado. ㅤㅤㅤㅤEu só tentei ajudar. ㅤㅤㅤㅤ— Por favor, me desculpem. . .ㅤ ㅤ ㅤㅤㅤㅤNão deveria ser assim. ㅤㅤㅤㅤMas tudo já estava errado desde muito tempo atrás. ㅤㅤㅤㅤVermelho. . . ㅤㅤㅤ ㅤ ㅤㅤㅤㅤEu era a Joia da Casa da Raposa, meus movimentos sempre leves, minhas palavras sempre sutis, meus atos sempre polidos e calculados. Não uma lâmina como os outros filhos, não uma arma, mas uma coroa de ouro branco na cabeça de um Rei em ascenção. ㅤㅤㅤㅤNão para causar medo, mas para brilhar com uma luz que afastaria dos nossos inimigos os sentimentos ruins do pós guerra. ㅤㅤㅤㅤE então eu caminhava pelas ruas das novas terras sob o domínio de Sirandela, reparando as feridas profundas que a lamina do exército de Vermelho tinha aberto. Dizendo de forma doce que, apesar do cheiro de sangue no vento, agora eles fariam parte de algo grandioso, algo bom. ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤㅤㅤEspero que goste de dourado, nosso Pai decidiu que você vai lutar na guerra. ㅤㅤㅤㅤO que? Como assim? Mas por que isso agora? ㅤㅤㅤㅤAs cidades mais fracas estão se entregando por vontade própria. As mais fortes demonstrando cada vez mais resistência. Não precisamos de complacência agora e sim de poder destrutivo. Vamos, eu já escolhi suas tropas. ㅤㅤㅤㅤTudo bem, eu pensei. Era a vontade do nosso Pai. E eu confiaria nela como sempre fiz. E eu poderia compensar a minha falta de experiência em batalha com soldados fortes escolhidos por meu irmão. ㅤㅤㅤㅤTudo daria certo. ㅤㅤㅤㅤQue ilusão. ㅤㅤㅤㅤFoi quando percebi como uma Raposa com ódio pode ser c***l. ㅤㅤㅤㅤVermelho é o Marechal, ninguém nunca esteve acima dele no campo de batalha. E ele realmente tinha escolhido meus soldados. Só não os que eu esperava. ㅤㅤㅤㅤEle me designou os aleijados, multilados, adoecidos e traumatizados pela guerra que já tinham enfrentado por tanto tempo. Os que deveriam voltar para casa, para suas terras e suas famílias. Os que agora se viam obrigados a servir sob o comando de uma General que era nada além de uma menina mimada. ㅤㅤㅤㅤE então também descobri como qualquer um com ódio pode ser c***l. ㅤㅤ ㅤㅤ ㅤㅤㅤㅤCaio sentada ao lado de Coelho, escondo os olhos nas palmas das mãos, me permitindo um suspiro longo e dolorido. Banhada em várias formas diferentes de sangue. ㅤㅤㅤㅤRespiro fundo. ㅤㅤㅤㅤMinhas feridas já estão se fechando, logo não haverão nem cicatrizes. Mas não é o mesmo com Coelho, seu punho decepado continua sangrando, o outro pulso quebrado, dobrado em uma posição estranha e há dezenas de outras marcas que já trazia de antes da nossa batalha. ㅤㅤㅤㅤMeu Soldado Branco. ㅤㅤㅤㅤEu mentiria se dissesse que me lembro dele. Mesmo que seu rosto esteja visível agora que os tecidos cairam. Mas sei que é um guerreiro experiente. De barba grisalha, e um rosto distorcido por feridas de guerra. ㅤㅤㅤㅤEle não deveria estar aqui. Não deveria estar lutando. Deveria estar em sua casa, cuidando de sua família, aposentado há muito anos. Não caido sobre lama de sangue e pedaços de ossos. ㅤㅤㅤㅤIsso é terrível. ㅤㅤㅤㅤVermelho é terrível. ㅤㅤㅤㅤMinhas mãos estão tremendo, o sangue escorrendo e pingando do meu corpo, a saliva em minha garganta com gosto de vômito. Vermelho mandou meus soldados de propósito, foi um ataque pessoal. Ele queria me fazer desistir. ㅤㅤㅤㅤEu sou terrível. ㅤㅤㅤㅤNão perca o controle, Branca. ㅤㅤㅤㅤA culpa é um luxo que não posso me permitir agora. Ignoro ela. Preciso continuar. ㅤㅤㅤㅤLevanto. ㅤㅤㅤㅤApesar de não poder devolver ao Soldado Branco o que lhe foi tirado, posso garantir que ele não morra aqui. Há uma cidade em meu caminho, com médicos que poderão cuidar dos seus ferimentos. ㅤㅤㅤㅤNão quero mais mortes por minha causa. ㅤㅤㅤㅤMe curvo para pegar Coelho e ele me agarra e arranca meu braço com a mão quebrada. Por reflexo eu explodo metade da sua barriga com um soco. As entranhas se derramam para fora, mas ele não morre. ㅤㅤㅤㅤ— Coelho? ㅤㅤㅤㅤEle pula sobre mim, como um animal enlouquecido e meu golpe seguinte joga seu corpo estraçalhado contra uma arvore. Destruindo o tronco grosso com o impacto, mas sua euforia só aumenta. Em um frenesi desesperado ele rasga a própria carne com os ossos expostos do punho decepado, seus dentes se movem dentro da boca, deslizam para fora, por cima dos lábios feridos, enroscando-se na barba grisalha, transformando o rosto em um espiral retorcido de carne. ㅤㅤㅤㅤNão sei o que está acontecendo. Não consigo acompanhar. A confusão entorpece meus movimentos e ele me acerta com uma força que não é humana, afunda os ossos quebrados na minha barriga, perfurando a armadura e me arrasta por metros, enquanto tento fixar os pés no chão ensopado de sangue. ㅤㅤㅤㅤMinhas costas acertam uma outra árvore, os ossos do braço de Coelho atravessam meu corpo. A dor fora do normal me faz gritar e não consigo conter o desespero. ㅤㅤㅤㅤSoco seu rosto deformado, uma, duas, três, seis vezes. Os meus dedos doem, mas ele não me larga. Revira meus órgãos internos, me balançando de um lado para o outro. ㅤㅤㅤㅤEle queria me ver sangrar e agora estou sangrando, meu sangue jorra para fora da barriga, pelo braço arrancado e pela minha boca, pintando tudo de dourado. E a dor não me deixa pensar. ㅤㅤㅤㅤO que está acontecendo? ㅤㅤㅤㅤEu nunca fui ferida assim, nunca vi tanto do meu próprio sangue. Não sei o que fazer. Sou jogada de um lado para o outro, ouço o som dos meus ossos mais finos sendo esmigalhados pelo impacto de ser golpeada contra rochas e restos destruídos de arvores congeladas. ㅤㅤㅤㅤTento lutar, afasto todos os pensamentos da minha cabeça, a incerteza, a confusão. Não sei o que está acontecendo, mas não preciso saber, tento me convencer de que esse é só um inimigo um pouco mais forte que os outros. ㅤㅤㅤㅤSó precisa vencer ele, vai. Levanta. ㅤㅤㅤㅤCoelho mira um golpe com os ossos do braço decepado, que cresceram e agora são como duas lâminas pontiagudas e eu giro no chão, usando o impulso para me levantar. Meus dedos encontrando o suporte da Estigma na minha cintura de forma desajeitada. ㅤㅤㅤㅤ— Eu não quero te m***r. ㅤㅤㅤㅤMas Coelho nem deve estar me ouvindo mais, se é que isso ainda é ele. Se é que é humano. Tudo o que vejo é um animal tentando me perfurar com ossos quebrados do seu próprio corpo. ㅤㅤㅤㅤMas minha mente ainda acusa. Sem m***r. ㅤㅤㅤㅤDesvio para o lado quando os ossos afiados passam onde estava minha cabeça. A ponta até toca meu rosto. ㅤㅤㅤㅤSem m***r. ㅤㅤㅤㅤPuxo a lamina e no mesmo movimento arranco um dos seus braços, bem no ombro, para quê não consiga mais usa-lo como arma. ㅤㅤㅤㅤSem m***r. ㅤㅤㅤㅤMeu ossos estalam, as fraturas esfregando umas nas outras, mas ignoro a dor. Me concentro no movimento seguinte. Coelho grita, não sei por onde, porque sua boca se perdeu no meio do rosto contorcido. Seu próximo golpe é com a mão que ainda está inteira, mas eu giro, deixo que seu corpo pesado passe direto e com um unico movimento arranco o outro braço. ㅤㅤㅤㅤSem m***r. ㅤㅤㅤㅤEle se volta em minha direção outra vez, continua avançando, não vejo como pode me ferir agora. Então apoio a mão em sua barriga e o empurro para trás, forte o bastante para joga-lo contra uma das rochas enormes que emergem da margem do rio, há dez metros atrás das suas costas e sem dar tempo para quê se recupere eu avanço e enfio a espada no centro do seu peito. A Estigma desliza pela carne, pelos ossos e pela rocha como se não fossem nada. ㅤㅤㅤㅤTenho certeza que não foi um golpe fatal, mas ele para de se mover. ㅤㅤㅤㅤ— Não. . . ㅤㅤㅤㅤDou um passo para trás, meu corpo falha, caio sobre as pedras e tudo escurece.
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