— VOCÊ ME DISSE que era desenho animado, Marjorie — alego quando o desenho chega ao fim e os créditos com fundo preto sobem na tela.
Só percebo que estou encolhida no sofá com meu corpo quase se fundindo ao material quando ela começa a rir descontroladamente.
— Você é tão medrosa.
Semicerro os olhos, arrumando a minha postura e fazendo bico.
— Não sou, não.
— É sim. — Ela limpa o canto dos olhos úmidos pelas lágrimas. Seu rosto vermelho, e eu jogo um travesseiro nela. — Ei.
— Nunca mais deixo você sugerir um filme.
Minha reclamação vem seguida de minhas mãos fechando a minha caixa de pizza em cima da mesa e de meu corpo levantando-se do sofá. Eu não comi todos os pedaços e como não quero jogar nenhum fora, me direciono para a cozinha, seguida por minha irmã.
— Você está focando muito no terror, a genialidade desse filme é fantástica.
Vejo-a encostar-se no batente da porta de braços cruzados e arqueio uma de minhas sobrancelhas enquanto abro a geladeira.
— A única genialidade que percebi foi em fazer as pessoas acreditarem ser um desenho animado e no final ser de terror.
Coloco a caixa de pizza dentro da geladeira e fecho-a a tempo de vê-la revirar os olhos.
— O uso do horror infantil é incrível mesmo — ela inicia, enquanto eu caminho para a pia para lavar os copos que usamos para tomar refrigerante. Coloco sabão na esponja e começo a lavá-los, escutando minha irmã falar animadamente sobre o filme com seus olhos brilhando: — Ele fala sobre temas muitos sensíveis e necessários, como abandono, negligência e alienação parental; a retratação do abuso que as crianças que se tornaram fantasma sofreram pelo Beldam, tendo suas almas e uma parte delas roubadas.
— E você percebeu isso quando estava se tremendo de medo ou quando estava assistindo com um olho aberto e o outro fechado? — brinco, fechando a torneira e secando as minhas mãos em um pano.
Ela gira os calcanhares, me dando as costas e eu saio da cozinha, vendo-a se jogar no sofá novamente.
— Eu desisto de conversar com você.
Dou uma risada nasal e balanço a cabeça negativamente. Subo as escadas, indo em direção ao meu quarto enquanto torço para que eu consiga dormir.
[...]
Pegar no sono foi estritamente difícil na noite anterior, meus olhos ficaram grudados no teto do meu quarto por horas e no momento em que consegui fechá-los, cenas do filme que assisti com minha irmã vieram a minha mente, fazendo-me acordar de súbito e novamente, ficar com os olhos arregalados fitando o teto. Não sei a hora em que finalmente consegui adormecer, mas sei que não demorou para meu alarme tocar. Levo minha mão para a cômoda e desligo meu despertador, abrindo os olhos em seguida. São 06:30 da manhã e a minha vontade é de somente continuar na cama até adormecer novamente.
— Bom dia, irmãzinha mais linda. — Marjorie invade meu quarto com toda sua educação, e eu pego minha pantufa ao lado da cama e jogo em sua direção. — Ai, sua doida, o que eu te fiz?
Pergunta totalmente sonsa. Reviro meus olhos e jogo o cobertor para o lado, retirando-o de cima do meu corpo, e levo minhas pernas para fora da cama, sentindo o sono pesar em meu corpo.
— O que você não fez, não é, sua cínica? — Minha boca abre em um bocejo após eu terminar minha frase proferida. — Me devolve minha pantufa.
E logo sinto ela bater contra minhas costas. Viro meu olhar para a ruiva e grunho em sua direção, ela revira os olhos enquanto tem um sorriso divertido em seus lábios.
— A culpa não é minha se você é medrosa.
— Eu consegui dormir somente por uma hora por causa do seu filminho animado. — Bufo, calçando as pantufas e me colocando de pé.
— Que horror, você está parecendo um panda com essas olheiras. Vai se arrumar, Isabel vem nos buscar pra irmos para a faculdade. — E sai, batendo a porta do meu quarto e o som estrondoso ressoa diretamente em minha cabeça, fazendo-a doer.
Choramingo comigo mesma enquanto caminho para o banheiro. O descanso é uma coisa que eu costumo prezar muito e eu com sono significa estresse durante todo o dia.
Tomo um banho de água fria para que eu possa despertar e aproveito para molhar também meu cabelo, por mais difícil que seja finalizá-lo. Termino de me enxaguar, retirando todo o sabão do meu corpo e pego meu roupão, enrolando-me. As gotículas de meu cabelo caem sobre meu rosto e para isso não me estressar, puxo uma toalha de mão e enrolo em minhas madeixas escuras. Finalizo minha higiene bucal e saio do banheiro indo ao closet para escolher a roupa adequada para ir à faculdade e em seguida ao trabalho.
Procuro uma calça jeans e escolho uma das que comprei no dia do meu turismo com Isabel e Marcos, assim que cheguei. É um jeans escuro e sem rasgos, próprio para ir ao trabalho. Pego uma de minhas blusas sociais de manga e para combinar com a escuridão da calça, escolho um tom claro, mas não branco; cor creme. Pego minha lingerie e visto-a após tirar o roupão de meu corpo, passo hidratante e logo visto a calça, em seguida pego um desodorante passando-o sobre as axilas e vestindo a blusa separada. Fecho os dois últimos botões e deixo o primeiro para ajudar a arrumar a gola.
— Maitê, você só tem dez minutos — a voz da minha gêmea se faz presente em gritos do andar debaixo.
— Vai se ferrar e me deixe quieta. Descerei quando eu estiver pronta — grito de volta, calçando um salto também da cor creme. Um confortável e que não me incomoda ao ficar muito tempo em pé.
Tiro a toalha de meus cabelos e pego a escova para pentea-los, como estava sem muita vontade de ajeita-los, prendo-os em um coque deixando alguns fios soltos e uns caindo por minha testa. Não passo maquiagem, exceto pelo corretivo abaixo dos meus olhos para esconder a péssima noite de sono que tive e um hidratante labial. Assim que passo um perfume, pego minha bolsa com a carteira e documentos, minha pasta, celular, fone e carregador, pois como ficarei o dia todo fora de casa é necessário. Saio do closet e do meu quarto, descendo as escadas ouvindo as buzinas desesperadas fora da casa.
— Graças, já estava indo te puxar pelos cabelos — diz e em resposta lhe mostro o dedo do meio, pegando uma pera na fruteira e lavando-a rapidamente. — Cruzes, que mau humor.
Ignoro Marjorie e saio após ela ir na frente. Fecho a porta e tranco, trazendo as chaves comigo enquanto Isabel buzina desesperadamente.
— Se você continuar buzinando sem necessidade, vou te jogar pra fora do carro, e não interessa que ele é seu.
— Credo, que bicho te mordeu?
— Um bicho com o nome "sono". — Abro a porta do passageiro ao lado do motorista, deixando que Marjorie fique sozinha no banco de trás. Sento e me ajeito com minhas coisas em meu colo e Isabel logo dá partida, dirigindo pelas ruas caóticas de São Paulo em direção a nossa universidade.
Não demoramos a chegar e quando finalmente pisamos os pés para fora do carro, eu me despeço da dupla e caminho em direção a minha sala. Eu bato na porta delicadamente e a abro assim que me é autorizado, deparando-me com Marcos sentado em sua cadeira e a sala em completo silêncio, sendo o som dos meus saltos batendo com o piso liso o único a ser escutado.
— Meu Deus, quem morreu? — pergunto um pouco mais alto do que gostaria, sentando-me atrás do meu amigo.
Coloco a bolsa sobre meu colo, retirando de dentro dela meu livro da aula, um caderno e um estojo. Visualizo Marcos passar os dedos a frente do pescoço em um sinal para que eu fique quieta e ergo uma de minhas sobrancelhas, mas antes que eu possa lhe perguntar o motivo, a professora levanta-se de sua cadeira e olha em minha direção.
— Pode guardar o material, Maitê, hoje teremos prova. — Sua voz reverbera pela sala inteira, seca e séria, enquanto eu sinto o desespero se espalhar pelo meu organismo. Put4 merd4, como raios eu esqueci disso?
Envio um olhar de "socorro" para meu amigo, mas ele se vira ainda mais para frente, evitando qualquer contato visual e fingindo que não me conhece. Filho da mãe.
— Desculpa — murmuro com um sorriso sem graça para a professora e guardo o material, deixando sobre a mesa apenas uma caneta, um lápis e uma borracha.
Ela passa de carteira em carteira entregando as provas e quando chega a minha, o olhar que lança em minha direção me causa arrepios pelo corpo todo, mas não deixo de agradecer quando o conjunto de folhas brancas com letras pretas é depositado em cima da mesa.
Marcos é um dos primeiros a finalizar a prova e apesar de eu não ter estudado como eu deveria, finalizo mais rápido do que achei que faria, alguns minutos após ele. Eu entrego a prova para minha professora e saio da sala, deparando-me com meu amigo que me esperava do lado de fora.
— Eu senti que ela ia arrancar um dos meus fígados — murmuro assim que fecho a porta atrás de mim e começamos a andar pelos corredores.
— Se ela fizesse, meu pano seria azul com glitter — diz, dando de ombros, e eu o olho indignada.
— Ei, você deveria estar me defendendo — dou ênfase em "me".
— Não quando você só dá bola fora. — Franzo o cenho confusa com a expressão. — O marido dela faleceu essa semana.
Put4 merd4. Então eu não dei bola fora, dei o campo de futebol inteiro.