04 - Suspeitas

1067 Words
— Ainda falta muito? — perguntei, sentindo as pernas latejarem. Eu sempre fui muito atlética. Eu tinha músculos o suficiente nas coxas e nas panturrilhas para não me deixar abalar por qualquer caminhada. Mas, ou eu não estava na minha melhor forma, ou não pensava que uma subida tão íngreme pudesse me deixar com os pulmões pegando fogo e as pernas oscilando com joelhos trêmulos. A segunda opção deveria ser a mais sensata, porque Mariana praticamente corria morro acima, enquanto eu me arrastava com a mochila nas costas. Por várias vezes eu tive de regular as fivelas da bolsa, querendo achar uma posição que não me deixasse tão empertigada, mas a coluna já doía o suficiente para que eu soubesse que levariam dias até que eu me sentisse normal de novo. Como já era de se esperar, assim que Mariana e eu começamos a subida, fomos interceptadas por alguns garotos nas esquinas; conhecidos pelo termo pejorativo de "Campana". Não que eles estivessem vendendo alguma coisa e fossem insistentes demais para que comprássemos. Eles apenas estavam fazendo o seu trabalho, como um deles disse. Ao perguntar quem eu era e o que estava fazendo ali. Eu sabia que o trabalho daqueles adolescentes consistia em saber o momento da chegada da polícia e evitar que eles subissem. Os garotos não usavam armas, mas eles tinham seu próprio meio para atrasar o trabalho da polícia. Só que Mariana foi muito sagaz ao dizer que eu era uma parente e que estava vindo para morar, e que ela mesma pediria permissão ao Picasso para que nenhum m*l entendido ocorresse novamente. Eu não entendia muito bem a sua posição dentro do morro, mas os garotos aceitaram a desculpa com tanta facilidade que eu fiquei com receio de seguir Mariana. Ela estava infiltrada naquele lugar há um ano. O que não poderia ter acontecido em tanto tempo? Ela poderia muito bem já estar do lado oposto da polícia. Poderia estar tentando me atrair para a mesma emboscada que matou o soldado Oliveira. Nada a impediria disso. A mulher quase nunca frequentava o batalhão, agora que tinha seus próprios meios de relatar tudo o que descobria. E, mesmo assim, ninguém a via como um alvo de trairagem. Apenas eu via. — Ainda falta uma boa parte do morro para subirmos — disse Mariana, cumprimentando com alegria uma senhorinha idosa que descia junto de um adolescente espinhento. Minha irritante colega de trabalho me observou. — Nossa, Juju, para alguém tão surpreendente, você parece bem cansada, hein? — Não estou cansada — falei em tom rouco, desesperada por um gole de água. Eu cobicei um picolé que vi uma criança chupando na calçada, e pensei se arranjaria problemas demais se a atacasse em busca de algum alívio para aquela sede excruciante. Bem ao lado da criança, como se não estivesse fazendo nada, um traficante que eu entendi como sendo o famigerado "Vapor", estava negociando alguns pinos de drogas com um morador. Ambos falavam baixinho e de modo conspiratório, mas me viram olhando e resolveram descer o beco. Eu desviei o olhar. — Posso subir e descer esse morro pelo dia todo, se eu quiser. — Ui — debochou Mariana, dando uma risadinha. Eu tirei a mochila e a impulsionei para cima, tentando acertar as costas dela. Mariana facilmente se esquivou, fazendo questão de bater a minha mala no meio fio. — Ah, Juju, pare de ser tão ranzinza. Já estamos chamando atenção demais só por estarmos, inocentemente, subindo o morro. — O que foi que aconteceu para estarem tão atentos assim? — questionei, sentindo minha garganta oscilar. Mariana deu alguns passos para trás, nivelando nossos corpos. Ficou nítido que ela queria contar tudo no modo mais sorrateiro possível, ainda que sua expressão perdurasse naquela máscara de deboche. Na calçada, bem no momento em que ela abriu a boca para falar, dois homens desceram o morro. O chinelo que eles usavam produziam sons estridentes e ecoados pela rua inteira, deixando bem claro que eles estavam chegando e não estavam com um pingo de humor. Os homens nos observaram apenas uma vez, antes de continuarem descendo em direção aos garotos em sua vigília eterna. Os homens tinham todos aquela aparência vergonhosa dos moradores da favela. Cabelos curtos, sobrancelhas com risco, bermudas finas e camisas largas. Sem falar nas inúmeras tatuagens no rosto, dedos, e pescoço. Era muito fácil identificar aquelas pessoas em qualquer outro meio. Mariana, notei apenas naquele momento, também ostentava uma tatuagem no pulso. Eu nunca reparei muito bem nos desenhos, porque dentro do batalhão, ela usava camisas de manga comprida. Eram flores ao redor de uma caveira com a boca aberta, mas pelo tamanho que não alcançava mais do que um ovo, era bem discreta e fácil de ser escondida. Ali na favela, a tatuagem parecia brilhar como uma marca de orgulho. — Na noite passada, alguns membros da milícia rival invadiram o morro — contou Mariana em tom conspiratório. Ela praticamente sussurrava. — Há boatos de que tentaram m***r alguém do alto escalão e ele foi interceptado. O cara sumiu. Ninguém sabe direito para onde ele foi levado, mas eu apostaria no tribunal do crime. Enfim, depois de ontem, a vigilância está muito mais fortificada. E nem é por conta dos policiais. — Mas por que alguém de outra favela estaria entrando aqui? — questionei. — Será que não sabem que a polícia está muito empenhada em capturar o alto escalão desta comunidade? — Sim, é claro, mas, nada impede que eles não estejam tentando algum benefício ao usar a polícia — disse ela, observando atentamente se alguém estaria se aproximando. — Sem falar que é quase um milagre quando o Picasso deixa o conforto e a segurança da residência dele para comparecer a alguma festa, e a noite passada foi a oportunidade perfeita para ele ser pego. É uma pena que tenham enviado alguém tão despreparado. O garoto simplesmente caiu na frente dos seguranças dele... É um milagre se ainda estiver vivo. Eu nem cogitava aquela possibilidade. Eu havia sentido na pele que o tribunal do crime não fazia justiça alguma. O garoto já deveria estar morto. As chances de capturar Picasso apenas diminuíram ainda mais. E eu fiquei irritada ao extremo por não ter chego na noite anterior. Nada no mundo me impediria de capturar Picasso com minhas próprias mãos, se ele desse o azar de surgir em meu caminho outra vez.
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