Conversa inadiável

2330 Words
            Assim que eu saí do meu novo endereço, dirigi para o antigo e atual. Corri escada acima e tomei banho rapidamente. Estava com frio e eu estava sentindo falta de alguma coisa – chequei o celular diversas vezes esperando uma mensagem ou outra de Lemos, mesmo sabendo que ele estaria no CT até tarde. Vesti jeans, botas de salto alto e um casaco de lã batida em tom de vinho, parecia que a noite pedia cor.            Recebi fotos da Letícia, a madrinha das meninas, com elas no shopping, no cinema e combinei de encontra-las lá depois da sessão, assim eu tinha um horário e uma boa desculpa para encerrar a conversa inadiável de Henrique que eu encontraria em meu antigo apartamento, não tinha tido uma ideia melhor, mesmo sabendo que aquilo lá estava uma verdadeira zona de guerra. Na hora marcada, ele estava tocando o interfone, e eu abri o protão e fui destrancar a porta, deixando-a aberta enquanto tentava - em vão - colocar um pouco de ordem em todas as coisas que haviam espalhadas por lá.  - Oi - ele disse parado à porta: vestia jeans ajustado, camisa xadrez e um casaco pesado, os cabelos, como sempre desgrenhados e o sorriso mais lindo do mundo, ele tinha um ramalhete de flores nas mãos. - Oi - tratei de responder apressada - entra, eu não vi você... Não repara a bagunça - eu disse rindo - minhas meninas voltaram hoje.  - Nossa - ele esfregou o rosto com uma mão - sinto muito, não queria te tirar delas, elas estão em casa? - Não - eu respondo - estão com a madrinha, em uma sessão de cinema, combinei de busca-las depois.  - Claro - ele sorri e entrega as flores - peguei para você. - Obrigada - respondo, sorrindo para o ramalhete em tons de cor de rosa e branco.  - Bem simpático o apartamento - ele olha ao redor.  - Sim, ele cumpriu bem o objetivo, mas com as meninas aqui preciso de algo maior, com mais espaço e com área aberta, preciso trazer meu Golden Retriver... - Claro - ele brinca - não tem nem cabimento a CEO de uma empresa como a Future morando aqui.  - Sabe que eu não ligo para isso - ri alto entendendo a brincadeira - mas minha coluna liga, acho que eu não conseguiria continuar com aquelas escadas todas.  - Verdade - ele sorri e logo os dois estão sentados no sofá da sala.  - Aceita algo? Um vinho? Uma cerveja? - pergunto, provavelmente eu precisaria de álcool para me ajudar a aceitar as coisas que eu precisaria ouvir. - Um vinho - ele sorri - acho que sempre é um bom momento para um vinho.  - Vou precisar concordar - levantei-me para providenciar e ele logo me acompanhou, abrindo a garrafa e ajudando - e então? - pergunto quando já estou de volta ao sofá - Qual era o tópico dessa conversa inadiável? - Ah sim - ele sorri sem jeito - parece estranho... Sabe, no fim de semana, eu acabei voltando para casa, sozinho.  - Sim - suspirei - fiz o mesmo...  - Então - ele riu - foi estranho, tudo parecia nostálgico demais, eu conseguia lembrar tão claramente de todas as coisas, dos lugares que costumávamos ir - ele balançava a cabeça - eu fui passar em frente a casa da sua avó, sabia que ainda tem aquelas margaridas na frente? Aquelas que ela vivia reclamando que eu arrancava pra colocar no teu cabelo?  - Sim - eu respondo sorrindo - e o pessegueiro também está lá, acho que os novos proprietários mantiveram quase tudo... Estive por lá no fim do verão passado. - Então... - ele suspira - e ai eu voltei a pensar em uma coisa que eu falei para o Vicente, há muitos e muitos anos atrás, quando eu conheci ele: tudo começou a dar errado depois daquele verão...  - E o que você quer fazer sobre isso? - pergunto curiosa.  - Estamos supondo coisas um sobre o outro, acho que devemos conversar, falar o que aconteceu – ele suspirou – quer começar? - Ah, com certeza eu não quero, Henrique – dei um longo gole em minha taça de vinho – eu faço terapia, eu fiz as pazes com o meu passado, sabe... - Certo – ele também deu um longo gole em seu vinho – tudo bem – ele suspirou – vamos começar, vamos começar pelo começo... - Não – ela o encarou – não precisamos falar do começo, precisamos falar do fim... - Tudo bem – ele suspirou – você estava por chegar, eu estava bem ansioso, íamos para a praia, estava com a mala quase pronta, prancha de surf, meu violão... Eu gostava de tocar violão quando tu estava comigo – ele sorriu – e meu pai apareceu naquele dia. Sabe, ele não era muito de visitas, né? Para variar, ele só me chamava quando tinha algum problema, e aquele dia, ele tinha uma encrenca grande lá fora – Henrique parecia não querer falar sobre aquilo – e então, tivemos uma discussão, uma daquelas em que eu era sempre o errado, que estava perdendo meu tempo e colocando toda a grana dele fora em lápis e papel, que eu não dava valor para as coisas e que logo, logo mesmo, ele estaria velho demais para e sustentar, ai ele gritou, eu gritei, a mãe apareceu, pediu que ele fosse embora, foi uma das brigas mais feias que tivemos, e ele terminou dizendo que eu precisava largar de ser b***a. Então, acabei trocando de curso na faculdade, da Arquitetura para a Agronomia, como ele queria... Na manhã seguinte, a mãe e eu conversamos e você sabe como ela era, ela fez uma merda na vida que não queria que ninguém mais fizesse, e então me convenceu que eu não podia te prender. Tu chegou naquela tarde, e eu lembro até hoje do vestido azul céu com florzinhas pink e púrpura, tu usava all star e jaqueta jeans, chegou sorrindo aquele teu sorriso lindo, e o jeito com que tu foi ao meu encontro, tu me desarmava! Eu passei toda a noite pensando em como te dizer aquilo, porque eu não achava justo a gente dar mais nenhum passo sem que tu soubesse da minha intenção, da decisão que eu tinha tomado. Na noite do teu aniversário, mulher, eu me senti o pior homem do mundo e eu juro, que eu passei a maior parte do tempo questionando se era aquilo mesmo que eu tinha que fazer. Tu sabe, eu fiz muita merda na vida, então, de repente, a aprovação dos velhos era importante para mim... E ai as coisas aconteceram daquele jeito, e eu não consegui me perdoar por aquilo – ele tinha os olhos marejados – tua vez. - Certo – bebi mais um pouco – voltei para casa destruída, Henrique. Me senti humilhada, rejeitada, descartada... Eu tinha só dezesseis, não conseguia ver as coisas com muita clareza... – fechei os meus olhos por alguns segundos, abrindo em seguida, me sentindo bem mais segura do que antes – de um jeito ou outro, tinha feito planos para nós, nós – a voz embargou e precisei me esforçar para conter as primeiras lágrimas – nós tínhamos planos para nós. Eu tinha pedido transferência de escola, ia ficar lá com a Vó, para cursar o ultimo ano, e poder ficar perto. Desisti da transferência, de morar na cidade que eu gostava, de ter a vida que eu queria... – mais um gole em meu vinho, assim parecia mais fácil – e depois daquele dia, eu mudei muito, eu encarava as coisas todas sob outra perspectiva, sempre com um pé atrás, sempre na defensiva... Eu não te culpo – mentira, eu o culpava e sabia muito bem disso – mas a maneira com que tudo aconteceu, foi o que me levou a tomar as decisões seguintes na vida... - Decisões seguintes? – ele riu – Desculpa, mas não podemos chamar de decisões... - Foram decisões – gritei – erradas, mas foram as minhas decisões. Eu decidi que eu ia levar uma vida de merda e ia beber como uma condenada e t*****r com estranhos. Eu decidi que já que eu não era para ser levada a sério, ia aproveitar a minha vida... Eu entrei num ritmo frenético de estudar, trabalhar e fazer festa, eu m*l dormia, ou eu estava bêbada ou sob efeito de café, dormia umas três ou quatro horas por noite, mas ainda assim, minha escolha. - Tentativa de suicídio né? – ele ironizou - Não, tentativa de preencher um imenso vazio – disse com anormal melancolia – e ai eu encontrei o Pedro. - Claro – ele riu – e ai correu pra cima dele... - Não – respondi – não corri. Tratei ele do jeito que tratava todos os homens na minha vida depois do nosso fim, mas ele me tratou diferente, ele me fez acreditar que as coisas poderiam ser boas de novo, que eu podia ser feliz com alguém... E ele tinha uma vida estável, ele parecia saber o que queria e sim, ele foi muito bom para mim, por muito tempo – fiz uma pausa – mas em algum momento, Henrique, eu deixei passar alguma coisa, eu ignorei sinais, eu podia ter feito diferente... - Não – ele gritou – não podia, p***a! Não tem culpa se ele te traiu ou não, isso é responsabilidade dele, e se fizesse diferente, ele teria feito o mesmo de uma forma ou de outra – ele a encarou – não seja tão c***l e não se culpa pelos erros dos outros, não na minha frente, pelo menos. - Que seja – eu disse distraída, brincando com minha taça quase vazia – nada vai mudar o que aconteceu. - Verdade – ele concordou e encheu novamente a taça – só que eu te procurei depois. - Não mente... – eu ria alto.  - Um ano e meio... Tive uma briga feia com o pai de novo, discutimos muito. A vó estava lá em casa, e ela apenas olhou para mim e disse “tu sabe bem aonde isso tudo começou” e eu sabia: no momento em que eu tinha aberto mão dos meus planos, pra realizar os deles. Saí dirigindo, como um doido, duas horas da manhã, amanheci na Fronteira, e comprei flores, todo confiante... – ele suspirou – e ai eu corri pra tua casa, e um homem estranho me atendeu, e disse que tu não morava mais ali... Encarei aquelas flores metade do dia enquanto eu rodava cidade afora tentando te encontrar, e eu te encontrei... – ele suspirou – tu estava grávida, linda de morrer, sorrindo, carregando um filho que só Deus sabe o quanto eu queria que fosse meu... Eu fui atrás de todos os que eu conhecia naquele fim de mundo, mulher, eu virei a cidade, e cheguei no teu endereço novo, e tu estava com ele, e eu não aguentei, simplesmente fui embora, mas não voltei pra casa, vim pra capital – ele suspirou – parei na frente de um bar, taquei as flores no lixo e sentei numa mesa, pedi uma garrafa e um copo, peguei meu cigarro... Quando cheguei na metade da garrafa, Vicente se juntou a mim, quem sabe o descorno dele e o meu foi o que nos uniu, eu não sei – ele riu – conversamos bastante e ele me ajudou demais, foi mais do que meu mentor, foi meu amigo, dividi com ele meus problemas e tudo o que ele me disse em tom de crítica foi “como tu deixou essa mulher escapar?” e essa é uma das perguntas que martela dentro da minha cabeça dia após dia. E o resto da história, tu conhece bem – ele riu aquele riso lindo de fechar os olhos – e aqui estamos nós. - Certo – suspirei novamente encarando-o – quer fazer o que sobre isso? - Não entendi a pergunta – ele parecia confuso.  - Me contou que me procurou... E eu te contei no que eu me tornei por causa do nosso término, isso muda alguma coisa? – eu o encarei sorrindo e logo estava respondendo minha própria pergunta – não muda nada, Henrique, absolutamente nada: aqui estamos nós, duas pessoas adultas, falando de coisas que aconteceram há uns quinze anos atrás... - Acho que vou ter que concordar - ele responde.  - O melhor que temos a fazer é deixar isso de lado - suspiro - já passou, já foi...  - Eu não quero mais me casar - ele diz de repente e logo me encara - eu não sinto com a Sabrina um terço das coisas que eu sinto com você.  - Não posso levar você até o altar ou obriga-lo a fazer isso - eu ri - mas acho que deve pensar bem sobre isso.  - Tudo bem - ele sorri - acho que isso foi bom para nós, essa conversa.  - Eu também acho - mentira, pensei, era péssimo e agora eu precisava pensar sobre isso e agendar outra sessão de terapia porque não conseguiria organizar meus pensamentos.  - Não posso mais tomar o teu tempo - ele me diz sorrindo - vejo você amanhã? - ele pergunta.  - Si - respondo - vou estar no escritório logo às oito.  - Perfeito - ele sorri e já está levantando-se do sofá - te encontro às nove, então. Muito obrigada por me receber e me ouvir, foi importante para mim.  - Não agradeça - sorri - foi bom para nós.  - Concordo - ele diz e me abraça apertado, Deus, como eu sentia falta daqueles abraços?         Nos despedimos e eu voltei ao sofá encarando as paredes por um tempo: me sentia uma i****a remoendo coisas de quinze anos atrás, e mais ainda, com meu novo parceiro comercial, mas parecia que em seu tom de voz havia algo além de arrependimento, podia ser esperança? 
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