— E por que é que não vamos para o tal baile que você mencionou? — perguntei ao adentrar o quarto, ainda enrolada na toalha e com os cabelos molhados. Mariana imediatamente se ergueu com um secador de cabelos em mãos. Ela me empurrou sentada na cadeira bamba, e eu quase despenquei. A sua pequena e usada escrivaninha de estudos tinha um espelho trincado na lateral, então pude observar a sua expressão mudar do deboche para a sagacidade. — Mariana, eu preciso saber o que exatamente você está planejando. Não posso correr riscos. Não posso estar em algum local em que alguém possa me reconhecer. Não se esqueça que, apesar das mudanças estéticas, ainda há certos resquícios em mim que uma maquiagem não pode esconder. Talvez as cicatrizes sejam indicativas o bastante.
Eu tinha uma marca bem f**a na perna, adquirida depois de um treino m*l sucedido com um cão policial. Eu tinha também marcas de ferimentos de balas que quase me mataram, mas que por muito pouco não atingiram nada vital.
Eu tinha uma larga cicatriz na região do meu peito, bem no centro, onde tive de passar por uma cirurgia de emergência para não morrer pela facada recebida ao lutar corpo a corpo com um mestre das artes marciais que estava usando seus dons de luta para atazanar a vida dos civis.
Não eram marcas que qualquer pessoa veria, mas, dependendo da roupa que Mariana cogitasse me colocar dentro, é claro que eram perceptíveis demais. Qualquer um que olhasse com atenção, perceberia que a garota de aparência esnobe e cheia de si não deveria ter sido a mesma a ganhar aquelas marcas.
— Fica tranquila, Juju — disse Mariana, movendo suas sobrancelhas para tornar sua expressão mais suave. Eu fechei a cara. Ela riu. — Nós vamos até o bar do Ronaldo. Quem é Ronaldo? Não sei. Nunca vi Ronaldo nenhum. É uma mulher que toma conta do bar, e eu sei que ele é o mais frequentado pelo alto escalão porque é praticamente impossível entrar ali sem ser convidado. Só que, graças a minha sagacidade, eu consegui fazer amizade com a mulher e sugerir que ela vendesse ovos cozidos como petisco para seus clientes. Ela está me esperando com a encomenda. E você irá comigo com a desculpa de que quero que você arranje um emprego com ela.
— Emprego? Mas o Major disse que eu já tinha um emprego — relatei, franzindo o rosto.
Mariana ligou o secador, dando risadinha da minha expressão de revolta diante do espelho. Ela sabia que eu morreria de curiosidade até que meus cabelos estivessem totalmente secos. E quase que isso aconteceu mesmo.
Os fios mais longos demoraram demais para secar, e eu resmunguei várias vezes, apesar de ela não estar escutando, que aquele era mais um dos motivos para eu manter o corte baixo. Eu odiava cabelos grandes demais.
E aquela cabeleira toda ficava se enrolando nos meus cotovelos, sem falar na coceira que senti nas costas enquanto usava aquele maldito top. Agora, observando pelo espelho, notei que um vestido estava na cama de Mariana. Era bem curto, mas pelo menos era solto. Eu odiava roupas apertadas.
Apesar de tudo, o tecido não esconderia os traços musculosos do meu corpo. E, quando notei a enorme a******a entre os s***s, foi inevitável observar meu tórax diante do espelho. Os meus s***s eram fartos, adquiridos por uma herança genética de mulheres corpulentas.
Eu não usava roupas decotadas porque me sentia vulgar. Odiava que os olhos dos homens se direcionassem para as minhas regiões favoritas, porque em sentia um objeto depois.
Só que, Mariana tinha uma opinião bem diferente daquilo, e mesmo que eu protestasse, fiquei bem ciente — pela maneira com que minha mochila estava aberta e bagunçada — de que ela tinha encontrado aquele vestido entre as peças que me foram dadas para aquela estava de prazo indeterminado.
— Sim, o Major disse que você já teria um emprego, porque eu o consegui para você — disse Mariana ao desligar o secador. Ela pegou a chapinha e trocou a tomada. — É quase certo de que ela irá contratar você. A mulher não aguenta mais ter de lidar com aqueles bêbados e s*******o que aparecem lá toda noite. É claro que ela não sofre qualquer assédio, preciso deixar claro que esse tipo de coisa não acontece aqui na quebrada. Só que eu acho que ela se sente solitária em ter de fechar o lugar e voltar sozinha para casa. Ela é nossa vizinha de baixo, então vocês podem voltar juntas. Não tem perigo. Fica tranquila.
Eu quase dei risada. Eu era o perigo da situação. A única coisa que me fazia sentir medo, era estar diante de coisas sem rostos e que podiam se mover com muita facilidade, mesmo sem ter pernas. Humanos não se encaixavam naquilo, minhocas, sim.
Eu não tinha medo de nada além daquele pequeno empecilho. Mas não falei isso para Mariana, eu deixei que ela puxasse e repuxasse as minhas mechas, alisando-as com a chapinha. Mariana começou a me maquiar, abusando do blush, do delineador, do batom, e ainda colocou cílios postiços que me faziam sentir como se houvessem pássaros em meus olhos.
Quando ela terminou, eu me senti ainda mais ridícula. Eu parecia tão jovem... E eu não gostava daquilo. Sempre agi como uma mulher muito mais velha do que a minha idade, e tive vontade de limpar o rosto com as próprias mãos.
— O que você vai vestir? — perguntei, virando-me para observá-la pegar as roupas no armário e se preparar para o banho. Mariana puxou uma calça jeans e uma camisa simples. Eu a observei, boquiaberta. — Por que eu tenho que me vestir daquele jeito e você tem que ficar assim? Eu deveria estar com uma roupa mais formal, se estou indo para alguma entrevista de emprego.
— Ah, Juju, você precisa encantar a dona do bar de alguma forma, e não vai conseguir isso se vestindo de modo recatado — disse ela, fazendo biquinho. Eu atirei uma escova de cabelos em sua direção, e ela nem teve tempo de se esquivar. Eu nunca errava uma pontaria. — Argh! Não precisa de estupidez! Só estou dizendo que algumas mulheres precisam de apelar para se tornarem interessantes, você fica sem graça com roupas normais.
Mariana saiu correndo antes que eu conseguisse levantar a cadeira para jogar em sua direção, então eu a abaixei e me virei para o espelho. Sem graça? Eu? O mundo é que não estava preparado para mim. Eu era interessante demais para falar a verdade.
Mariana não sabia de nada. Ela não sabia o que era o real conceito de sem graça. Mas, ainda que eu não acreditasse nela, eu tornei a me sentar na cadeira e a pincelar um pouco mais de batom vermelho em minha boca, só para garantir.