Já se firmava no relógio 07:30 da manhã seguinte, tendo em vista que eu teria que me forçar a levantar para ir ao colégio. Mas quem disse que eu conseguia? Meu corpo estava pesado, e como uma pedra jogada em meio ao mar, sentia-me como se estivesse apenas a afundar e isso me angustiava. As dores eram inexplicáveis, mas tinha que tomar meu banho e seguir normalmente, aliás era dia de avaliação.
─ Mas que merda! ─ resmunguei baixo pegando o celular e ligando para Anna, tinha me esquecido completamente sobre aquilo, com um pouco de custo ela atendeu, e em sua voz era nítido que também havia acabado de acordar, podia ouvir mais a fundo um leve bocejar vindo da mesma que tentava disfarçar o cansaço ao afastar o celular e depois o retornar mais próximo do ouvido, assim tirando dos meus lábios um sorriso fraco e nada duradouro. ─ Preciso de sua ajuda, por favor... e, de suas maquiagens.
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Anna não questionou muito à respeito durante a ligação, e dentro de dez minutos lá estava ela, bem na minha frente com seus belos olhos esverdeados cheios de lágrimas, e suas delicadas mãos a tapar a boca devido ao breve espanto que teve se deparando com o estado deplorável do meu corpo. Não a julgo, eu faria o mesmo em qualquer outra situação. Mas logo vieram os questionamentos.
─ E-ele tocou em você novamente, não foi?! ─ Anna tinha consciência do que me ocorria praticamente todos os finais de semana. Mas não a julguem por não sair implorando socorro a um adulto, eu tinha escolhido assim, também optamos juntos a não mais tocar neste assunto perto do Paulo, ele literalmente não é o tipo de ser humano que você desejaria estar perto em momentos de fúria ou algo parecido. E não foi nem um pouco fácil de segura-lo quando ele descobriu.
─ Está tudo bem Anna... não fique assim por minha causa, trouxe a maquiagem?
─ S-sim... ─ Anuiu com um leve balançar de cabeça concordando, então a puxei até meu quarto ao que se sentava ao meu lado e assim, começou com sua "mágica".
Anna havia conseguido disfarçar muito bem os hematomas espalhados pelas partes mais visíveis do meu corpo, tendo em vista sua vasta experiência em atender as inúmeras chamadas para que pudesse me acudir neste tipo de situação. Poderia se dizer que ela faria muito bem em abrir uma empresa e se firmar no ramo da maquiagem. Depois de me ajudar a levantar seguimos para a escola. Uma caminhada bem longa e dolorosa por assim dizer.
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Chegando na escola tratei de ir logo para a minha carteira, não queria fazer muitos movimentos e o que mais queria naquele momento era descansar o máximo possível e um remédio para aliviar as dores.
Aos poucos os alunos iam chegando, e logo Paulo havia adentrado na sala, podia notar em seu rosto o olhar que ele lançava sobre mim, parecia analisar cada canto do meu ser. Mesmo estando rodeado por meninas que imploravam por sua atenção, ─ muito das vezes levando mimos ou cartinhas a ele antes das aulas ─ as quais ele sempre rejeitava, ele não desviava o olhar que seguia rumo a minha direção e aquilo gerava um certo calafrio pelo meu corpo.
Geralmente ele parecia notar que algo não estava certo em mim, mas costumeiramente nada dizia. Nem ao menos sequer ele tocava em algum assunto semelhante para que talvez Anna e sua bendita boca grande lhe dissessem algo, mas naquele dia foi diferente, ele se sentou em uma carteira vazia atrás de mim e sussurrou próximo ao meu ouvido:
─ O que aquele desgraçado fez com você agora? ─ Juro que queria poder dizer cada detalhe repugnante das noites em que passei praticamente em claro para meu melhor amigo, desabafar seria um alívio, mas da minha boca não saía voz alguma, apenas sentia em meu peito o ritmo acelerado do coração ao ter tão perto o respirar e o sussurrar de Paulo. E como um mero "covarde" abaixei a cabeça e não o respondi, não queria confusões pois ele já queria ir atrás do meu pai para matá-lo (literalmente) e isso só iria causar problemas á ele mesmo, uma vez que meu pai pudesse estar a sete palmos da terra — quisesse deus, no inferno onde realmente merecia — e ele com um futuro completamente ferrado por conta disso.
Como não o respondi, Paulo se afastou ajeitando a postura na cadeira e ficou "quieto", mas podia ouvir o tamborilar de seus dedos nervosos sobre a mesa incessantemente, eu nunca o viu tão inquieto assim, e logo meus pensamentos a respeito daquilo foram desviados com a chegada da professora em sala.
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Três horários de aula já teriam se passado e finalmente era o tempo de intervalo. Eu não saí da sala de aula naquele dia, Paulo e Anna acharam melhor não incomodar e me deixaram descansando quieto ali.
No final do intervalo, Paulo teria levado para q sala o lanche que eu não desci para pegar. Bom, ao menos o que deu pra ele levar e o que geralmente eu sempre comia (uma barra de cereal e uma maçã) e depois de deixar em cima da mesa sem nada a dizer, voltou para seu lugar na sala se sentando e permanecendo quieto.
Com a chegada do professor Allex todos se assentaram nas carteiras e se notava um silêncio na sala, também era o único professor á qual todos respeitavam e deixavam a aula fluir em paz.
─ Bom dia!!! ─ Disse ele sorrindo como sempre, todos logo o responderam em tom alto e uníssono, somente eu que não consegui, m*l podia respirar e estava poupando esforços. ─ Como todos sabem hoje é dia de avaliação, as meninas por favor dirijam-se até a sala da professora Alice para serem examinadas. ─ Alice é outra professora de Educação física, uma ajudante pra ser mais exato. E digamos que o que aquela mulher tem de beleza, tem em dobro de vagabundagem, era impossível saber com quem ela ainda não havia feito nada naquele colégio, bem... Eu obviamente era um dos não "privilegiados" ainda sim, uma minoria.
─ Ah! não! ─ Exclamou o público feminino descontente com a notícia. E eu nem preciso especificar o porquê né? Ah! meninas... enfim, Allex havia dado uma leve risada e elas o obedeceram com certa frustração.
─ Bom! os meninos venham comigo. ─ O mais velho se pronunciou seguindo pra fora da sala e mais carteiras se arrastando, enquanto a sala ia se esvaziando eu ia lamentando mentalmente. "Droga!!! mil vezes droga!"
─ Vamos, Mikael? ─ Paulo chamou pacientemente enquanto eu me encontrava relutante em sair da carteira. Ao que se pronunciava, levou uma das mãos até meu ombro para chamar mais minha atenção já que estava no mundo da lua.
─ Uh! sim, vamos... ─ O respondi se forçando a levantar. O loiro até teria me oferecido ajuda para prosseguirmos, contudo, neguei sua ajuda seguindo caminho a fora até o ginásio onde seriam feitas as avaliações.
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Não muito tempo depois, todos passaram pela avaliação, e quando chegou minha vez, senti meu corpo trêmulo com medo de que o professor percebesse algo em mim. Respirando fundo me levantei e segui até a sala reservada que tinha no final do ginásio.
Chegando lá, o mais velho estava a anotar algumas coisas em uma folha, e tão logo notando minha presença ali o deixou de lado ajeitando a cadeira para o me sentar.
─ Mikael, nome de anjo não? ─ Ele sempre fazia esse tipo de coisa, e mesmo com um comentário tão bobo como aquele, conseguia arrancar um sorriso dos meus lábios e consequentemente sentia minhas bochechas queimarem ao que ficavam levemente ruborizadas. Talvez eu fosse apenas um menino bobo que ria de tudo e todos, mas aqueles pequenos gestos faziam a diferença no meu dia "nublado". ─ Está pronto?
─ S-sim... ─ Estava uma ova! Internamente não desejava estar ali naquele momento, não no estado em que me encontrava e tudo o que poderia acontecer caso o professor notasse algo de errado.
─ Então, por favor sente-se na cadeira ok? ─ Anui positivamente com um aceno de cabeça e segui até a cadeira. Enquanto que minha sua cabecinha de vento se perdia em meio a um turbilhão de perguntas: ─ Será que dá para ele perceber algo em meu corpo? E se perceber, o que faria? talvez como um adulto responsável ele chamaria o diretor e algumas enfermeiras para me analisar e assim tomar providencias cabíveis ao meu caso... ─ Eram algumas de várias questões que levantava em minha mente, e era isso o que eu mais temia. O dinheiro compra tudo, e quando eu digo "tudo" me refiro até ao ar que respiramos, e meu pai com certeza era um homem cheio de dinheiro. "Tomara que dê certo" assim pensava com o coração na mão.
─ Não está nervoso como da última vez né? ─ O mais velho perguntou com um sorriso no rosto fazendo com que eu ficasse mais corado ainda, mesmo ele tentando me acalmar, meu coração estava tão agitado como nunca, e a tremedeira também não ajudava muito. ─ Eu preciso que fique calmo Mikael, ou pode dar alteração na avaliação. Olhe nos meus olhos e tente respirar o mais fundo que conseguir e prender a respiração, depois de três segundos solte o ar bem... devagar, certo? ─ Olhei em seus olhos como ele mesmo havia pedido, logo em seguida senti a mão do mais velho sobre a minha.
Me espantei de certo modo, meu corpo não tinha uma das melhores respostas ao ser tocado daquele jeito, ainda mais sem nenhum aviso. Mas suas mãos eram quentes e macias, e não parecia ter maldade alguma vinda dele. Então tentei me desviar daqueles pensamentos e fiz o que ele pediu umas três vezes, não sabia bem o porquê, sempre que ele falava pra fazer aquilo, funcionava. Talvez pelo tom de voz suave e gentil que ele possuía e a sensação boa que transpassava pra todos a sua volta.
─ Agora sim está mais calmo, perfeito... ─ Disse o adulto, puxando pra mais perto uma mesa auxiliar de rodinhas, assim pegando um medidor de pressão e o colocando em torno do meu braço ao que bombeava a ponta do objeto, e um estetoscópio onde colocou as olivas nos canais auditivos e segurou com uma das mãos o auscultador enquanto que a mão livre seguia até a borda da minha camiseta. ─ Vou erguer um pouco pra poder ouvir seus batimentos cardíacos, está bem? ─ Ele avisou, mas engoli a seco pois não teriam se dado ao luxo de maquiar aquela região. Por sorte ou azar, o professor somente teria erguido o suficiente para que sua mão passasse por debaixo do tecido e finalmente posicionar o auscultador ao lado esquerdo. Não foi um processo demorado, Alex só teria analisado minha pressão e batimentos, anotando mais coisas no papel enquanto olhava um relógio de pulso. E tão logo aquele momento de tensão havia acabado para meu alívio. ─ Prontinho Mikael. Está liberado.
Disse o mais velho. Obviamente não esperei um segundo aviso e tão logo saí da sala.
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─ Mikael! ─ Ouvi alguém a me chamar, nunca tinha visto alguém tão animado com a minha presença quanto Anna, que logo veio correndo em minha direção saltando em cima de mim e me abraçando. ─ Bobo! porquê demorou? ─ Sem conseguir conter, acabei por soltar um gemido de dor, fazendo com que ela imediatamente me soltasse fazendo carinho em meus ombros de leve. ─ D-desculpa Mikael eu tinha me esquecido disso.
─ Ela esqueceu mas eu não... ─ Completou Paulo com as sobrancelhas franzidas e com os braços cruzados ainda a encarar com aqueles olhos acinzentados que mais pareciam enxergar o fundo da alma.
─ Não precisa se preocupar comigo. ─ Revidei também cruzando os braços e desviando o olhar com um leve bico nos lábios.
─ Como não?! Aquele porco imundo abusa de você e eu não preciso me preocupar, Mikael? ─ Não compreendia o porquê, mas Paulo sempre se preocupou de forma diferente comigo, desde sempre. Chegando a parecer mais um irmão mais velho do que meu melhor amigo.
─ Shhh! Paulo... ─ Anna fazia um pequeno bico levando o indicador aos lábios em sinal de silêncio olhando para o loiro, depois que ela percebeu a proximidade que estava dele, ela brevemente corou saindo de perto, e enquanto ajeitava o uniforme prosseguia. ─ Fale baixo, ninguém por aqui além de nós dois sabe a respeito do que se passa com Mikael.
─ Desculpe. ─ Murmurou Paulo engolindo a seco. Eu podia jurar ter notado em suas bochechas uma leve ruborização se formando ali devido a repreensão levada de Anna. Algo extremamente raro vindo dele. Aproveitando a oportunidade, rapidamente mudei o foco daquele assunto.
─ Está tudo bem, bom já já vamos embora certo?! Fiquei sabendo que hoje vão nos soltar mais cedo.
─ Sim! Bom não é? ─ Respondeu Anna alegre com a notícia enquanto batia palminhas de felicidade.
─ Uh! Agora que vocês tocaram no assunto, tenho que ir atrás da professora de biologia entregar um trabalho pra ela, mais tarde passo na sua casa como combinado, ok Mikael? ─ Concordei procurando na mente sobre o que se tratava aquilo e logo o vi sair andando.
─ Ah! sim... sim, combinado... ─ Naquele momento senti um arrepio gélido correr por toda a extensão da minha espinha, pois literalmente havia me esquecido que naquele dia teriam combinado de passar a tarde juntos jogando ou assistindo algo. Anna brevemente notando o meu estado de confusão não se conteve e se dispôs a rir da situação. ─ O que foi, hm?
─ Você esqueceu, não foi? ─ Anna me lançou um olhar m*****o, enquanto dava uma leve cutucado na minha bochecha.
─ Calada! Eu me lembrei... agora, mas lembrei.
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Enquanto Paulo seguia pela escola atrás da professora de biologia pra resolver os problemas da sua vida escolar, eu e Anna voltamos para sala de aula para pegar nossos materiais. Ficamos conversando no pátio até finalmente sermos liberados, tendo um sinal ecoando por todo lugar como aviso.
Depois disso e da longa caminhada que tive até chegar em casa, finalmente lá estava eu, parado olhando toda aquela bagunça que meu pai tinha deixado para trás. Como se já não bastasse ser um completo covarde era literalmente um porco imundo.
Cerca de uma hora e meia depois, finalmente havia conseguido terminar de ajeitar toda casa. Um esforço e tanto que somente teria feito devido a visita de Paulo naquele dia. Caso contrário não teria me forçado a tanto e certeza de que teria dormido a tarde toda, senão até o dia seguinte.
Sentado no sofá com uma postura completamente relaxada, senti meu estômago roncar fazendo com que minha mão repousasse sobre a barriga ao que meu rosto se tinha uma leve careta de fome. Não me lembrava a última vez que teria comido algo descente e definitivamente não tinha comido nada na escola além do que Paulo tinha levado pra mim naquele dia.
Me pus então a ir até a cozinha pensar em algo que pudesse ser feito com o pouco que tinha no armário. Ao menos naquela semana, aquele miserável tinha deixado dinheiro comprar o que necessitava. Ainda sim não queria sair naquele momento. Então apenas improvisei com o que tinha mesmo. Fiz uma massa simples com molho branco, a meu modo já que não sou um grande cozinheiro, mas era o suficiente pra matar a fome.
Depois que finalmente me alimentou, deixou a louça na pia e decidi tomar um banho rápido antes que Paulo pudesse chegar.
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Completamente despido no banheiro, voltava a minha realidade e o estado em que meu corpo se encontrava. Tudo aquilo fazia com que sentisse nojo e repulsa de mim mesmo, sempre achando que a culpa era totalmente minha, por minha mãe ter falecido logo depois do meu nascimento e talvez aquilo pudesse ser o motivo do meu pai me odiar tanto ao ponto de fazer o que faz.
Já em baixo d'água e novamente perdido em meio a tantos pensamentos não havia me dado conta de que já estava em prantos, chorando que nem um bebê. Minhas lágrimas rolavam pelo rosto se misturando junto as gotas de água que escorriam sobre minha cabeça até eu ouvir alguém bater na porta e a campainha tocar meio impacientemente.
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