Raiva, dor e humilhação
Dia seguinte
— E Jason? Ele ficou muito ferido? — pergunto para minha mãe, mas não a encaro. m*l posso olhá-la sem ver a expressão de dor em sua face, sem ver a sua agonia. Papai é o único que consegue esconder o que sente, assim torna-se mais fácil conversar com ele.
— Apenas algumas escoriações pelo corpo, a única atingida foi você por culpa dele — noto a acusação na sua voz, eu não o defendo porque essa é a verdade, não vou sair da cadeira de rodas pelo resto da minha vida por culpa de Jason, por culpa da sua inconsequência, ele estava se divertindo enquanto eu estava com medo e pedindo para parar.
— Quando serei liberada? — a minha voz voltou ao normal conforme me comunicava, os movimentos da cintura para cima estavam bem melhores, mas as minhas pernas nunca irão melhorar, elas jamais voltarão a funcionar de novo.
— Querida, seu pai está pesquisando clinicas e tratamentos para que você volte a andar, nós iremos encontrar um jeito... — não, não, não! Ela precisa parar de falar essas coisas para mim, não vou criar falsas esperanças e não preciso da minha mãe, uma mulher que estudou para isso, dando falsas esperanças para mim.
— Quando vou sair daqui?! — aumento meu tom de voz fazendo-a se silenciar, não quero magoá-la, Emily é uma mãe maravilhosa, sei que ela fará de tudo para que eu possa ter uma vida boa e confortável, também sei que tentará encontrar esperanças até chegar ao fundo do poço, mas não quero isso para ela, quero que mamãe pare de tentar, ela precisa ser feliz, precisa resgatar o seu casamento e reconstrui-lo.
— Ainda não sei, vou falar com o Dr. Mathews — assinto, a visão que tenho da pequena janela do quarto é linda, o dia amanheceu com uma brisa fria e a partir das dez da manhã o sol despontou com força, consigo ver as pessoas caminhando, fazendo exercícios e indo trabalhar e não posso negar que estou sentindo inveja.
Olho para mamãe, ela sai do quarto deixando-me sozinha e fico aliviada, pois ela não para de falar sobre o meu estado, a recuperação, fisioterapia e tratamentos.
Pais e mães são chamados de "O poço infinito onde as esperanças nunca acabam", vi muito deles ao longo dos quatros anos que estudei enfermagem. Quando estava estagiando em um dos hospitais de Southward Angel, muitos pais vinham até mim procurando segundas opiniões sobre a possibilidade do seu filho sobreviver a um câncer maligno, possibilidades do seu filho paraplégico voltar a andar, ou possibilidades do seu filho tetraplégico voltar a sentir sensibilidade, mesmo que seja mínima. Nunca pensei que meus pais se encaixariam no "Poço infinito onde todas as esperanças nunca acabam", agora ambos estão atrás de alternativas que não levarão há lugar algum.
— Senhorita Jordan — uma enfermeira adentra o quarto — Sou Ângela, vim trocar a sua sonda — engulo em seco, descobrir que acordei paraplégica já é difícil e agora saber que estou usando uma sonda torna o meu sofrimento pior.
— Não quero usar uma sonda — murmuro.
— Sinto muito, mas a senhorita ainda não está em uma boa condição para parar de usar a sonda, ainda não consegue se locomover muito bem, porém com a fisioterapia em breve você poderá ir ao banheiro sozinha e fazer outras atividades — concordo revoltada. A enfermeira coloca meus pés nas estribeiras da cama e separa os insumos que irá usar na mesa encostada a parede.
O lençol é retirado e engasgo com a minha própria saliva ao ver que estou de fralda. Fecho os olhos e deito a minha cabeça no travesseiro.
Eu não preciso ver isso.
Não preciso ver essa situação humilhante.
Sufoco um soluço ao sentir a sonda sendo tirada da minha v****a, agora finalmente entendo o sofrimento das pessoas que estão presas a uma cadeira de rodas, não entendo como elas suportam essa vida.
Vou depender dos meus pais para o resto da minha vida?
E o meu sonho de seguir a carreira de enfermagem?
Mamãe diz que Deus nunca dá um fardo maior do que nós podemos suportar.
Mas ela está errada. Deus exagerou dessa vez, não mediu as consequências que esse fardo teria sobre mim.
Esse será um fardo pesado para carregar.
***
— Mamãe foi para casa? — pergunto depois de engolir a polenta, papai assente.
— Ela precisa descansar, os últimos meses foram difíceis.
— Não quero mais — consegui comer metade do prato, foi o máximo que consegui ingerir depois de dois meses dormindo e recebendo fluidos pelo cateter — Gostaria de falar com você pai — ele deixa o prato de lado e assente.
— Elle, você sabe que pode perguntar o que quiser — ele pega a minha mão e aperta, preciso lhe mostrar o que está perdendo e fazê-lo compreender que não vou mais andar, os médicos foram firmes ao dizer que não há essa chance e eu preciso que eles aceitem as palavras que foram ditas.
— O que houve com o casamento de vocês? Quero que me fale a verdade — a pergunta o pega de surpresa, mas preciso saber, não quero que eles continuem escondendo o motivo, eu sou a filha deles, compartilhei o sofrimento da minha mãe e sinto a necessidade vê-la feliz.
— A sua mãe está certa, eu coloquei o trabalho acima de vocês, ela acha que eu mantenho um amante — ele sorri tristemente — Nunca faria isso com ela. Elle, quando conheci a sua mãe eu não tinha nada, então você nasceu e prometi dar o melhor para ambas. Abri um pequeno negócio de marcenaria, mas nunca tive expectativa de que fosse crescer, e incrivelmente cresceu, consegui pagar a sua faculdade e dar conforto para você e sua mãe.
— Você se esqueceu de nós papai, você não sabe como é difícil vê-lo partir e esperar a sua volta.
— Sinto muito, não sabe o quanto. Estava no aeroporto quando soube do acidente, e enquanto esperava notícias da sala de cirurgia, eu pude enxergar o quanto errei, você poderia ter morrido e iria me martirizar pelo resto da minha vida por não ter dado a atenção e o amor que você precisava — minhas lagrimas assim como as de meu pai começam cair livremente, elas são inevitáveis — Agora estou aqui e jamais irei deixá-las.
— É muito bom ouvir isso, preciso que você concerte a sua relação com a mamãe, ela merece ser feliz nesse momento. Preciso também que você tire dela as esperanças de que eu possa voltar a andar, nós três sabemos que não irei, ela apenas não quer enxergar.
— Elle, se eu tirar as esperanças dela o que vai restar? — sorrio ternamente, pois a resposta é tão fácil...
— Pai, as esperanças vão desaparecer, mas você estará ao lado dela para segurá-la e garantir de que tudo ficará bem.
— Sabe filha, sempre assistia na televisão sobre acidentes que deixavam as pessoas paraplégicas e pensava que isso nunca iria acontecer com alguém da minha família, eu estava errado em pensar assim.
— Eu também pensava assim pai, agora olhe para mim, nunca mais poderei andar, terei que viver uma vida que não escolhi, não terei o emprego dos meus sonhos, um amor e filhos, estou fadada a uma vida hipócrita, qual é o sentido de continuar vivendo?
— Não fale assim Elle, você é a única coisa que mantém a mim e a sua mãe vivos, eu sei que você terá uma vida incrível, talvez até melhor da qual você sonhou, apenas tenha paciência, tudo vai se ajeitar no seu tempo.
Espero que papai esteja falando a verdade, pois senão qual será o sentido de viver uma vida plantada em uma cadeira de rodas.
***
Acordo no meio da noite com terríveis dores abdominais e sinto extrema vontade de ir ao banheiro.
Avisto papai dormindo e apesar da vergonha eu o chamo, porém acaba sendo tarde demais.
O cheiro que toma o ar é repugnante, começo a tremer e chorar de raiva, estou me sentindo tão impotente, não posso mais fazer o que era um simples ato para mim, ir ao banheiro.
Uma enfermeira entra e meu pai fica do lado de fora, ao olhar para seu rosto vejo a pena ao me ver chorando de dor, ao vê-la tirando a fralda eu penso em acabar com tudo isso, pois nunca me senti tão humilhada e fraca em toda a minha vida.