Em algum momento precisaria encarar o passado

2060 Words
            Estava com trinta anos: um filha com doze anos, outra com dez,  uma empresa enorme, duas turmas de mestrado, trinta e seis alunos, quatro livros publicados e um repertório de palestras e workshops sobre gestão da construção civil, que agora era disciplina dos cursos de administração, engenharia civil e arquitetura, além de curso de pós graduação em uma conceituada universidade particular: tudo o que ela não conseguia era ter um marido decente, e sim um filho da mãe, aquilo a torturava: precisava encontrar com ele para acertar os detalhes do divórcio. Isabel entrou na sala e iniciou a passagem da agenda de compromissos de Marianna que sorriu e agradeceu, principalmente quando a secretária anunciou ter conseguido ajustar as vagas no colégio solicitado para as crianças. - Isabel, você é um anjo. - Não, não sou – ela sorriu – o Dr. Bonamigo vem para a capital também? – questionou a secretária. - Não, Isabel – Marianna sorriu – o Pedro vai ficar na fronteira, até onde eu sei, mas qualquer coisa que precisar eu peço, fica tranquila. - Certo – a secretária sorriu sem jeito – a reforma da cozinha da cobertura ficou pronta, o Marcelo está com a cotação dos planejados – ela encarou Marianna – ele fez questão de fazer e eu estava atolada de coisas, enfim, o Vicente deixou uma lista de referências para uma cuidadora apara as meninas e para diaristas, caso precise – ela fez uma pausa – se me permite, a Carolina Alencar, trabalhou até um mês atrás cuidando a Michelle, filha do Vicente com a Dra. Avilléz, dispensaram a moça há pouco, porque a Michelle está com catorze anos e passa quase todo o dia fora... Ela é excelente. - Sim – os olhos de Mariana brilharam – boa observação, Isabel, pode entrar em contato com ela para mim? Se ela estiver disponível, gostaria de conversar pessoalmente. - Sim senhora – a secretária sorriu – vou encaixar um horário para vocês duas, pode ser aqui no escritório? - Claro, fica melhor para mim e você tem meus horários.             Vicente invadiu a sala: - Com licença, Isabel, onze horas e eu preciso levar essa mulher embora daqui. - Tudo bem – Isabel sorriu – com licença. - Tem certeza disso, Vicente? – Marianna o encarou – m*l consegui trabalhar. - Você tem tempo para isso – ele riu e a pegou pela mão, juntando a bolsa dela com a outra – vamos, vamos...             Marianna correu para trocar seu look por wet leggings pretas, botas de montaria, cashemere e um trench coat ajustadíssimo preto, o sol brilhava tímido por entre as nuvens pesada de chuva, ela soltou os cabelos e voltou à frente do prédio onde Vicente a esperava impaciente dentro do carro. - Agora sim – ele sorriu – parece uma mulher normal e não uma dama de gelo intimidadora e sem escrúpulos que domina o mundo corporativo. - Exagerado – ela riu.             Assim que chegaram Vicente pediu o vinho e os dois conversaram alguns minutos sobre a empresa e as questões pendentes, mas assim que possível, Vicente mudou de assunto. - A Amanda me contou que você esteve no pronto atendimento mês passado, perto das duas da madrugada: Marcelo te levou e você apresentou um quadro de síndrome do pânico e agorafobia   – ele disse sem rodeios – e no dia seguinte, você chegou no escritório antes das oito horas, e parecia ótima. Na manhã de hoje, quando falei com o Marcelo, ele me disse que você dirigiu a noite inteira na chuva e apareceu aqui daquele jeito, como se nada te abalasse... - Aonde você quer chegar? – ela tentou desconversar. - O que está acontecendo, Marianna? – ele a encarou – Só quero entender, quero o teu bem, a Amanda me detesta, né, mas me ligou, ficou preocupada com você. - Crise – ela disse displicente – eu vou ficar bem, preciso de tempo para digerir tudo isso. - Tudo isso o que? – ele questionou – Eu não sei o que é isso tudo, o Marcelo, ele também não sabe e nem a Isabel, mas nós precisamos saber qual é a barra, que a gente vai te ajudar a segurar. - O Pedro – ela disse de repente – me trai há uns cinco anos, eu acho, e a amante dele, esta esperando um filho dele – ela completou – comecei meu processo de divórcio no começo do mês, mas fiquei sabendo disso no início do mês passado, três dias antes do hospital e dessa reunião que você disse – ela suspirou – não quero que fique com pena de mim, eu sou trouxa, porque lá no fundo, Vicente, bem no fundo, eu sempre soube disso. - Ai meu Deus – ele parecia perplexo – eu podia esperar isso do Pedro, mas não podia imaginar que te afetaria tanto – ele pegou a mão dela e segurou com firmeza – de verdade, eu estou profundamente triste com isso, e não, não estou com pena de você, porque uma mulherão desses merece coisa muito melhor, e apesar das circunstâncias, você vai ver que foi melhor assim – ele beijou a mão dela – respira fundo que isso é fase e logo vai passar, logo vai estar com um sorrisão no rosto de novo, aproveitando a vida e aquelas duas coisas lindas que você botou no mundo. - Espero que sim – ela disse – mas é tão difícil – de repente a imagem de mulher de gelo se desmanchava e em frente à ele havia uma garotinha indefesa chorando e silenciosamente – difícil como eu nunca imaginei que seria. - Claro que é – ele sorriu – normalmente eu sou o cara do outro lado da história, mas eu sei que você está m*l com tudo isso, sei sim, mas você é forte e não precisa do Pedro, de verdade não precisa – ele sorriu – e essa dificuldade toda é de aceitar a tua vulnerabilidade. - Não entendi – ela suspirou. - O problema não está no divórcio, na traição – ele sorriu por um momento – isso também é problema, eu sei, mas acho que você não sabe lidar com o fato de que isso te deixa m*l. - Pode ser – ela suspirou novamente e deu um longo gole no vinho – a verdade é que eu no fundo sabia, sempre soube, era uma coisa que eu deixava quieto, para não precisar lidar com ela, porque no fundo acho que eu tenho medo de ficar sozinha – ela mesmo se surpreendeu quando falou e logo tentou consertar – sabe, de não ter companhia... - Faça um favor para nós dois, mulher – Vicente a encarava – se eu enviar uma mensagem, uma única, dizendo que você está solteira, amanhã mesmo você está no altar, casando de novo, sabe disso. - Não exagera! – ela riu – Mas não me refiro a isso, não sei viver sozinha. - E jamais viverá, meu Deus – ele pegou a mão dela – sou teu sócio, teu amigo, e estarei aqui sempre, o Marcelo, ele faz tudo por você, você tem as meninas, você tem o pessoal do clube, eles todos te adoram, as meninas do escritório, meu amor, não sei o que mais você quer... - Nem eu sei Vicente, eu só sei que tenho medo.                  A conversa continuou: pelo menos até o telefone celular de Marianna tocar com Marcelo questionando a leitura de uma proposta e Isabel lembrando que ela tinha uma palestra à dar no campus da Universidade Federal na noite seguinte e que os tópicos estavam no email dela, conforme solicitado. - E então? – quando ela desligou o telefone Vicente a encarou – aproveitando o ensejo: como se sentiu com a história do Cavalcantti? Você sempre me pediu para evitar... - Um dia eu precisaria encarar meu passado – ela suspirou. - Não sei se acho você corajosa demais ou tola demais. - Acredito que tola – ela riu – mas pelo lado bom: já comecei a fazer terapia, resolvo em uma tacada só. - Mas o que houve com vocês? - Ele nunca te contou? - Contou que tiveram algo... - Tudo bem – ela suspirou – eu tinha dezesseis, o Henrique vinte e dois. Aquele verão mudou minha vida, se não fosse o fim trágico e esse meu medo de ficar sozinha, jamais teria conhecido o Pedro, ou casado, ou ter tido as meninas – ela tomou outro gole de vinho – nos conhecemos na casa de um amigo em comum, e tínhamos muito em comum. Nosso tempo juntos era incrível: ele dirigia com o som lacrado, cervejas meio mornas, maconha, festas... Eu morava longe, nos víamos cada quinze, vinte dias. Quando entrei em férias, fui para lá, íamos para a praia logo depois do meu aniversário de dezessete, meus pais detestaram a ideia, mas eu ia. Casa liberada, malas prontas: na noite do meu aniversário, saímos só nós dois, e conversamos muito, como quase nunca fazíamos, a gente curtia demais. Ele me disse, que ao fim das férias, eu não me sentisse “presa” a ele, que ele precisava tocar a faculdade, arrumar um bom emprego e se estabilizar, e eu precisava aproveitar a vida – os olhos dela estavam marejados de novo – ele colocou prazo de validade no nosso lance, enquanto eu – ela soluçava – eu havia pedido transferência e cursaria o último ano morando com minha avó para ficar perto dele, era a novidade que eu tinha que contar, e nunca contei – ela riu em meio às lágrimas – eu disse tudo bem, que queria ir para casa... Discutimos alguns minutos, quando eu falei que casa, era a casa dos meus pais, pedi que me deixasse na rodoviária, e ele fez – tudo era muito claro na mente dela, o som baixo, nenhuma palavra, apenas lagrimas rolando incessantes e aquele gosto amargo, enquanto ele procurava em vão a mão dela dizendo “vai ser melhor assim” e “vai ficar tudo bem” – e foi isso: amor de verão, sem viagem, sem sexo, sem nada sério... - E porque você diz que isso mudou sua vida? - Eu voltei acabada de lá. Eu voltei outra pessoa: rejeitada, envergonhada por ser tão facilmente descartada da vida de alguém, senti como se não fosse alguém para se levar a sério – ela suspirou – dois meses depois, estava bêbada em um bar, e conheci o Pedro, e ele parecia legal, e ele era mais velho, então, na minha cabeça, ele não faria aquilo que o Henrique tinha feito. Eu engravidei, nós casamos, e aí a história você conhece – ela suspirou – eu queria ser uma pessoa com uma vida estável, respeitável, queria ter uma família e um trabalho, e eu lutei por isso – ela riu distraída – só eu, não? E enquanto eu trabalhava para bancar a viagem para Paris, o Pedro transava com uma vagabunda qualquer dentro da minha Dodge Ram, em um estacionamento de shopping. - Tudo bem – Vicente ainda segurava a mão dela – eu ouvi sua versão da história, e consigo ponderar... Acho que vocês dois precisam conversar sobre isso, sabe? Antes de tentarem trabalhar juntos em um escritório – ele riu – mas você é a mulher mais competente que eu conheço, uma da mais lindas, inteligentíssima e batalhadora, merecedora de tudo de melhor, qualquer intercorrência, deve ter vindo como aprendizado – ele beijou a mão dela – vai ver você aprende a se amar, e se perdoar um pouco? Parar de se culpar... - Você casou com minha terapeuta e eu não sei? - Não – ele riu – mas já estive casado com uma das melhores.             O almoço terminou com a dupla conversando amenidades: Vicente empolgadíssimo com o desempenho do time de football – além de torcedores apaixonados, eram patrocinadores – e tentando convencer Marianna a voltar a frequentar os eventos, alegando que todos sentiam falta dela.             Quando retornou ao escritório, sentia-se um pouco mais leve, o que logo mudou quando precisou atender o futuro ex marido que queria conversar e tentar resolver as coisas. Aproveitou para telefonar para a mãe – que nem sabia da viagem – e para as filhas que estavam em uma excursão da escola, e retornariam somente no começo da semana para casa. 
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