04. Thales Narrando
Cheguei pra minha primeira aula com a turma do Lucas. Tava ligado que ele era o pivete que a diretora fez questão de mencionar, dizendo que era problema, que ninguém conseguia dar jeito. Pra mim, moleque assim é só uma alma perdida, precisando de um caminho. Entrei na sala, e a galera já tava naquele clima de zoação. Silêncio que é bom, nem pensar.
— E aí, pessoal? — comecei, abrindo um sorriso. — Meu nome é Thales. Eu sou professor de Jiu-Jitsu e tô aqui pra ensinar vocês a lutarem, mas também pra aprender com vocês. Aqui dentro, respeito é tudo, então quem não tá a fim de respeitar, já sabe o que fazer.
O barulho foi diminuindo, mas ainda dava pra sentir a desconfiança no ar. Molecada difícil de dobrar, eu já tava ligado. Lucas, claro, tava no canto da sala, de cara fechada, olhando pra mim como se quisesse me derrubar só com o olhar.
— Tu acha que vai dar conta de nós, professor? — Lucas soltou, cheio de marra, sem levantar da cadeira. A sala caiu na risada.
Olhei pra ele, firme, mas sem perder a calma.
— Não tô aqui pra dar conta de ninguém. Tô aqui pra ensinar e aprender. Se tu quer brigar, a gente resolve isso no tatame. Mas aviso logo, brigar não é a mesma coisa que lutar.
Lucas se levantou, cruzando os braços, tentando impor respeito.
— Eu já lutei muito na vida, professor. Não preciso de ninguém pra me ensinar a brigar.
Me aproximei devagar, parando na frente dele. A turma ficou em silêncio, sentindo o clima esquentar.
— Tu acha que lutar é só bater e apanhar, né? Mas luta de verdade começa aqui — apontei pra cabeça dele. — E é aqui que a gente vai trabalhar. Se quiser entrar no tatame comigo, tô à disposição. Mas aviso que aqui dentro, todo mundo é igual. Ninguém é mais forte ou mais fraco. O que faz a diferença é a disciplina e o respeito.
Lucas me encarou, a raiva ainda queimando nos olhos. Ele queria provar alguma coisa, eu podia ver. Mas também via a dor por trás dessa raiva toda, a confusão. Esse moleque tava cheio de coisa presa por dentro.
— Então, bora pro tatame, professor. Quero ver se tu é tudo isso mesmo.
— Tá valendo — respondi, sorrindo de leve. — Mas só se tu entrar lá sabendo que, no tatame, a gente não briga. A gente luta, e luta é sobre controle, não sobre raiva.
O resto da turma tava com os olhos arregalados, esperando o desfecho.
— Vamos ver se você sabe mesmo o que é controle, professor.
E assim, a primeira aula já começou com um desafio. Mas eu sabia que esse era só o começo, e se eu quisesse ganhar o respeito do Lucas e dos outros, teria que mostrar que, no tatame e na vida, o verdadeiro poder vem de dentro.
Levei o Lucas pro tatame, e o moleque já chegou com os dois pés no peito, cheio de raiva, querendo me acertar de qualquer jeito. Ele não tava ali pra aprender, queria mesmo era me derrubar, mostrar que era o "brabão" da turma. Só que no Jiu-Jitsu, não é só força bruta que manda.
Assim que demos início, Lucas partiu pra cima, sem pensar, só no impulso. Tentou me dar um soco logo de cara, com a mão pesada, mas desviando pro lado, eu já vi que ele não tinha controle nenhum. Agarrei o braço dele e o travei numa chave básica, que já deu uma parada na agressividade.
— Relaxa, moleque, aqui a gente não usa soco — eu disse, soltando ele devagar. — Isso aqui é sobre técnica, sobre usar a cabeça.
Lucas se desvencilhou com um empurrão e partiu de novo, ainda mais irritado. Dessa vez, tentou me agarrar pra me jogar no chão, mas eu tava preparado. Usei o impulso dele contra ele mesmo, aplicando uma queda que o fez bater de costas no tatame. A turma em volta começou a murmurar, surpresa. Ninguém esperava que o "valentão" da turma fosse derrubado assim.
— Tá vendo? Não é sobre força, é sobre saber usar o que você tem — falei, tentando trazer ele de volta pro foco. — Mas se tu quiser continuar, a gente vai até onde der.
Lucas se levantou, ainda mais furioso, o rosto vermelho de raiva e vergonha. Ele tava perdendo o controle, e isso só fazia ele ficar mais agressivo. Quando ele veio pra cima de novo, dessa vez eu o prendi numa posição de estrangulamento, mas sem aplicar força total, só o suficiente pra ele entender que, no Jiu-Jitsu, você pode vencer sem machucar.
— Para! — ele gritou, batendo a mão no tatame, finalmente entendendo o que era se render. Eu soltei ele na hora, ajudando-o a levantar. Ele tava sem fôlego, a fúria agora misturada com frustração.
— É isso que eu tô falando, Lucas — eu disse, de frente pra ele, com calma. — O que te derrubou agora não foi a minha força, foi a tua falta de controle. Tu tá lutando contra tu mesmo. Quando tu aprender a dominar essa raiva, ninguém vai te derrubar. Mas enquanto tu deixar ela te dominar, tu vai cair sempre.
Lucas me olhou, ofegante, o peito subindo e descendo. A turma tava em silêncio total, todos vidrados no que tinha acabado de acontecer. Ele não disse nada, mas eu podia ver que ele tava processando aquilo, tentando entender o que tinha acabado de rolar. Às vezes, a maior luta é interna, e naquele momento, ele começou a perceber isso.
Eu sabia que não tinha terminado ali, que essa seria só a primeira de muitas batalhas que a gente ia ter. Mas era um começo. Se eu pudesse fazer ele entender que o verdadeiro inimigo tava dentro dele, a gente já tinha dado um passo gigante.
E naquele tatame, com a turma toda em volta, a primeira semente foi plantada.
Lucas se levantou do tatame com o rosto fechado, visivelmente mais furioso do que antes. Ele m*l olhou na minha direção, apenas pegou a mochila que tava jogada num canto da sala e começou a caminhar em direção à porta. O silêncio era tão pesado que dava pra ouvir a respiração tensa da molecada ao redor.
— Ei, Lucas! — chamei, tentando trazer ele de volta. — A aula ainda não acabou, cara.
Mas ele nem parou, só deu uma olhada rápida por cima do ombro, os olhos ainda cheios de raiva, e continuou andando. Empurrou a porta com força e saiu batendo, deixando todos na sala em choque.
Eu fiquei parado, observando a porta balançando ainda, tentando entender o que se passava na cabeça dele. Mas antes que eu pudesse falar qualquer coisa, um dos meninos mais velhos da turma, que tava encostado na parede, se manifestou.
— Professor, não esquenta com ele, não. O Lucas é assim mesmo. Se alguém contraria ele, já fica bolado e sai fora. Não aceita que ninguém fala nada pra ele.
Outro garoto, sentado mais na frente, balançou a cabeça em concordância.
— Verdade, ele sempre arruma treta quando alguém tenta ensinar alguma coisa. Já foi expulso de duas escolas antes de vir pra cá.
Eu respirei fundo, dando uma olhada na galera. Era complicado, sabia que muitos ali talvez já tivessem desistido do Lucas, vendo ele como um caso perdido. Mas eu não tava disposto a largar o osso tão fácil.
— Olha, eu entendo que ele tem os problemas dele, e que não vai ser de uma hora pra outra que vai mudar, mas a gente tá aqui pra aprender junto, certo? — falei, tentando trazer a turma de volta pro foco. — Todo mundo tem suas lutas internas, mas o que a gente não pode fazer é desistir de lutar.
Os moleques ficaram me olhando, alguns balançando a cabeça, outros ainda meio desconfiados. Mas eu sabia que tinha plantado alguma coisa ali, e mesmo que Lucas tivesse saído bolado, eu não ia deixar aquilo como uma derrota. Ele precisava entender que essa batalha não era contra mim, e sim contra ele mesmo.
— Agora, vamos voltar pro tatame. Quem tá disposto a aprender, vem comigo. A luta de verdade é sobre autoconhecimento, não sobre briga. Vamos ver o que vocês têm aí dentro, beleza?
Aos poucos, a turma foi se levantando, meio relutante no começo, mas depois começaram a entrar no ritmo. Eu sabia que aquela aula era só o começo de um processo longo, mas tava disposto a encarar. E, de alguma forma, sentia que Lucas também voltaria, mesmo que fosse só pra tentar provar alguma coisa.
Porque, no fundo, ele sabia que o verdadeiro inimigo não era eu.