04. Lucas Narrando
Eu sinto falta do meu pai, todos os dias. Parece que uma parte de mim foi arrancada à força, e o buraco que ficou nunca mais se preencheu. Eu durmo e acordo olhando pra aquela foto nossa que eu colei na cabeceira da minha cama. Tá lá, velha, meio amassada, mas é tudo que me sobrou dele. Não tem um dia sequer que eu não pense nele. Eu lembro direitinho... ele me levando pro campinho, me ensinando a jogar bola, pegando no meu pé quando eu errava, mas rindo logo depois. Ele sempre ria. Sempre de boa.
Quando ele vinha me buscar na escola, mano, ele se agaixava no portão e eu corria pra abraçar ele. E era aquele abraço forte, que me fazia sentir que nada de r**m podia acontecer enquanto ele tava ali. Agora... agora é só eu. E minha mãe, mas não é a mesma coisa. Ela é f**a, tá ligado?
Às vezes eu fico pensando... se meu pai tivesse vivo, será que minha vida seria assim? Será que eu teria tanta raiva guardada? Porque, na real, o que eu sinto é isso: raiva. Raiva de tudo, raiva de todo mundo. Como se o mundo tivesse me roubado alguma coisa. E acho que roubou mesmo.
Agora tô aqui, tentando levar a vida do jeito que dá. Só que não é fácil. Cada dia parece uma batalha, e eu não tenho mais ele do meu lado pra me ajudar.
Depois do que aconteceu na escola, eu saí daquele lugar com a cabeça fervendo. Cada passo que eu dava parecia que o chão ia se abrir embaixo de mim. Como é que pode? Eu, Lucas, que não deixo ninguém me bater, apanhar assim na frente de todo mundo? Aquele cara acabou comigo no tatame, me fez parecer um moleque fraco. A raiva só aumentava dentro de mim, como se tivesse um vulcão prestes a explodir.
Andei rápido até chegar em casa. Quando entrei, bati a porta com tanta força que até o quadro da parede chacoalhou. Joguei a mochila no chão e segui pro meu quarto, mas parei na metade do caminho. A Lua, minha mãe, tava ali, no meio da sala, me olhando com aquele olhar que parecia atravessar a alma. Ela sabia que algo tinha dado errado.
— Que p***a é essa, Lucas? — ela perguntou, cruzando os braços, a voz firme, do jeito que só ela sabe ser. — Chega aqui desse jeito, batendo porta, jogando as coisas... que merda aconteceu?
Eu tava cego de raiva, explodindo por dentro, e quando a Lua começou a falar, isso só fez aumentar. Senti a pressão no peito, as palavras saindo como se fossem facas.
— O que aconteceu? Aquele merda de professor, é isso que aconteceu! — eu gritei, apontando pra fora, como se ele ainda estivesse lá. — Ele chegou hoje na escola e já tá se achando o dono do pedaço! E sabe o que mais? Ele me fez de bobo, mãe. Me derrubou na frente de todo mundo! Se meu pai tivesse vivo, essa merda não tinha acontecido!
A Lua ficou me olhando, os olhos fixos em mim, sem piscar. Ela sempre foi forte, nunca deixou ninguém mandar nela, muito menos eu. Mas ela sabia que eu tava pra explodir e, em vez de bater de frente, ela segurou a onda, mantendo aquela postura que só ela tem.
— Teu pai tá morto, Lucas — ela disse, sem rodeios, sem meias palavras. — E ficar preso nesse fantasma dele não vai te trazer nada de bom. Tu acha que ele ia gostar de ver o filho dele assim? Com raiva, quebrando tudo, achando que a vida é só porrada? Acorda, moleque. A vida aqui fora é muito mais do que isso.
Eu queria retrucar, queria gritar mais, mas a raiva começou a se misturar com outra coisa. Algo que eu não queria mostrar, que eu tentava segurar. Minha garganta começou a apertar, e o peso no peito só aumentava. Aquelas palavras sobre meu pai me pegaram de jeito, e eu me sentia perdido, sem chão.
— Se meu pai tivesse aqui... — comecei a falar, mas a voz falhou. A imagem dele era uma mistura de saudade e dor. — Se ele tivesse vivo... nada disso estaria acontecendo, mãe.
Lua deu um passo à frente, me olhando com aquela força que sempre teve. Eu via nos olhos dela que ela entendia o que eu tava passando, mas também sabia que ela não ia deixar eu me afundar nessa raiva.
— Lucas, eu sei que dói, sei que tu sente falta dele, mas tu precisa entender uma coisa — ela disse, a voz firme, mas com um toque de carinho. — A vida dele foi o que foi, e tu não pode mudar isso. Mas tu pode mudar o teu caminho. Eu não vou deixar tu virar uma bomba de raiva que explode em qualquer lugar. Aqui, quem manda sou eu, e eu tô te dizendo: controla essa merda antes que ela controle você.
Eu queria gritar mais, queria chorar, queria socar alguma coisa, mas as palavras dela me seguraram. Tava tudo misturado dentro de mim — o ódio, a dor, a saudade. No fundo, tudo o que eu queria era desmoronar, chorar até não poder mais, mas eu não sabia como. Não ali, não na frente dela.
A Lua deu mais um passo, ficando perto de mim. Ela estendeu a mão, como se me chamasse pra um abraço, mas eu me afastei. Ainda tava quente demais por dentro, ainda não conseguia baixar a guarda.
— Vai pro teu quarto, Lucas — ela disse, sem mais discussão. — Quando tu se acalmar, a gente conversa. Mas tu precisa entender uma coisa: o passado já foi. O futuro é tu que faz.
Eu não disse nada, só virei de costas e fui pro meu quarto. Quando entrei, fechei a porta devagar dessa vez, me joguei na cama e deixei o peso me esmagar. Tentei segurar, mas as lágrimas vieram, queimando, me lembrando de tudo que eu tinha perdido. Não era só raiva, era a dor que eu tentava esconder de todo mundo, até de mim mesmo. E ali, sozinho no meu quarto, eu deixei ela sair.