— Eu descobri que, antigamente, cada turno dos aviõezinhos começava às quatro horas da manhã e às onze da noite, mas que eles tiveram de mudar este horário para outro menos conhecido pelo resto dos moradores — disse Mariana, sentada na cama. Eu me sentei na sua cadeira bamba de estudos, mas, estava quase considerando a hipótese de bater a cabeça novamente só para não correr o risco de cair de b***a no chão. Tentei me equilibrar no banquinho e focar minha atenção apenas em minha colega de trabalho. — Nunca antes de todos acordarem, e nunca depois de todos dormirem. Eles sabem que costumamos tentar invadir o morro no período entre estes turnos, por isso, estão começando a abastecer o morro em horários que ninguém acredita ser possível. Eu tenho uma teoria de que seja pela tarde. É complicado dar uma certeza, porque eu nunca consegui nada tão concreto com o Neguinho.
— Quem é Neguinho? — perguntei.
— É um dos seguranças do patrão — explicou ela, arregalando de leve os olhos. — O cara é, literalmente, a pior pessoa para se ter como inimigo, Juju. Eu me aproximei de muitos que não o consideravam boa gente, e todas essas pessoas, sem exceção, estão mortas agora. A maioria delas tinha família, e essas famílias tiveram um prazo para sair do morro. O cara é complicado. Estou falando sério. Se tem alguém que precisamos tomar muito cuidado, é o Neguinho. Sem falar que ele percebe muito facilmente quando uma pessoa está m*l intencionada. Ele é um dos seguranças mais antigo do chefe. É a pessoa que mais sabe de toda a caminhada de Erick Freitas, e ele é o homem que poderíamos ganhar muitas informações ao levá-lo para a polícia, só que ele também tem seus próprios capangas. É um jogo de tabuleiro sem fim nesta favela. Estou avisando isso porque eu conheço a sua necessidade de se provar melhor do que todo mundo. E eles não são como qualquer bandido que já enfrentamos.
Mariana e eu já tínhamos estado em operações familiares anteriormente. Ela esteve ativamente inserida num confronto com refém que eu tive de intervir. Como agente, ela conseguiu entrar no morro e capturar os bandidos, mas apenas eu ganhei alguma condecoração pelo sucesso na missão. Apesar de tudo, ela ainda parecia se orgulhar pelo feito.
Não era para qualquer um ter de entrar na favela e sair ileso, ainda mais levando vítimas sã e salvas consigo. De qualquer forma, eu não pude deixar de me sentir ofendida pelas suas palavras. Eu não tinha uma necessidade de estar sempre querendo ser a melhor. Eu era a melhor. A verdade é que nada resistia se eu me empenhava para acabar com algo. Só que ninguém me interpretava do modo correto.
— Certo, e em relação ao Gerente da boca? Quem é ele? — perguntei, semicerrando de leve os olhos num buraco que encontrei na parede abaixo da cama. Algum bicho estava se movendo ali. Eu rezei para ser um rato. Uma aranha. Uma barata. Ou um escorpião. Qualquer coisa, menos uma minhoca ou uma cobra. Eu tinha pavor de minhocas. Eu entrava em pânico por nunca saber em qual direção específica o bicho estava olhando. — Você conseguiu ter contato direto com alguém do alto escalão além desse Neguinho?
— Consegui — disse Mariana, assentindo com orgulho. A tal coisa que se mexia embaixo da cama passou muito perto do pé dela, mas correu em disparada pela porta aberta. Pelo menos não era uma minhoca, suspirei aliviada. Mariana achou que eu estava satisfeita com seu grande feito, então sorriu antes de prosseguir: — Eu estava saindo com um deles, na verdade. Depois de "um chá bem dado", ele acabou me revelando essas mudanças nos horários, mas, eu não consegui que ele contasse o resto até que paramos de nos encontrar.
Fiquei chocada. Por um momento, até demorei para entender, tão absorta quanto eu estava pensando na minhoca. Então, pisquei. Mariana piscou. Eu pisquei de novo. O silêncio se instaurou no quarto, e eu me inclinei de leve na cadeira. Eu quis muito ter entendido errado, porque qualquer policial que se preze, jamais deixaria o inimigo adentrar em locais tão... profundos.
Ainda mais sendo uma mulher. Todo mundo sabia, até mesmo os civis, do quão brutalizadas as mulheres eram quando se envolviam com alguém do tráfico. Mariana deveria ter batido com a cabeça em alguma parede, ou no próprio beliche ao se levantar depressa, porque não existia outra explicação.
— Você fez o quê, agente Amaral? — indaguei, arregalando os olhos.
Mariana piscou, finalmente entendendo a minha reação como algo muito diferente do que orgulho. Ela deu um sorriso sem graça, colocou os dois pés no chão e se inclinou como se fosse sair correndo a qualquer momento. Ela deve mesmo ter pensado que eu atiraria alguma coisa em sua direção, porque tomou muito cuidado com as palavras que pretendia dizer.
— Bem... Eu recebi instruções para fazer de tudo, desde que conseguisse ajudar na operação — disse ela, dando de ombros. — Então eu fiz tudo o que eu podia. Eu comecei a sair com um dos homens do alto escalão, mas, não foi nada demais e ele desencanou. Não precisa ficar nervosa, senhorita Moreira. Eu estou segura e a operação permanece intacta. Tudo está bem.
Mas não estava. Eu trabalhava dia após dia. Eu tentava me fazer melhor em todos os âmbitos da minha vida. Não para me sentir melhor por isso, melhor do que qualquer outra pessoa. Mas para que nenhum homem dissesse que eu só havia chegado no lugar onde estava, por ter me deitado com algum deles, ou por feito menos do que merecer pelo meu sangue e suor.
Eu não conseguia digerir a ideia de que uma das minhas melhores agentes, era também uma marmita de traficante. Eu suspirei, fechando os olhos por um momento. Tive de me concentrar. Tive de respirar e entender que Mariana não era responsabilidade minha e que eu não tinha de exigir nenhuma postura além do respeito.
Respirei fundo por um bom tempo, fazendo minhas narinas até doeram pelo esforço de trazer mais ar do que eu aguentava. Foi necessário para que eu não surtasse.
— Muito bem, Mari, agradeço pela sua cooperação — falei em tom frio, mas Mariana sorriu. Eu me levantei. — Eu gostaria de conhecer de perto como é que tudo funciona.
Mariana se ergueu, mordiscando o lábio feito uma criança sapeca.
— Acho que tenho uma ideia de como podemos fazer isso funcionar.