— Então nós iremos compartilhar o quarto? — indaguei, arqueando as sobrancelhas. Eu ainda não tinha me acostumado com a henna que os maquiadores usaram para torná-las mais grossas e delineadas, então, sempre sentia uma coisa estranha e pegajosa no lugar onde antes só havia pelos. O gesto de sobrancelhas foi engraçado para Mariana, e atribuí isso àquela quantidade abusiva de maquiagem. Coloquei uma das mãos na cintura e a encarei. — Não estive dando risadas enquanto você me apresentava aquele banheiro precário e o resto da casa com paredes descascadas e infiltração, Mariana. Serei, no mínimo respeitoso, se você me respondesse com algum tipo de seriedade para cada dúvida. Assim evitaríamos que uma das duas acabasse com a cabeça enfiada no vaso sanitário.
— Ah, não acredite nem por um segundo que eu tenho medo de você, Juju — disse Mariana, forçando uma vozinha de bebê e apertando meu queixo. Eu me afastei dela com uma expressão de nojo. — E pare de ficar fazendo cara f**a ou reclamando de tudo. A casa da minha avó é humilde, da maneira que todas as casas devem ser aqui. Temos água quente, descarga, e uma das camas do beliche para você dormir no meu quarto. Não temos televisão por assinatura e nem internet. Trate de colocar créditos no celular ou você vai ficar de a pé.
— O que caralhos é ficar de a pé, garota? — perguntei, franzindo o rosto.
Mariana bufou, revirando os olhos.
— Sem créditos, sem internet. Sem internet, sem escapadas pelas vielas da favela. Sem escapadas pelas vielas, sem contato pessoal com a polícia. É bom você ficar esperta. Eles não podem entrar aqui para falar com você, e se você não der notícias, pelo menos a cada três dias, eles irão invadir. Foram as ordens que me deram, não sei se o mesmo se aplica a você.
Eu odiei o tom de Mariana. Ela ainda teve a audácia de desviar os olhos para as mãos e conferir as unhas bem feitas, como se a minha segurança ou a nossa missão não fosse nada demais para ela, e só mais uma das tarefas diárias das quais ela não sabia como se livrar do fardo. Eu dei uma risadinha soberba.
Eu quis dizer que nem mesmo chegaram a ter a intenção de me orientar algo daquela natureza, porque eu era a mais letal do que metade do nosso batalhão, e para uma pessoa como eu correr algum perigo, aqueles bandidos teriam de ser muito bons e rápidos. Mas, apesar da inimizade explícita, eu tinha que ser cuidadosa com Mariana. Nada impediria o Major de ter me enviado ali para saber se a garota possuía alguma ligação mais profunda com o tráfico.
Honestamente, eu não me deixaria levar pelas roupas que ela parecia muito confortável de usar, ou pela maquiagem excessiva em plena manhã de sexta-feira, ou pela maneira com que ela parecia muito familiarizada com os moradores locais. Só que a minha intuição raramente falhava.
Eu tinha aprendido a aguçar aquele instinto, quase tornando-o numa premonição. Então, se alguma coisa em dizia para não confiar em Mariana, eu não confiaria nem se tivesse alguma dívida. Ela teria que se mostrar verdadeiramente digna daquilo.
— Muito bem. — Falei de modo exasperado, e me joguei sentada no beliche de baixo. A cama rangeu, e uma madeira estalou, e eu soltei um grito pelo sobressalto. Eu era acostumada com camas sem estrado, sem cabeceira, e com colchões já conjugados. Então, foi um choque sentir a madeira se partindo logo na primeira sentada. Eu me levantei depressa, e bati com a cabeça na cama de cima. Mariana riu alto. — Mas que p***a é essa... Jesus!
— Cuidado com o chifre, Juju — disse Mariana, tendo acessos de riso tão fortes que ela até soluçou. Ela se recompôs depois que eu já estava longe da cama e a observando como se fosse uma das criaturas mais desprezíveis do mundo. Mariana enxugou as lágrimas pelo divertimento. — Ai, Juju, estou vendo que vou dar umas boas risadas enquanto você for minha melhor amiga e colega de quarto. Já pensou no estrago que vamos fazer nessa favela quando realmente formos amigas de verdade?
— Espera, você sabe que só estamos aqui para uma operação, não sabe? — indaguei, massageando de leve o cocuruto da cabeça. Mariana engoliu em seco, tentando a todo custo disfarçar a risada que começava a querer subir pela sua garganta. Eu revirei os olhos. — Caso você não tenha percebido, agente Amaral, eu não estou aqui para brincadeiras e nem para tirar férias. Temos uma situação séria. Um de nossos colegas está morto. Há pessoas demais correndo riscos para que essa operação seja um sucesso. Há vidas que ainda podem ser salvas neste lugar desprezível. E não é a sua postura de adolescente engraçadinha que irá ajudar a polícia. Comporte-se conforme a sua patente, ou eu terei que relatar isso ao Major. Você está entendendo a gravidade da situação ou eu preciso desenhar?
— Não, senhorita — disse Mariana, retendo o riso imediatamente. Ela fez uma continência, e abaixou os olhos. — Eu sinto muito, capitã. Eu acho que passei tempo demais sozinha nesta casa. Minha avó tem problemas de fala há algum tempo, então não nos comunicamos. Não sei linguagem de sinais. E isso me tornou um pouco solitária e emocionada. Sinto muito se a ofendi.
Era nítido a má vontade com que ela falava aquilo, mas, foi satisfatório perceber que apesar de tudo, ela ainda tinha de me obedecer. Eu dei um aceno com a mão, como se dispensasse as desculpas, mas voltei a me enfurecer quando Mariana se virou e soltou um soluço pela risada que ela m*l conseguia conter.
A garota era uma palhaça de primeira. E eu não sabia do que é que ela estava achando tanta graça, porque eu certamente não estava dando entretenimento suficiente para isso.
Dei uma olhada geral no quarto. As paredes eram rebocadas, mas ainda não possuíam tintura. O cheiro ali dentro era de tijolo molhado e terra seca. O piso era do mais pobre e barato material de cerâmica, e todos os móveis — que consistiam no beliche, um guarda-roupas e uma mesinha para estudos — eram de segunda mão.
Apesar disso, a roupa de cama e algumas peças pessoais do guarda-roupas de Mariana davam o aspecto de recentemente comprados. Eu a observei depois do momento de escrutínio, e ela estava novamente com a expressão debochada de costume. Pelo menos não estava rindo.
— Eu entendo libras — informei, dando um sorrisinho de canto. — Me apresente a sua avó.