Capítulo 14

2851 Words
OS DOZE E-MAILS não lidos da minha faculdade me fazem perceber que eu estou muito, muito, encrencada, e os dias em que faltei nas aulas me acertam em cheio, lembrando-me que o percentual máximo de faltas permitido equivale a 25%. Contudo, não é nisso que foco minha atenção e sim no e-mail cujo o título é indica uma vaga de estágio em Letras.    Quando vim para o Brasil, estabeleci uma meta para que dentro de poucos meses eu estivesse empregada e graduando, já que eu não quero depender totalmente da renda de meus pais e preciso conquistar minha dependência, nem que seja aos poucos. Porém, com o agravante da doença de Pilar, acabei me perdendo de meus objetivos e sequer correndo atrás deles.     Ao menos não da forma convencional.    Uma das melhores características da minha faculdade é a forma como ela prepara seus alunos para o mercado, havendo um componente curricular somente para isso, responsável por trabalhar no nosso desenvolvimento pessoal e profissional, pois tão importante quanto são as hard skills também são as soft skills.     Agora, com o coração querendo sair pela boca e as mãos soando em ansiedade, eu leio atentamente a proposta que recebi de uma empresa atráves do programa de estágios vinculado à minha universidade. Trata-se de uma vaga para como professora ajudante em uma escola particular e eu não penso duas vezes antes de aceitar a oferta e marcar uma entrevista para amanhã.    Meu Deus, amanhã!    — Marjorie — grito, aflita, empurrando os lençois com os pés e deixando o notebook na cama mesmo ao me levantar.    Calço as pantufas e abro a porta do quarto de hospedes, atravessando-a e caminhando até a porta do quarto de Marjorie. Bato na porta uma, duas, três vezes e nada. Franzo o cenho, estranhando o silêncio. Será que aconteceu alguma coisa?    Toco a maçaneta pensando se é uma boa ideia verificar e segundos depois, concluo que sim. Antes levar um soco do que ser acusada de assassinato. Abro a porta, mas o quarto está vazio. Onde essa mulher se meteu, pelo amor de Deus?    Desço para o primeiro andar, revirando todos os cômodos, olhando atrás de portas, debaixo dos móveis, atrás das cortinas, mas não há um só, absolutamente nenhum, vestígio seu. Volto para meu quarto e busco pelo meu celular, discando o número de meu pai, que atende no segundo toque.    — Bom dia, filha, aconteceu alguma coisa? — Sua voz soa rouca o suficiente para que eu perceba que ele não acordou há muito tempo.    — Bom dia, pai. Está tudo bem. Por acaso, a Marjorie está aí?     Uma esperança se agita em meu peito com seu silêncio do outro lado da linha, mas juntamente a ele, ela também vai embora quando ele me responde:    — Não, achei que vocês viriam juntas.    — Sim, sim, nós vamos — garanto, balançando a cabeça positivamente, mesmo que ele não possa ver. — Ela não está em casa, mas deve ter saído para comprar nosso café da manhã, vou aguardar mais um pouco.    Como no hospital, caminho em círculos, aflita. Torcendo para que o que eu disse para meu pai esteja certo.    — Está bem, me mantenha informado, por favor.    — Mantenho sim, pai. Mais tarde estou aí, tchau.    Desligo a ligação e jogo meu celular em cima de minha cama, que cai ao lado do notebook ainda ligado. Me sento a beira e desbloqueio a tela, abrindo o menu logo em seguida e desligando-o. Levanto com ele em mãos e guardo-o em uma das gavetas vazias.    Ainda é cedo, por isso decido não faltar a aula dessa vez.     Após o banho, opto por vestir uma calça jeans de lavagem clara, um moletom preto e um tênis da mesma cor. Prendo meu cabelo em um r**o de cavalo e faço um delineado em meus olhos, passando um brilho labial em seguida. Arrumo o quarto antes de sair e pego minha mochila com um caderno para anotações e outros materiais necessários.     Quando desço para pegar o táxi, sinto o vento gélido bater contra meu rosto exposto e me encolho quando um arrepio percorre toda minha espinha. Hoje o frio se faz presente e repenso a minha decisão de ir à universidade quando eu poderia ter ficado em casa. Se bem que eu teria que enfrentá-lo de qualquer forma, já que daqui eu iria para o hospital.    Entro no táxi, discando o número de Agnes durante o trajeto. Faz tempo que não falo com ela e apesar de nossas brigas, imagino como ela deve estar se sentindo triste e sozinha com papai e eu ausentes.    — Oi, mãe — digo em espanhol, em um tom de voz mais baixo do que eu pretendia. — Como a senhora está?    — Oi, Maitê. — Sua voz soa embargada e falha, como se houvesse chorado, e isso me parte o coração. — Eu estou bem e você? Como vai a faculdade?    A mentira é palpável, são anos de convivência para que eu não perceba isso, mas opto por não a questionar por enquanto, não quando ela parece tão aberta ao diálogo. Abro um meio sorriso por isso. Tudo o que eu sempre quis foi uma boa relação com ela. Se ela permitisse eu me aproximar... me permitisse tentar.    — Estou bem, também. A faculdade é incrível. O curso, os professores, a estrutura, é uma boa universidade. Estou gostando bastante.    — Eu sabia que você ia gostar de administração, querida — ela diz, e o meu sorriso morre, enquanto posso sentir o dela do outro lado da ligação. Ouço uma movimentação ao fundo e seu nome ser chamado por uma voz masculina. — Eu preciso ir agora, mas mais tarde eu ligo para continuarmos conversando, ok?    — Ok, bom trabalho, mãe. Até mais tarde.    Deslizo o celular para longe de meu ouvido quando ouço o som da ligação sendo encerrada e mantenho meus olhos fixos no banco acinzentado escuro à minha frente, quando ouço a voz da motorista baixa demais para que eu realmente preste atenção:    — Moça, nós já chegamos.    — Como eu vou contar para ela que não estou fazendo administração? — questiono, em voz alta, ainda com o olhar fixo no banco.    — Perdão?     Balanço a cabeça negativamente, passando a fitar a mulher que me encara com um grande ponto de interrogação em sua face. Suspiro. Dentro de mim o ponto de interrogação não é tão maior que o dela.    [...]    — Como tá a Pilar, Maitê? — Marcos, sentado ao meu lado, pergunta, e eu o olho. — Se não quiser conversar sobre isso, eu vou entender.    Faz alguns minutos que nós dois saímos da aula de Ética e Cidadania. Após o moreno me atualizar sobre todas as coisas que perdi ao longo dos dias que faltei, pude concluir com certeza de que estou muito encrencada, pois todas as explicações serão cruciais para os trabalhos e provas que, inclusive, já possuem até data marcada.     Moral da história: não falte nas aulas a menos que a pessoa que esteja morrendo seja você. Brincadeira!    — Ela está se cuidando, finalmente — digo, simplória. — Acredita que ela não estava fazendo os tratamentos? — Ele me oferece um sorriso fraco e reconfortante, e eu arregalo os olhos. — Eu sou a única que não sabia?    — Marjorie tinha comentado algo a respeito, mas bem superficialmente, ela não é muito de falar sobre seus problemas pessoais. Esse é um nível de proximidade que poucos conseguem alcançar com ela.    Assinto, em concordância. A ruiva parece ser fechada em diversos aspectos, apenas não esperava que fosse assim com seus amigos também. Apesar de que cada ser humano possui suas limitações e essa pode ser a dela.     — Por falar em Marjorie, você sabe se ela veio hoje? — questiono, bebericando meu cappuccino.    Não obtive notícias dela desde que sai de casa. Seu celular sequer chama, cai direto na caixa postal. Mesmo não sendo próximas, é inevitável não me preocupar, ainda mais em um momento tão delicado como esse.    — Eu ainda não a vi hoje, Ma, provavelmente a Isa deve saber de alguma coisa.    — E cadê a Isa? — Olho o relógio de pulso. O intervalo está quase acabando. — Já era para ter chegado aqui.    — Ah, você está falando m*l de mim, isso explica porque minha orelha está tão quente e vermelha — diz Isabel, saindo de trás da árvore que estou encostada. Semicerro os olhos com a sua graça, e ela se senta à frente de nós, com um pote de sorvete no seu colo. — E aí, gente, o que tá pegando?    Estamos na parte externa do campus. O frio começou a desaparecer quando o sol resolveu aparecer, brilhando forte e radiante. Nunca me arrependi tanto de não ter colocado uma blusa por baixo. Estou começando a sentir meu corpo superaquecer, mas me forço a ignorar a sensação sufocante para focar no que realmente importa. Corro o olhar pelo campus, buscando minha irmã, confundindo-a com diversas pessoas com cabelos semelhantes até suspirar frustrada porque nenhuma delas é ela.    Volto meu olhar à Isabel quando Marcos pergunta:    — Cadê a Marjorie?     Ela franze o cenho após afundar sua colher no sorvete de flocos, leva-lo até sua boca e engolir a massa. Minha visão começa a embaçar e ficar turva, sinto minha pressão cair e os ruídos se mesclarem, confundindo meu sentido auditivo, mas não o bastante para não ouvir minha amiga responde-lo:    — Eu não sei, ela não veio hoje. — E então eu caio na grama, derramando o restante do capuccino em meu moletom insuportavelmente quente. — Meu deus, Maitê!     Não ouço. Não vejo. Não sinto nada mais. [...] Meus olhos estão fechados. Ouço barulhos, tão baixos que parecem sussurros. Tento abrir minhas pálpebras mas sequer tenho força pra isso.  Eu morri? — Ela já está apagada a mais de 30 minutos. Tô ficando preocupada. — A voz de Isabel parece mais próxima ao dizer.  Tento novamente abrir meus olhos. Uma claridade invade minhas íris e fecho rapidamente minhas pálpebras, abrindo aos poucos para tentar me acostumar com os raios de luz. Um teto branco entra em meu campo de visão e olho para o lado, vendo que Marcos e Isabel estavam ali, ambos me encaram preocupados e franzo o cenho. Se estou vendo eles, eu não morri, certo? — Ei, garota. Que susto você nos deu. Como está se sentindo? Tento me levantar da cama mas uma tontura atinge meu imo, o que faz eu deitar novamente. — Estou bem, um pouco tonta mas bem. O que aconteceu? — pergunto meio perdida sobre os acontecimentos. — Você desmaiou, do nada. E derramou capuccino em si própria também. — Marcos aponta com a cabeça e olho diretamente para o local apontado e noto uma mancha grande de café no meu moletom. — Que droga! Aos poucos me sento na cama e pela janela da sala, percebo que ainda estávamos na faculdade, e a sala era a enfermaria. A porta se abre e então uma enfermeira adentrar o cômodo. — Foi só um susto, sim. Sua pressão baixou e isso fez com que você acabasse desmaiando. Você anda se alimentando bem, Maitê? — Sim, sim. Estou tendo algumas correrias mas sempre me alimento muito bem — afirmo, passando a mão sobre minha nuca fazendo uma leve massagem, quando me lembro o que me fez passar m*l. — Ah, foi o calor. Desculpa, eu não sou do Brasil e não estou acostumada com a baixa umidade. Acho que isso se uniu ao útil e agradável. Fico sem graça enquanto todos presentes me encaram. Ninguém nunca passou m*l por causa do calor? — É, realmente tá explicado. — A enfermeira ri sem graça e eu encolho os ombros. — Você já tá liberada para ir, Maitê. Na próxima, tenta não vestir uma roupa tão quente como esta. Aponta para meu moletom e eu apenas concordo. Nunca na minha vida eu iria imaginar que o tempo de São Paulo mudaria drasticamente assim. Marcos me ajuda a descer da maca e sinto um alívio quando meus pés tocam o chão. Agradeço a enfermeira e saio da sala, sendo seguida por Marcos e Isabel. — Nada da Marjorie? — Nada da Marjorie!! — Respondem juntos e eu me pergunto em pensamento, aonde essa garota se enfiou? [...] — Gente eu tô indo pra casa, quer dizer, casa da Pilar. Ainda preciso descobrir onde Marjorie se enfiou. — Aviso-os assim que chegamos no lado externo da faculdade. — Eu te levo, você só vai gastar pegando táxi. — Isabel diz. — Inclusive, não pensa em comprar um carro? — Ah, não. Por enquanto não está nos meus planos de gastos, mas em breve talvez, quem sabe — dou de ombros e ajeito minha bolsa nas minhas costas.  — Bom, então vamos. —Tchau, Marcos — beijo seu rosto e ele dá um um aceno com a mão. Sigo com Isabel até o estacionamento da universidade e ela vai o caminho todo dizendo que precisa de uma festa pra dançar até o chão com o efeito do álcool. Ergo minha sobrancelha em confusão. Quem dança até o chão? E porque precisa ir até o chão? Não lhe pergunto, apenas penso comigo mesma, pois seria minutos e mais minutos de diálogo sobre como são as festas brasileiras e eu só quero chegar logo em casa, tomar um banho e seguir para o hospital. Ah, e encontrar Marjorie. O caminho até a casa de Pilar é feito com músicas animadas que eu desconheço, e uma Isabel dizendo que Marcos está gostando de mim. — Não Isabel, você tá viajando — n**o, rindo com a possibilidade.  Marcos é assim com todos, brincalhão e bem humorado. O amigo que eu pedi a todos. — Tanto faz, mas que ele quer te pegar isso tá explícito. Dá de ombros. — Você e Mia são tão parecidas. Meu radar para amigas loucas não me decepciona nunca. — Lhe dou um tapa fraco sobre sua perna e encaro o trânsito. Hoje ele tá de matar, bastante congestionado. Eu só queria chegar logo em casa, é pedir muito? — Inclusive, sua amiga poderia vir ao Brasil. Estou doida para conhecê-la. — Seu olhar que está fixado no trânsito me encara rapidamente com um sorriso malicioso nos lábios. As duas juntas não iria prestar. Não mesmo. Já havia comentado por alto sobre Mia, mas nada muito detalhado. E em pensar nela, me traz uma saudade enorme da minha preta. Aquela mulher é maravilhosa e se daria muito bem com Isabel, arrancaria os cachos ruivos de Marjorie e seria a melhor amiga de Marcos. Como o semestre em Costa Rica funciona diferente, nossas férias não irá bater, mas irei fazer uma nota mental de convidá-la para visitar o Brasil em suas férias, assim mataremos a saudade. Alguns minutos depois, com o trânsito horrível, Isabel estaciona em frente a casa de Pilar. Retiro o cinto de segurança e viro para a morena. — Obrigada pela carona — agradeço e antes de abrir a porta do passageiro, lembro-a. — Se Marjorie lhe mandar mensagem, não esquece de me avisar, por favor. — Claro, Ma. Manda um beijo pra tia Pilar. Mostro um sorriso e saio do carro fechando a porta atrás de mim. Lhe dou um tchau com a mão caminho até a casa. Que Marjorie esteja ali dentro, viva e com saúde, ou quando ela chegar vou lhe mostrar quão bela ela fica a sete palmos do chão. Abro a porta com minha chave e fecho-a quando adentro a sala. Coloco minha bolsa sobre o sofá e subo as escadas afim de tirar essa roupa quente do meu corpo. Entro no quarto de hóspedes já retirando o moletom. Noto que em minha barriga há uma mancha vermelha ocasionada pelo líquido quente do capuccino. — Mais que droga. Grunho. Procuro no quarto algo que eu possa passar na queimadura mas não encontro. Saio do de hóspedes e vou até o de Marjorie, abro sua porta e dou de cara com a ruiva deitada em sua cama enquanto mexe no celular. — Aonde você estava, infeliz — fecho a porta com força de seu quarto atrás de mim e me aproximo da garota que me olha confusa. — Eu te liguei milhares de vezes e só dava na caixa postal, sem contar que você não foi ao hospital e sequer a faculdade. Pode me dizer aonde você estava? — Eu não te devo satisfação, garota. — Se levanta da cama deixando o celular sobre o colchão e fica em pé na minha frente. Me olha de cima para baixo e faz uma careta. — Que merda aconteceu contigo? Devo chamar a polícia pra prender algum agressor? Aponta na direção da minha queimadura e droga, esqueci que eu entrei no seu quarto somente de calça e sutiã. Parabéns, Maitê, parabéns. — Apenas me dê um kit de primeiros socorros, e só isso — respondo e sem querer minha fala sai grosseira. Mas bem, ela merece.  Onde já se viu sumir e não dizer onde vai. Se ela tivesse ao menos atendido a porcaria do telefone.
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