03. Thales Narrando
Meu nome é Thales, e a real é que minha vida é bem simples. Sou um cara tranquilo, mas não mexe comigo que eu viro bicho. Tenho umas tatuagens espalhadas pelo corpo, cada uma com uma história, uma cicatriz da vida, tá ligado? Sou professor de Jiu-Jitsu aqui na escola da NH, mas não é só aqui que eu dou aula, não. Ralo em outros lugares também, mas a vibe daqui é diferente. A molecada é osso, mas eu gosto do desafio, curto essa parada de transformar a energia dos moleques, que podia ir pro lado errado, em força pra lutar do jeito certo.
Moro numa kitnet na pista, pertinho de onde rola a movimentação. Não é nada de luxo, mas é meu canto. Dá pra ver o morro da janela, e todo dia quando eu acordo, olho pra lá e penso no que tá acontecendo na NH. O morro é um universo à parte, cheio de treta e de coisa boa também. Só que eu só vou lá pra dar aula, e olha lá. Fico no meu canto, sem me envolver demais nas tretas de lá. Meu foco é ajudar os moleques, e se der pra ensinar alguma coisa de vida, melhor ainda. Tentar livrar os moleques de pensar em se envolver na vida errada, ta ligado?
Sou solteiro, mas não sou santo. Tenho umas mulheres com quem eu fico de vez em quando, nada sério, sem compromisso. Não curto amarrar ninguém, nem ser amarrado. Prefiro viver na boa, sem pressão. Quando dá vontade, a gente se encontra, troca ideia, mata o desejo e cada um vai pro seu lado. Sem cobranças, sem drama. Pra mim, o que importa é o momento, viver o agora, sentir a vibe.
Às vezes, quando tô voltando pra casa depois da aula, rola uma solidão, mas não deixo isso me consumir. A vida é assim, feita de momentos bons e outros nem tanto. Mas enquanto eu puder fazer minha parte, seja no tatame ou na vida, eu tô de boa. No fim das contas, o que importa é a gente ter consciência tranquila, saber que fez o que podia com o que tinha. E, pra mim, isso basta.
A verdade é que a vida nunca foi um mar de rosas pra mim, não. Quando eu era moleque, minha parada era outra. Cresci no meio da favela, no meio do tráfico. Desde novo, eu já tava metido nas paradas erradas, fazendo o que eu achava que tinha que fazer pra sobreviver. Lá no morro, não tem muito espaço pra escolha. Ou você segue o caminho da maioria, ou acaba sendo engolido pelo sistema. Meu pai era dono do morro, e o meu irmão tá lá comandando sozinho, eu tô fora!
Aos 19 anos, acabei me envolvendo numa treta grande, coisa pesada mesmo, e fui pego. Passei oito anos trancafiado. Oito anos vendo o mundo passar pela grade, vivendo a vida no ritmo da cadeia. Lá dentro, o tempo parece que para, mas ao mesmo tempo, cada dia é uma batalha. Vi muita coisa r**m acontecer, perdi amigos e ganhei inimigos. Mas também tive tempo pra pensar, pra refletir sobre tudo o que eu tinha feito e pra onde eu tava indo.
Quando saí, sabia que não dava mais pra continuar naquela vida. Podia ter voltado pro tráfico, pro morro, pro corre que me deu tanta coisa, mas também me tirou tudo. Mas, não, dessa vez eu queria fazer diferente. Larguei tudo e decidi mudar de vida. Foi f**a, foi difícil, mas era o que eu precisava.
Comecei do zero, longe da favela onde eu cresci, longe de casa. Tô construindo minha vida aos poucos, passo a passo, sem pressa. É claro que não é fácil. O passado sempre tenta puxar a gente de volta, mas eu tô firme. Luto todo dia pra não deixar a escuridão me engolir de novo. As vezes quando eu vou lá ver a familia, eles botam sim uma pilha pra eu voltar pro tráfico, e minha mente gira mano, mas não, eu assumi um compromisso com uma porrada de moleque revoltado e comigo mesmo. Eu não volto mais pra essa vida, eu prefiro a morte do que voltar pra prisão. Só quem ja passou lá dentro sabe o sofrimento que é.
Agora, dou aula de Jiu-Jitsu, ajudo os moleques que tão na mesma situação que eu já estive. Se eu puder tirar um deles do caminho errado, já valeu a pena. Minha vida ainda é simples, ainda tenho muito o que conquistar, mas cada conquista, por menor que seja, tem um gosto especial, sabe? Tô construindo minha história, bem longe da favela que um dia eu chamei de casa. Tô tentando fazer as pazes com o passado e construir um futuro que eu possa ter orgulho. E é isso. Sigo na luta, do meu jeito, do jeito que dá. Um dia de cada vez.
A diretora me chamou na sala dela antes de eu iniciar as aulas. Já cheguei preparado, tá ligado? Primeira vez numa escola sempre tem aquele papo de 'cuidado com fulano, cuidado com ciclano'. Mas dessa vez ela tava focada num só: o tal do Lucas.
— Thales, antes de você começar... preciso te falar sobre um aluno em especial — ela começou, ajustando os óculos e olhando uns papéis na mesa. Parecia até um discurso ensaiado. — O nome dele é Lucas. É um dos casos mais complicados que temos aqui. Ele perdeu o pai muito cedo... traficante, foi morto numa operação. E a mãe dele, bem... é quem manda lá no morro.
Eu dei uma leve inclinada na cabeça, já sacando qual era. Típica história de moleque que cresceu num ambiente de guerra, carregando o mundo nas costas. Não é novidade, mas sempre pesa ouvir essas paradas.
— Ele tem um comportamento muito agressivo. — A diretora continuou. — Não aceita ser contrariado, acha que pode resolver tudo na base da força, da intimidação. E ele traz essa raiva pra escola. Já tivemos vários problemas com ele em outras aulas... os professores até evitam chamar atenção dele. Só pra você ter uma ideia, no ano passado ele quebrou o braço de um colega no intervalo. E, claro, nunca se desculpou, nem demonstrou remorso.
Eu escutava tudo, mas não deixava aquilo me abalar. Já dei aula pra moleque complicado, moleque com raiva do mundo, moleque que achava que ia resolver tudo no soco. A diferença é que, no tatame, a história muda.
— Ele já passou por psicólogos, assistentes sociais, mas nada parece funcionar com o Lucas. — Ela suspirou, como se aquilo fosse um caso perdido. — E com o histórico familiar dele, você já deve imaginar o quanto é difícil... o pai morreu no tráfico, a mãe domina o morro. Ele cresceu cercado de violência.
Eu olhei pra ela, sem me deixar levar. Essas histórias de vida sempre são pesadas, mas eu sabia que ali não era só sobre o Lucas ser problema. Tinha algo mais.
— Entendo... — falei, com calma, deixando ela desabafar mais. — Mas ele é só um moleque, né?
Ela franziu a testa, como se não esperasse essa resposta.
— Sim, mas é um moleque que traz um histórico muito pesado, Thales. Não tô dizendo que ele é irrecuperável, mas você precisa estar preparado. Ele tem muita raiva acumulada, e você, como professor, vai ter que lidar com isso.
Dei um sorriso de lado, um sorriso tranquilo. Eu sabia que ia ser osso, mas também sabia que o Lucas não era o primeiro moleque assim que eu encontrava. Já vi muitos deles se acharem os donos do mundo, até pisarem no tatame.
— Olha, diretora, eu entendo tudo o que você tá falando. Mas no meu espaço, no tatame, o jogo é diferente. Ali, ou o moleque aprende ou ele vai acabar se machucando. E, na boa? Se ele tá com toda essa raiva guardada, talvez seja bom soltar isso de forma controlada.
Ela me olhou meio desconfiada, mas parecia que gostou da ideia de alguém não estar tremendo de medo só de ouvir o nome do Lucas.
— Thales, só tenha cuidado. Ele já assustou muito professor bom por aqui.
— Pode deixar — eu disse, tranquilo. — Se ele aparecer na aula, a gente resolve. No tatame, é um espaço de respeito. Ele vai entender isso.
Ela me deu um último olhar de aviso, mas eu sabia que era só mais um moleque querendo botar pra fora o peso do mundo. O lance era ele entender que não dá pra enfrentar tudo na porrada. Eu ia lidar com ele do jeito que sempre lidei com moleque assim.