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1630 Words
Uma situação que nunca será resolvida Não me lembro de quando parei de chorar e adormeci, talvez os carinhos de papai na minha cabeça e a frase “Tudo vai ficar bem” surtiram seu efeito para que o sono tomasse o meu corpo e minha mente. Nessa noite não houve sonhos, a escuridão não apareceu para me confortar, ela teria sido muito bem-vinda por mim, antes queria mandar a escuridão embora para que pudesse finalmente acordar. Eu acordei e foi uma decepção saber o estado em que me encontro. Eu quero novamente a escuridão, ela iria me acolher e levar embora todo o sofrimento, tento em vão buscá-la em minha mente, mas não a encontro em lugar algum. Ela foi embora. A escuridão foi embora quando mais precisava dela. Acordo com o mesmo carinho na minha cabeça, dessa vez é a mamãe. Ela olha nos meus olhos e dá um sorriso tenso, isso me dá a certeza de que ela já foi informada sobre o que houve na madrugada. — Bom dia querida. — Bom dia — respondo, ela não está mais demonstrando tanto a sua dor como anteriormente, isso me leva a crer que papai conversou com ela, talvez tenham se reconciliado também, eu espero — Soube o que aconteceu essa noite? — pergunto, ela assente hesitantemente — Quanto tempo terei que viver assim mãe? Quanto tempo terei que viver com uma sonda e pessoas limpando a minha b***a? — seus lábios tremem, talvez os meus também estejam trêmulos, isso apenas demonstra a nossa incapacidade de deter as nossas emoções. — Não posso te responder isso querida, depende do seu tempo de recuperação, a fisioterapia irá te ajudar bastante, você já está conseguindo se movimentar melhor, daqui alguns dias poderá se locomover com a cadeira de rodas e com a prática você poderá ir ao banheiro sozinha. — Eu preferia ter morrido mãe — murmuro, alto o suficiente para que ela possa ouvir, ela olha para mim chocada. — Você não pode falar uma coisa dessas para mim Elle Victoria Kane Jordan! — Não é você que está nessa situação, não é você que nunca mais vai saber o que é andar ou pelo menos sentir o piso debaixo dos seus pés. Mãe, você não sabe o que eu passei no meio da noite, estou tão envergonhada — droga, não quero chorar, mas é impossível conter as lagrimas — Foi tão humilhante! — minha voz sai abafada pelo acumulo de soluços na minha garganta, estou cansada de chorar, contudo as malditas lagrimas caem sem o meu consentimento — Quantas vezes terei que passar pelo o que passei nessa madrugada até eu estar apta para me locomover sozinha? — mamãe não responde, mas ambas sabemos que uma enfermeira vai trocar a minha sonda e limpar a minha b***a até que eu saiba usar uma cadeira de rodas — Tenho o direito de dizer que queria estar morta mãe, m*l comecei a minha vida e olhe onde eu estou, não foi isso que planejei para mim, não foi isso que nós duas planejamos para o meu futuro. — Não foi o que planejamos Elle — ela diz duramente — Os planos mudaram, não é apenas você que está sofrendo, eu e seu pai também estamos então pare de fazer com que tudo seja apenas sobre você! — mamãe sai do quarto me deixando só, provavelmente foi chorar. Mas ela está errada. É tudo sobre mim, pois sou eu que vou conviver com as minhas novas limitações. *** — Boa tarde Elle, sou o Dr. Roben, um dos médicos clínicos do hospital, gostaria de fazer algumas perguntas — a voz forte e imponente adentra o quarto forçando-me a tirar o olhar da janela. Dr. Roben é um jovem médico, aparentemente se formou nos últimos três ou cinco anos, é muito bonito e incrivelmente me lembra de Jason, apenas essa constatação me faz retrair. — Boa tarde — respondo e volto a olhar para a movimentação da janela do quarto. — Conversei com seu médico, ele me contou o que aconteceu e como está seu atual estado. Em breve você será liberada, mas antes eu preciso falar com você. — Tudo bem, faça as perguntas — minha voz sai seca, talvez maldosa. Esse homem não é Jason, não posso tratá-lo m*l, todavia a semelhança... — Muitos paraplégicos não sentem a necessidade ir ao banheiro, isso se deve a lesão, por isso eles têm que passar com um nutricionista para fazerem juntos um cardápio específico e ajustar os horários das refeições, assim poderemos prever o horário que o paciente irá urinar ou evacuar. Vim aqui com o intuito de saber o grau que a sua lesão afetou a sua sensibilidade de sentir a necessidade de ir ao banheiro. — Eu sinto a necessidade de ir ao banheiro Dr. Roben, seja para urinar ou evacuar — as palavras saem amargas com a lembrança dessa madrugada — Ainda o toque na altura do quadril, mesmo que seja leve, até mesmo senti superficialmente a troca de sonda... Apenas não sinto a parte do meu corpo que mais gostaria de sentir. — Sinto muito, ter a sua vida mudada repentinamente deve ser horrível, mas pelo menos você não terá muitas dificuldades como milhares de paraplégicos e tetraplégicos têm em seu dia a dia. Você pode sentir as necessidades do seu corpo, poderá ter um relacionamento sadio e saudável, talvez tenha prazer nas relações sexuais e poderá ter filhos. Sua lesão não foi tão alta, seria pior se fosse nas outras vértebras torácicas ou cervicais. Muitos outros não têm as possibilidades que você tem Elle — agora ele está parecendo papai falando das minhas oportunidades do futuro. Que homem gostaria de ser casado com uma mulher paraplégica? Ele teria que conviver com as minhas limitações, principalmente a limitação na área s****l, eu não poderia fazer várias atividades ao seu lado. Seria mais fácil poupar um homem disso. Não respondo o doutor, tenho certeza de que uma resposta malcriada iria escapulir da minha boca. — Até hoje tenho que viver com as limitações da minha esposa, entretanto isso não é um fardo e sim um presente — olho para Dr. Roben surpresa e querendo saber mais sobre a sua mulher — Minha esposa tem uma deficiência cerebral, Afasia. Estávamos em uma lancha comemorando as férias da faculdade — o olhar dele fica perdido com as lembranças — O mar estava agitado e uma onda muito forte fez a lancha balançar fortemente, depois de alguns segundos que percebi que Linda sumiu. Eu mergulhei a sua procura e a encontrei, mas a cabeça dela sangrava muito, ela tinha batido a cabeça em uma pedra que acarretou um traumatismo craniano muito grave — ele sorri tristemente — Ela acordou com dificuldades para falar, dificuldades que ela tem até hoje. Linda consegue ler quando está em seus dias bons, mas quando está m*l-humorada ela não consegue discernir as silabas. A minha Linda é uma mulher maravilhosa e muito inteligente. Não foi a deficiência de Linda que me impediu de amá-la e casar com ela, ao contrário, eu a amo ainda mais, suas limitações não fazem diferença para mim, então Elle, quando um homem se aproximar de você não o afaste, essa pode ser a sua chance de ser feliz. — Obrigado pelas palavras doutor, eu gostaria muito de conhecer a sua esposa, deve ser uma mulher incrível — um enorme sorriso rasga em seu rosto, o amor que ele sente por sua esposa cintila em seus olhos. — Ela realmente é incrível, hoje vou falar com Linda e antes da sua saída ela virá conhecê-la, quem sabe vocês duas viram grandes amigas? — sorrio e assinto — Agora preciso ir, tenho outros pacientes, tenha um ótimo dia Elle. — Para você também doutor — ele lança um breve sorriso e sai. A sensação de leveza toma conta de mim, talvez a história do Dr. Roben tenha servido para algum propósito, apenas não sei qual ainda. *** — Tenho novidades! — mamãe adentra o quarto minutos depois que Dr. Roben saiu, seus olhos estão vermelhos do seu provável e recente choro, mas está alegre com alguma notícia que deve ser muito boa. Gostaria que essa notícia fosse sobre as minhas possibilidades de voltar a andar, contudo sei que isso nunca irá acontecer, e se acontecer será cem anos no futuro, onde a medicina estará assustadoramente evoluída. — Daqui a dois dias você será liberada e poderá ir para casa, depois começará a fisioterapia! — Ah! Isso é bom — murmuro, não considero isso uma novidade, mas ela parece tão animada que não tenho como não dar um sorriso, mesmo que ele seja mínimo. — Você não parece feliz... — mamãe diz me observando, as expressões do meu rosto me entregando. — Nessa situação são poucas coisas que me deixam feliz mãe — sua expressão alegre cai gradativamente. Droga, não quero a quero infeliz, mas também não quero mentir — Papai conversou com você ontem? — mudo de assunto. — Oh, conversamos sim! — suas bochechas ganham um tom rosado, sinto que a conversa resultou em reconciliação. — Vocês estão juntos agora? — preciso saber se papai fez o que pedi, preciso saber se ele não vai mais magoá-la, eles não precisam mais causar dor um ao outro, aliás, nunca precisaram. — Sim, acho que sim, tivemos uma longa conversa — mamãe fica mais rosa ainda, essa conversa com certeza resultou em sexo — E estamos bem, finalmente estamos bem, eu sentia muita falta do seu pai, ainda vamos conversar sobre os pontos que erramos para não cometermos os mesmos erros novamente, mas por enquanto vamos nos concentrar na situação atual. Situação. Agora não sou mais uma paciente. Sou uma situação que nunca será resolvida.  
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