— Bem vinda ao seu novo lar, Juju — cantarolou Mariana, abrindo um portão de ferro vermelho extremamente barulhento. A casa ficava abaixo do pavimento, como se fosse um porão. Um jardim crescia nas laterais de um caminho em concreto que levava para a pequena casa sem reboco ou tintura. Era humilde ao extremo, e num passarinho cantava tristemente em sua gaiola presa à janela com grades de ferro. Era tão estranho como as decorações e o tipo de janelas ou portas na favela eram tão diferentes da cidade grande. Eu me senti como uma princesa numa fazenda, completamente destoante da situação. Eu me virei para Mariana, descendo os degraus de pedra e parando no meio do caminho de concreto. Ela ainda estava com o portão aberto, e me lançou um olhar de indagação. — Você esperava uma casa melhor?
— Eu esperava uma casa nos níveis mais baixos, na verdade — confessei, mordendo a parte interna da minha bochecha. Então me virei para a porta aberta da casa, que além de ser de ferro, também possuía grades na frente de um vidro multicores. — Eu não achei que você pudesse ser tão influente nesse lugar, Mariana.
Eu sabia que não era certo duvidar das pessoas dentro do meu próprio local de trabalho. Há um ditado que diz que se você não pode confiar nas pessoas que são pagas para lhe proteger, então não pode confiar em mais ninguém. Só que eu tinha um passado sombrio, eu perdi pessoas com quem eu me importava, e tudo foi por culpa de uma emboscada.
Nada me surpreenderia se eu descobrisse que uma traição ocorrera primeiro do que a emboscada. Eu tinha medo do que faria quando descobrisse que perdi tudo de importante em minha vida por alguém além do que o dono do morro do Mandela. A minha esperança era a de confrontá-lo e descobrir o que realmente havia acontecido. Mas, se existisse a possibilidade de algum traíra, eu apostaria todas as minhas fichas em Mariana.
A mulher tinha conseguido o cargo na polícia através de uma recomendação do seu pai. Eu não podia ser injusta ao dizer que ela só percebeu no lugar por demonstrar menos do que merecimento. Mariana mereceu, sim. Eu a vi atirar e entrar em combate com técnicas de artes marciais além do que aprendíamos em treino.
Ela sabia se virar muito bem se algum dia se visse sem armas ou sem qualquer chance de defesa. A mulher era muito mais do que um rostinho bonito. Só que alguma coisa nela me incomodava profundamente. Eu a detestava com todas as forças. E eu acho que parte disso vinha daquela futilidade que ela demonstrava — percepções que tive muitos meses antes de vê-la sendo infiltrada na favela.
Mariana sabia como conseguir qualquer coisa de um homem, e se tornava amiga com facilidade das mulheres, isso sempre me disparou inúmeros gatilhos de alerta.
— Eu não tenho influência alguma — disse ela, endurecendo sua expressão. Mesmo zangada, ela permanecia bonita. Me impressionava de que ainda não houvesse sido reivindicada por algum traficante. Era conhecimento geral de que eles poderiam escolher a dedo uma mulher e fazer dela a sua fiel e exclusiva. Talvez fosse aquela futilidade nata em Mariana que a preservava de ser um alvo fácil para os homens. — É a minha avó quem tem um certo poder na visão dos outros. Ela é a vovó Telma para os traficantes do alto escalão, isso deu alguns benefícios.
— Não poderiam ter ajudado na reforma da casa também? — questionei.
Mariana fechou o portão e deu um passo para o degrau abaixo.
— Cuidado com a língua, Juju. As pessoas na favela podem se ofender com muita facilidade quando a crítica é feita por alguém de fora.
— Não sou alguém de fora, esqueceu, Mari? — retruquei, dando um sorriso tão falso que minhas bochechas até doeram. Mariana imitou a mesma expressão de ranço que eu fazia ao vê-la forçando simpatia. — Agora, se você não se importar, eu gostaria de conhecer a casa e a minha nova vida. Podemos começar com as apresentações. Onde está a sua avó?
— Alimentando as galinhas — disse ela, arqueando uma sobrancelha. Era como se me desafiasse a considerar que sua avó pudesse estar na casa de algum traficante no momento. Eu não confiava em nenhuma delas, mas não sugeriria algo tão baixo assim. — Mas, antes de vê-la, é melhor que conheça o seu quarto e as regras da casa.
— Pode começar a falar — pedi.
— Não aqui — disse Mariana, dando uma olhada através do muro da casa. O acabamento era ainda mais precário do que toda a casa, e alguns pequenos furos davam visão para as casas vizinhas. Apesar de ser um lugar murado, a impressão que dava ao notar o bolor subindo pela parede e as nítidas marcas de erosão na terra, é que não demoraria muito para ocorrer um desabamento. Eu nem queria imaginar como é que a situação ficava em dias de chuvas. — Vamos conversar lá dentro. Nunca conversaremos sobre algo sério fora de casa, entendeu?
Eu assenti. Não daria o braço a torcer em dizer em voz alta de que respeitaria qualquer ordem de Mariana. Ela pertencia a um cargo menor do que o meu. Ela tinha de escutar o que eu tinha a dizer, e não o contrário.
Mesmo assim, fiz um gesto com a cabeça para que ela seguisse na frente, e mesmo bufando, Mariana passou por mim, puxando minha mala aos arranques para dentro de casa.