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1644 Words
Uma ovelha deprimida A última bateria de exames foi feita, o médico disse que estou perfeitamente bem — perfeitamente bem aos seus olhos, pois a última coisa que eu me sinto é “bem”, a partir de agora apenas terei que cuidar dos hematomas que percorrem a extensão do meu corpo e começar a fisioterapia. Essa será a minha nova vida, empolgante não? Alguns médicos dizem que eu poderei sentir sensibilidade se a fisioterapia funcionar, outros dizem que essa possibilidade pode não acontecer... Que a fisioterapia apenas irá servir para os músculos do meu corpo não atrofiarem, estou cansada de ouvir opiniões de vários médicos, mamãe faz questão de pedir ajuda a todos eles atrás de uma luz, ela não está vendo o m*l que está fazendo para mim ao trazer vários médicos com suas “diversas opiniões”. Parece que a conversa de papai não teve muito efeito. — Olá? — olho para a porta, uma mulher radiante entra sorrindo genuinamente, seus cachos loiros caem em forma de cascata por suas costas, seus olhos claros contrastam com a sua pele bronzeada, ela é dona de um corpo belíssimo. Essa poderia ser outra doutora, com certeza irei matar a mamãe quando vê-la em minha frente, mas a roupa em questão não combina em nada com uma médica. — Sou... Linda! — diz alegre, reparo como ela fala lentamente e as palavras do Dr. Roben vem a minha mente. “Minha esposa tem deficiência cerebral, Afasia” — Olá Linda, meu nome é Elle — ela se aproxima, puxa a cadeira ao lado da minha cama e se senta. Seu sorriso não some ou vacila, essa mulher realmente tem bons motivos para sorrir. — Meu ma-rido me falou so-bre... Você — A Afasia realmente cobrou seu preço. Pergunto-me por que pessoas como eu e Linda recebemos esse golpe certeiro do destino, não me lembro de ter feito m*l a alguém e Linda parece ser uma mulher boa. — Roben me falou muito de você, ele a ama muito. — Eu também o amo muito — as palavras saem suaves dos seus lábios — Você também é ca-sa-da? — Oh, não, talvez também nem tenha essa chance — já estou conformada com essa parte, eu não espero romance no meu futuro, a única parte com a qual ainda não estou conformada é com a perda dos meus movimentos. — Por quê? — pergunta com a confusão estampada na sua face. — Apenas... Não espero que alguém me ame assim, estou incompleta Linda. Sabe, nunca pensei em casamento ou filhos, eu estava concentrada apenas em me formar e me matar de trabalhar em um hospital, agora não vou poder fazer isso. — Alguém vai aparecer... Para te com-pletar Elle, talvez não agora, mas um dia... — abro um sorriso, não por suas palavras que não tem efeito em mim e sim pelo seu modo lento e calmo de falar. — Sim, talvez — com essas palavras eu corto o assunto — Roben me disse sobre a sua Afasia, como é viver todos os dias com ela? — mudo de assunto propositalmente, mas parte de mim quer saber como é viver com uma deficiência. — No come-ço foi muito difícil, ainda é, mas aos poucos vai se tor-nan-do fácil confor-me você con-vive com ela. Claro que eu gos-taria da minha vida antiga... Mas estou bem assim. Quando soube do meu diag... diag... — Diagnostico? — ajudo, Linda assente. — Isso, quando eu soube pensei que Roben me deixaria, quem gos-taria de uma na-mo-ra-da retar-dada? — arregalo os olhos surpresa pelo seu modo de falar de si mesma e Linda apenas ri da minha reação — Ele ficou comigo, em todos os mo-men-tos. — Esse é o verdadeiro amor, ontem ele estava falando de você e eu vi... Eu vi o quanto é apaixonado por ti. — Estamos ten-tan-do ter um bebê. — Parabéns — ela deu apenas um meio sorriso forçado e estranho a sua reação, ela chegou aqui feliz e ao mencionar o bebê Linda desanimou — O que foi? — Roben quer ter fi-lhos, por mim, nunca os teria. — Por que Linda? Você será uma ótima mãe, isso é indiscutível! — Tenho muitas li-mi-ta-çõ-es, nunca vou poder aju-da-lo na escola e em outras ati-vida-des, vou ser uma mãe burra. Roben quer tanto um bebê que eu não posso ne-gar. — Linda, Roben vai te ajudar em todos os momentos, o conheci ontem e pude perceber que ele fará tudo por você, não se negue a chance de experimentar a maternidade, deve ser maravilhosa. — Sim, você tem... Razão! — seu sorriso bonito volta ao lugar — Talvez um dia você também ex-peri-men-te! — assinto apenas para vê-la sorrir. Tanto a Afasia quanto a paraplegia não são fáceis, até porque não foram escritos para ser. Deve ser horrível para Linda ir ao mercado e principalmente falar com as pessoas, eles devem olhá-la com pena ou repugnância, isso me faz pensar em como será a primeira vez que irei sair de casa para ir a algum lugar. Como as pessoas me olharam? Sei que elas me julgarão antes mesmo de olhar — Quando sairá do hos-pi-tal? — Hoje, espero. — Já tem uma fisio... — Fisioterapeuta? — Sim, já contra-tou alguém? — n**o com um aceno de cabeça — Eu sou fisio-te-ra-peuta! — Sério? — Linda é uma caixinha de surpresas, apenas me surpreendo com ela. — Sim, gos-ta-ria de poder aju-da-la. — Eu adoraria Linda, tenho certeza de que meus pais também, pode se considerar contratada! — Linda é uma pessoa admirável, tenho certeza de que hoje fiz uma amiga, e talvez as nossas seções sejam os únicos momentos que vai me tirar da monotonia de não fazer nada no meu dia-a-dia. — Obri-ga-do — novamente batem na porta, doutor Roben entra e sorri para a esposa, vai ao seu encontro e beija seus lábios levemente, porém tenho certeza de que gostariam mais que um roçar de lábios. — Obrigado por vir — ela sorri para ele, a sua adoração por Roben é notável para qualquer pessoa. — Adivinha? — pergunta entusiasmada, Linda se levanta da cadeira e pega a minha mão — Sou a fisioterapeuta da Elle! — Roben arqueia a sobrancelha olhando para nós duas, e eu franzo o cenho tentando entende-la. Compreendi que ela tem dificuldade com palavras extensas, mas na presença de Roben a sua Afasia simplesmente parece não existir. — Eu aceito com uma condição: minha esposa tem que estar em casa até as seis da tarde, temos um trabalho árduo para concluir — diz maliciosamente e ela simplesmente se transforma em um pimentão. E eu? Bem, eu reviro os olhos. *** Linda foi embora minutos depois, pois o médico entrou no quarto com a minha liberação assinada. Mamãe está feliz, papai está feliz, e eu estou tentando imaginar como será a minha nova rotina. Inevitavelmente a minha frauda teve que ser trocada, fiquei aliviada quando percebi que não havia fezes, isso com certeza se deve pela minha má alimentação, já faz um dia que não ingiro nada a não ser água. A experiência na madrugada foi tão traumatizante que não quero que aconteça novamente, já foi humilhante o suficiente ser trocada como um bebê por uma enfermeira desconhecida, seria pior ainda se minha mãe fizesse isso. Mamãe me vestiu com um vestido florido que ela trouxe de casa e papai me colocou na cadeira de rodas. Depois de mais uma explicação sobre os horários do meu remédio finalmente fui liberada. Papai empurra minha cadeira de rodas com um sorriso no rosto, é tão esquisito, ele e mamãe estão felizes enquanto eu não estou, se estivessem felizes por causa da relação deles eu entenderia, mas inexplicavelmente estão felizes por mim e não consigo compreender Por que estão malditamente felizes? Ao sair pelas portas do hospital eu imediatamente abaixo a cabeça e olho para as minhas mãos no meu colo, meu olhar desce para as minhas pernas imóveis nas estribeiras e as encaro com ódio. Inúteis. Elas são fodidamente inúteis, não servem para nada, apenas para ser o centro de atenção das pessoas a minha volta. Sinto que em breve vou virar um espetáculo. *** — Lar doce lar — mamãe fala ao abrir a porta. Encaro a sala sem expressão alguma. — Pai, quero ir para o meu quarto — ele volta a empurrar a cadeira. Mamãe fez uma boa escolha quando decidiu se mudar para uma casa de um andar completamente espaçosa, parece que foi o destino que escolheu por mim. A cadeira entra no corredor facilmente e passo pela porta do meu quarto sem dificuldade. Sem ao menos perceber abro um sorriso ao ver meus livros na estante, meu notebook em cima da cômoda e o espelho. O espelho feito sob encomenda por papai há muitos anos, ele vai do teto até o chão, e ao encarar o espelho o mesmo me dá uma visão nauseante, desagradável. Vejo uma menina com o rosto apagado, ela pesa vários quilos a menos, veste um vestido florido bonito, ela está sentada em uma cadeira com rodas e suas pernas não se movem apesar das tentativas. Ela é tão estranha... Parece sem vida. Sou tirada das minhas divagações sobre mim mesma quando ouço um barulho irritante, papai se encontra na mesma posição, ele também olha para o espelho, será que ambos estamos pensando as mesmas coisas? — Olhe o que eu achei — mamãe entra no quarto com um sino, encaro-a confusa. — Por que você está andando com um sino? — papai pergunta. — Esse sino ficará com Elle caso precise de alguma coisa. Já fui paciente, já fui uma situação, e agora eu sou uma ovelha. Todas as ovelhas andam com sinos. A cena seria engraça se o estado em que me encontro agora não fosse tão deprimente.  
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