07 - Vovó Telma

1031 Words
A avó de Mariana deveria estar viva por um milagre. A mulher era bem velha. O suficiente para já estar curvada pelo tempo, possuir aquele cheiro característico de naftalina, e não ter mais um único dente na boca. Ela deveria comer refeições especiais, era a única coisa que explicaria a sua forma rechonchuda e bem alimentada. Os fundos da casa davam para um muro também cheio de buracos, através destes buracos, reparei que algumas crianças brincavam na casa vizinha. O barulho que elas faziam estava irritando um cachorro em algum outro canto. E, ali nos fundos, a algazarra era tanta que eu dei graças a Deus pelo quarto que compartilharia com Mariana ser um dos primeiros cômodos da casa. Ao contrário de nós, a idosa tinha a janela do seu quarto bem direcionada para os fundos. — Ela nunca deixa as galinhas sem vigília — sussurrou Mariana, deixando-me bem ciente de que apesar de não falar, a audição da idosa deveria ser muito boa. — Teve uma época em que um garoto andava pulando muros para pegar galinhas. A vovó sempre foi conhecida no bairro pela sua venda de ovos. Tem mercadinhos que até disputam pela mercadoria dela. Então, quando esse garoto invadiu a casa dela, ele foi pego pelo patrão e foi levado "pras ideias". Foi o motivo mais bobo que já vimos alguém ser julgado, mas, ele mereceu. A vovó trata as galinhas como se fossem filhas. Imagine o que é ter um filho levado por alguém que invade a sua casa durante a noite? Ela ficou louca. Chorou durante dias depois que descobriram que a galinha foi morta. — Talvez o garoto estivesse com fome? — sugeri. Mariana soltou um muxoxo, balançando a cabeça em sinal negativo. — Tem pessoas aqui dentro que mancham totalmente a nossa imagem, sabe? Ele não precisava da galinha para comer. Ele queria vender, e quem comprou queria comer, mas não sabia da procedência do produto. Muita gente fica de cara amarrada por conta dos altos preços do mercadinho, só que ninguém reconhece que é uma baita sorte que tenhamos comida fresca e um local para frequentar ainda dentro do morro. Quase tudo está lá fora, e nem todo mundo pode ter o privilégio de sair livremente nas ruas. Só que as drogas é que ferram tudo. Esse pessoal viciado faz qualquer coisa por uma pedra de c***k. Então, morar com a vovó depois desse incidente, foi a desculpa perfeita da qual a polícia precisava. Nunca desconfiaram dos motivos para eu estar aqui. Eu até acreditaria na palavra de Mariana, e no quão empenhada ela estava para demonstrar o seu valor à polícia. Só que a maneira como ela disse "nossa imagem" me deixou levemente encucada. Eu jamais chamaria aquela gente de nossa. Eu não era como eles. Eu jamais seria uma das moradoras felizes daquela favela. Mariana, no entanto, parecera aceitar o papel com tamanha facilidade que nem reparava direito no que dizia. A garota era boa em combate e em armas, mas, se precisasse passar por um julgamento, estava condenada. Ela entrava em contradições demais. Nem percebia quando falava além da conta, e nem fazia questão de se corrigir. Ela simplesmente não se importava. Atrapalhada que só. — Oi, Telma — cumprimentei a idosa, aproximando-me do cercadinho que ela tinha feito para os poleiros de suas galinhas. Com um pequeno saco de ração em mãos, a mulher me observou, fazendo uma expressão de completa confusão. Eu sabia que ela tinha escutado, mas percebi que a sua expressão era mais um lamento em ter de tentar se comunicar com alguém que talvez não a entendesse. Eu repeti a saudação, dessa vez, em linguagem de sinais. A idosa sorriu. Eu ergui as mãos novamente, enquanto falava: — Eu sou mais uma das pessoas enviadas para esta casa. Meu nome é Juliana, sou capitã. Estou aqui em serviço, mas você pode conversar comigo, se precisar de ajuda ou de qualquer outra coisa. Prometo não atrapalhar a sua rotina, mas, se você quiser companhia, pode me avisar. A senhora deu um sorriso largo, sem abrir a boca. É claro que ela tinha vergonha de expor a falta de dentes. Mas uma de suas mãos trêmulas ergueu-se até a sua testa, e ela a afastou depressa, numa clara expressão de "Obrigada". Eu também dei um sorriso, enquanto ela tornava a falar através de gestos muito vagarosos e oscilantes. "Minha neta precisava mesmo de companhia. Eu não aguentava mais ter de fingir que a escutava falar sobre o valor que ela havia gasto na manicure em suas visitas semanais. Espero que você consiga ser a amiga que ela tanto precisa que eu seja." Fui tomada por um sentimento de pena. Não por Mariana. Eu provavelmente bateria na cabeça dela por ficar incomodando a senhorinha com coisas tão fúteis quanto as suas unhas. Pelo amor de Deus! Mas, fiquei com pena da senhorinha, tendo de estar na companhia de uma neta que nem se dava ao trabalho de alimentar as galinhas para que a mulher ficasse sentada ou deitada. Ela era muito velha. Os cabelos brancos já estavam ralos e espigados, demonstrando que em outra época deveriam ser cheios e brilhantes. Ela andava com muita dificuldade, mas sempre esbanjava uma expressão de felicidade genuína em seu rosto. Eu gostei dela de imediato. Foi como reencontrar um parente distante. Antes de me afastar, eu disse mais algumas palavras, e ela tornou a agradecer. Os seus olhos, azuis como os da neta, brilharam de alegria ao perceber que além de uma companhia, ela tinha encontrado também uma tradutora a altura. — Agora que as apresentações foram feitas — disse Mariana, me observando com leve suspeita. É claro que ela não ficaria nada feliz de ver que monopolizei totalmente a atenção de sua avó. Eu me perguntei se a distância entre elas era apenas por Mariana não conseguir se comunicar ou algo mais profundamente sentimental. — Vamos para dentro, quero contar tudo o que já sei e tudo o que ainda pretendo descobrir. — Agora, sim, estamos chegando num acordo — retruquei, esboçando a mesma expressão debochada em seu rosto. Então, gesticulei em direção à casa. — Faça as honras, Mari.
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