Quando fomos deixadas há muitas quadras antes do destino, eu notei que a região em que se encontrava a favela do Mandela fazia jus ao nome africano.
Todas as pessoas que moravam ali ao redor, tinham aquela expressão de sofrimento contido no rosto, de quem acordava muito cedo e dormia muito tarde e mesmo assim não conseguia conforto algum na vida.
A falta de saneamento básico já era nítida logo nos primeiros córregos que Mariana me fez atravessar com uma mochila pesada nos ombros. Ela estava alegremente arrastando a minha mala por cada poça de lama e sujeira pela qual passava.
Ela acreditava mesmo que eu tinha colocado roupas ali dentro. m*l sabia ela que só era o meu material de trabalho mais caro.
Não que eu tivesse levado armas para o complexo — pelo menos, não na quantidade normal que eu usava —, e não que eu pensasse que em algum momento poderia usar armas para me defender sem ter de explicar o motivo de tê-las.
Eu apenas tinha feito o possível para levar um computador (incluindo a CPU que Mariana batia constantemente no chão a cada passo que dava), celulares com rastreador diretamente conectado na central de polícia, e pequenos aparelhos que poderiam me salvar numa fuga precipitada.
É claro que a minha estranha colega de trabalho não fazia a menor ideia de que aqueles itens eram muito mais valiosos e caros do que roupas, mas fazia toda a sua questão de andar batendo em tudo e atravessando buracos com água.
— Você não deveria estar me contando tudo o que já sabe? — questionei em voz ríspida. Mariana tinha permanecido comigo durante toda a minha transformação, e deu um feedback preciso sobre o quão parecida com as garotas comuns da favela eu estava. Só que, ao amanhecer, ela sequer me deu qualquer orientação do que eu precisava me preparar para enfrentar. Ela sequer se preocupou em me dizer qual papel eu realmente desempenharia naquele morro. Eu sabia que tinha de fingir ser uma parente bem distante dela e com problemas familiares o bastante para ser exilada na favela, só que a maldita mulher nem se deu ao trabalho de me situar. — Ou será que preciso lembrar a você que ainda sou a sua superior?
— Não precisa, capitã — disse ela, com uma petulância que quase me fez tirar a mochila e arremessá-la em sua cabeça. Mariana abriu um sorriso largo, cumprimentando pessoas que passavam ao nosso lado na calçada. A rua era bem estreita, mas se erguia na lateral esquerda para um morro onde as ruas eram ainda mais apertadas. Seria impossível passar dois carros ali. Por isso a ação da polícia era tão dificultada. Mariana me lançou um olhar de soslaio, esperando ao meu lado para atravessar a rua. O movimento dos carros e dos ônibus era constante ali. — Eu apenas estou esperando para chegar em casa, e não termos tantos olhos e ouvidos ao redor para contar exatamente o que a senhorita precisa saber.
— Sim, mas pode, e deve, pelo menos me dizer qual vai ser o meu nome nesse lugar — exigi, sem fazer um pingo de esforço para soar menos indelicada.
Um músculo tremeu ao redor do sorriso de Mariana, como se ela estivesse também se esforçando muito para não bater com a minha cabeça na parede mais próxima. Estávamos quites nos pensamentos homicidas, então.
— O seu nome ainda será Juliana, só que Amaral, por conta do meu pai — disse ela, erguendo minimamente o queixo. A luz do sol da manhã quente do Rio de Janeiro brilhou contra a sua pele clara, e beijou suavemente a minha pele alguns tons mais bronzeados que o dela. Mariana cumprimentou com um gritinho o motorista de um carro que parou para que atravessássemos, e a buzinada nada discreta do condutor me deixou ciente de que eles deveriam se conhecer. — Mas é bom se acostumar a ser chamada de Juju... Todo mundo aqui tem um segundo nome para ser chamado, os maiorais usam um vulgo.
Eu sabia disso. Tinha pesquisado seriamente sobre Erick, vulgo Picasso, que era ninguém mais e ninguém menos do que o dono do morro. Eu sabia sobre a idade, as características físicas, e até os gostos pessoais daquele homem. Não que ele algum dia já houvesse sido preso pela polícia.
Eu nunca vi um traficante tão conhecido com uma ficha tão impecável. O ordinário era apenas esperto demais. Todos ao seu redor já haviam sido presos, até seu irmão, mas ele não. Picasso era extremamente inteligente e sagaz. Ele nunca se deixava sair daquele maldito morro. Ele criou uma fortaleza com seu tráfico e fez com que cada morador daquele complexo servisse como murro de arrima. Eu pesquisei sobre tudo daquele homem.
Até mesmo o procurei em suas redes sociais. Só que, como todo bom bandido que se preze, o maldito não tinha um f*******:. Eu não sabia muito bem se ele possuía alguma mulher, se tinha algum ponto fraco a ser usado, mas, estava disposta a tudo para derrubá-lo de seu trono.
— Bem, se o dono do morro se chama de Picasso, devido aos seus dons na cama... — Comecei a dizer em tom baixo, porque já estávamos terminando de atravessar a rua, e a subida do morro estava sempre cheia de adolescentes sentados nas calçadas numa vigília constante. — Como sugere que eu me chame, devido aos meus dons inalcançáveis para qualquer mortal?
Eu só tinha falado daquela forma porque Mariana era um simples soldado que causava mais problemas do que os solucionava. Era atrapalhada, gostava de fazer piadinhas fora de hora, e já havia recebido inúmeras advertências pela minha parte.
Estar ali, dependendo dela, me deixava com uma sensação terrível de inferioridade. Eu queria sair por cima. Deixar bem claro que eu era boa demais para um lugar daqueles, e ainda mais compartilhando uma casa com ela.
— Ah, pensei em Juju do prexecão — disse Mariana, gargalhando. Eu a observei com a minha melhor expressão de asco. Como resposta, a maluca mulher resolveu segurar minha mala com uma única mão e me abraçar pelos ombros com a outra. — Ah, vamos lá, Juju... Não vai demorar nada para que o apelido acabe se espalhando pelo morro todo. Vou me empenhar para fazer isso acontecer. Em nome da nossa... amizade... Sabe?
— Sei — rosnei, odiando cada segundo em que Mariana achava que estava no controle da situação.