Águas Claras, Viamão, RS. 1 de Maio de 1946.
Águas Claras é uma pequena localidade pertencente ao município de Viamão, região metropolitana de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul. Devido algumas empresas e uma filial de uma emissora de rádio estarem se instalando ali, a vila estava crescendo e recebendo novos moradores.
Arlete era uma jovem professora de 18 anos. Ela vivia com a família na casa que foi de seus avós paternos, e trabalhava na escola do bairro. Seu pai era radialista e sua mãe era costureira, e em algumas Sextas-feiras as duas cantavam na rádio que ficava em Porto Alegre. José Aldo apresentava o programa do fim da tarde, mas o alvo do locutor era o Tribuna da Manhã, o primeiro programa que ia ao ar das seis às oito, e o mais visado entre os apresentadores da rádio.
Margareth trabalhava em casa, fazendo vestidos, saias, e outras roupas femininas. Mais raramente ela fazia vestidos de noiva e debutante, e já estava treinando para quando a filha única fosse subir ao altar, pois queria que quando fosse a vez de Arlete ela fosse a noiva mais linda que já se viu.
Eram 5:30 da manhã, e Arlete foi acordada por batidas nervosas na porta da frente de sua casa. Era o rapaz que trazia os jornais.
Ele deixava um exemplar com seu pai e depois seguia para a venda do José Carlos, que ficava lá na faixa, para levar os outros jornais.
Em seguida Margareth levantou e Arlete ouviu um burburinho vindo da sala. A voz de seu pai parecia nervosa, e ela levantou da cama e pôs um robe por cima da camisola, indo até a sala ver o que estava acontecendo.
- Bom dia pai, bom dia mãe. Que que houve?
- Bom dia minha filha. Olha isso.
José Aldo estendeu para o a filha a edição da Zero Hora daquela Quarta-feira. Em letras garrafais lia-se: “ EXTINTAS TODAS AS MODALIDADES DE JOGOS DE AZAR EM TODO O TERRITÓRIO NACIONAL” .
Logo abaixo dizia em letras menores que a proibição se deu em razão do decreto-lei 9,215, assinado no dia anterior pelo então presidente Eurico Gaspar Dutra, sob argumento de que “O jogo é degradante para o ser humano”.
Arlete leu aquilo com espanto, e levantou o olhar para os pais, que seguiam discutindo sobre a manchete.
- E agora? Do que vão viver essa gente? - Questionava a mãe.
- Minha nossa. Esse homem não serve pra presidente! Imagine tirar o jogo de todo o país! O que ele tem na cabeça?
- Mas pai. Isso deve ser só temporário. Isso não vai resistir muito tempo, o povo adora jogo! – Disse Arlete.
- Não sei minha filha, não sei. Vamo arrumar o café que daqui a pouco eu já saio. Hoje a rádio vai tá um inferno, misturado com ninho de rato!
Arlete foi até o fogão à lenha e o acendeu, pondo a água para ferver. Colocou o pão na mesa e depois foi para o quarto se trocar. Colocou uma saia preta e uma camisa branca, além dos tradicionais sapatinhos delicados. Tirou os papelotes do cabelo e ajeitou os cachos em um penteado simples. Tomou café junto dos pais, e depois saiu em companhia de José Aldo até a escola.
- A Agnes não vem? – Perguntou seu pai olhando para trás da casa.
- É pra ela vir meu pai.
De repente uma coisinha ainda mais franzina do que Arlete despontou na curva da rua. Agnes era professora também, e ela e Arlete foram juntas para Porto Alegre estudarem o Magistério. Ela tinha apenas um ano menos que a amiga, mas por ser mais baixinha e ter um rostinho infantil, não havia quem não perguntasse se Agnes tinha idade para exercer sua profissão. Irritadíssima ela dizia que sim, que já iria completar 18 anos, e que se formara na Escola Normal aos 14.
Agnes vivia na mesma rua de Arlete, mas sua casa ficava após uma curva.
- Bom dia tio Zé, bom dia Letinha. – Disse a jovem se aproximando.
- Bom dia minha filha. Vamos que estamos atrasados.
Lá no mais íntimo do coração Arlete morria de inveja da amiga. Agnes era delicada, tinha sobrancelhas finas, olhos azuis esfuziantes, cabelos loirinhos bochechas cheinhas que faziam seu rosto ser ainda mais angelical, e para arrematar ela tinha sardas no rosto.
Arlete tinha 1,63 de altura, cabelo comprido e preto. Exatamente n***o como a noite, e ondulado, difícil de domar. Seus olhos eram verdes, mas um verde desmaiado, não que causasse destaque ou chamasse a atenção. Suas sobrancelhas eram grossas demais, e os dentes da frente eram levemente proeminentes. Desde a puberdade, quando seu corpo começou a mudar, ela se dedicava a ficar horas e horas em frente ao espelho que havia numa das portas de seu roupeiro procurando defeitos em sua aparência.
Os três seguiram de carro até a RS 040, que cortava a vila e levava até o litoral. Seu pai as deixou na margem da estrada e se dirigiu até a rádio. Arlete odiava atravessar, pois a via era perigosa e vinham veículos dos dois lados. Não raro vinham correndo e já haviam acontecido acidentes fatais ali e nas imediações.
- Bom, apurem o passo que já tá na hora da aula. Vão com Deus.
- Tchau pai.
- Tchau tio.
José Aldo chegou na rádio e já mostrou aos superiores o exemplar do jornal, que após ser visto pelo apresentador do primeiro programa passou de mão em mão entre todos os ali presentes.
A notícia foi ao ar, e nos corredores da rádio só se falava disso.
As meninas chegaram na escola, e Arlete falou com a diretora sobre o que leu mais cedo. A mulher comentou que tinha um irmão e um primo que trabalhavam em cassinos, e que estava aflita por eles.
As aulas aconteciam de manhã e de tarde, e no fim do expediente Arlete e Agnes se encontraram com Inês, a amiga que completava o trio.
A jovem tinha 22 anos e era filha de José Carlos, o dono da venda. Naturalmente Inês fazia parte de uma das famílias mais ricas de Águas Claras.
Ela também estudou Magistério em Porto Alegre, mas se formou bem antes das amigas mais jovens. Ao contrário de Agnes, Inês era alta. Tinha cabelos escuros e curtos, e seu jeito e porte eram de alguém que inspirava respeito e autoridade. As amigas costumavam dizer que ela sucederia dona Ondina como diretora da pequena escola.
Inês dizia que queria fazer faculdade em Porto Alegre e depois se casar. Arlete retrucava que ela devia casar logo, pois já estava passando da idade e depois correria o risco de ninguém lhe querer. Inês ria debochada e dizia que Arlete era muito inocente, já que ela era de uma família muito rica e jamais lhe faltariam pretendentes.
No Sábado anterior, Davi, irmão mais velho de Inês, havia se casado com a filha de um dos funcionários da rádio. Durante a festa um rapaz vindo de Edmundo Abreu, localidade pertencente à Águas Claras porém mais distante do Centro, tirou Inês para dançar. Dançaram apenas uma música, e algumas pessoas notaram que ela estava desconfortável ao lado dele. Diva, sua mãe, interveio e levou a filha para se sentar novamente. O rapaz não gostou e bebeu muito, causando uma briga que foi apartada e terminou com a expulsão dele e de seus familiares.
As três meninas saíram do serviço, mas antes decidiram fumar. Inês morava na faixa, atrás do mercado de seus pais, portanto a casa dela era a mais próxima. De repente escutaram alguém se aproximando à cavalo, e viraram pra trás. Era o mesmo homem que dançou com Inês na festa.
O rapaz parou com o cavalo em frente à elas, impedindo-as de saírem.
- Buenas tarde!
Agnes e Arlete gelaram de medo, mas Inês reagiu imponente, não se deixando intimidar.
- Buenas. Excelentes. Ficarão ainda melhor quando todos estivermos em casa. Saia e nos deixe passar.
Desaforado, o homem não se deixou vencer. Mesmo de cima do cavalo foi possível sentir o fedor de cachaça, e olhando dava pra ver em seu rosto que ele estava muito mais bêbado do que na festa.
- Meu nome é Hélio.
- Tu já disse pra mim no Sábado.
- E tu lembrou. Achei que tivesse esquecido.
- Não. Não esqueci. Saia, queremos ir pra casa.
- Ainda não. – Retrucou ele descendo do cavalo. – Inês, eu quero casar contigo. Tô indo lá na tua venda pedir pro teu pai.
Inês riu.
- Qual é a graça?
- Eu não quero. E se eu não quero o meu pai não vai nem te escutar. Tu tá bêbado, vai embora pra casa.
- Tu não entendeu. Eu disse que quero casar contigo, e eu sei que ninguém nunca pediu a tua mão. Então se tu não quiser perder tua reputação tu tem que me dizer sim.
- Não! Não! Não e não! Eu disse não! O contrário de sim. Ou por não ter ido na escola tu não sabe o que é a palavra contrário ?
- Não me provoca. – Advertiu o homem. – Anda, sobe no cavalo e vamo lá.
- Eu não vou a lugar nenhum contigo, muito menos subir num altar. Eu nunca me casaria com um bebum que não sabe nem como chegar numa moça!
- Inês, não provoca ele que vai ser pior. – Advertiu Agnes em voz baixa.
Arlete havia até esquecido como se formava uma frase, tamanho medo que estava sentindo.
- Anda. Sobe no cavalo. – Disse Hélio estendendo a mão para a moça.
- Não! – Berrou ela. – Eu vou contar isso pro meu pai! Sai de perto de mim!
- É assim?
- É, e vai ficar pior se tu não sair da minha frente!
O homem subiu, mas antes de ir embora debochou mais uma vez.
- Sabe o que acontece quando não se doma cavalo chucro?
- Sai daqui! – Gritou Inês apontando para a direção de onde ele veio.
- A gente mata. Por que não serve pra nada.
- Sai!
O homem foi embora e as três meninas saíram correndo.
Chegaram na esquina e Arlete começou a chorar.
- Eu vou lá na rádio contar pro meu pai. Isso não pode ficar assim.
- Não. Deixa que eu falo pro meu pai primeiro Arlete. Imagina se eu vou ter medo de um vagabundo nojento desse. – Proibiu Inês.
- Inês, a Lete tem razão. Sabe lá o que esse doente é capaz de fazer? – Alertou Agnes.
- Um bebum se aproxima de mim, tonto da cachaça e me pede pra subir num cavalo com ele. Ele tá errado e eu tenho que ter medo?
- Inês, cuidado. – Pediu Arlete mais uma vez.