Distraída com o vinho, a refeição e o jornal, Marianna não teria percebido nenhuma outra pessoa se aproximando, se não fosse ele... Ela fechou os olhos por alguns segundos, reconhecia aquele perfume em qualquer lugar, largou o jornal de imediato para acomodar-se na cadeira, ainda acreditando ser apenas uma coincidência: qualquer pessoa podia usar aquele perfume...
- Não acredito que é você mesmo – Henrique Cavalcantti estava parado em frente à ela – você se importa de dividir a mesa comigo, Marianna?
- Henrique – ela estava visivelmente sem jeito – a, não, claro que não – ela riu, nervosa – fica a vontade.
- Mas que prazer encontrar você – ele estendeu a mão para pegar a dela e beijar – nossa, o que aconteceu? – ele disse assim que reparou no curativo.
- Eu e os meus acidentes – ela riu.
- Certo, certo – ele sorriu: estava idêntico! Os cabelos castanho-escuros desgrenhados, a barba cerrada, os olhos cor de mel brilhantes que se fechavam sempre que ele sorria, o sorriso fácil, um dos mais lindos sorrisos que ela podia lembrar-se: Henrique havia se tornado um homem lindo – e ai? Gostou das flores?
- Ah, claro, eu adorei – ela sorriu – ficaram ótimas no meu escritório.
- Pensei que deixaria lá mesmo – ele riu – depois que eu comprei, pensei que o seu marido ia estranhar outro homem mandando flores.
- Não, ele não estranharia – ela riu – vários clientes mandam, inclusive – ela deu um gole no vinho – mas hoje em dia, felizmente não me preocupam as estranhezas dele.
- Uhm – Henrique olhou diretamente para a mão dela, o que a fez olhar para a dele: enquanto ele esperou ver aliança no anelar esquerdo, ela esperou não ver nada... E ele não viu nada além do anel de formatura e ela viu uma aliança de compromisso, no anelar direito – que indelicado, você não está mais casada?
- Não – ela respondeu.
- Estou noivo – ele disse de repente – em breve você vai conhece-la, ou encontra-la, pois se conhecem – ele fez uma pausa – Sabrina Santorinni.
- Ah, lembro dela sim – como não lembrar de alguém que vivia rondando ele enquanto estavam juntos – fico feliz, parabéns.
- Enfim, não posso dizer parabéns, então acredito que eu sinto muito, de verdade, sei como isso pode ser complicado...
- Não – ela respondeu seca – não sabe, não.
- Provavelmente eu não sei mesmo – ele sorriu sem graça – Gosto desse italiano, vem sempre aqui?
- Não, raramente, mas hoje estava com problemas para dirigir e não ia conseguir cozinhar também...
- Entendo – ele sorriu – a gente pode sair pra conversar uma hora dessas?
- A gente super está conversando - ela responde.
- Eu sei – ele pegou a mão dela – você entende, tem coisas que eu preciso te dizer...
- Tudo bem – ela sorriu – acho compreensível, inclusive.
- Ótimo. Esta noite? - ela insiste.
- Não – ela riu – tenho uma palestra...
- Tudo bem, então eu vou te ligar, pode ser?
- Pode ser sim – ela deu um último gole em seu vinho: poderia sair dali em alguns minutos, mas não queria ser indelicada.
- Certo – ele terminava a refeição também – tem um tempo agora?
- Para quê?
- Quero mostrar uma coisa para você.
- Que coisa? – ela parecia desconfiada.
- Vamos, não é nada demais e você vai adorar, eu sei.
- Tudo bem – ela suspirou.
Em poucos minutos os dois caminhavam no estacionamento, até Henrique parar ao lado de uma pick up e a destravar:
- Senhorita – ele disse quando abriu a porta, fazendo uma reverência.
- Obrigada – ela riu, ele sempre era cavalheiro.
Logo Henrique dirigia rapidamente no caos da capital, Mariana não conseguia manter o foco em nada além do timbre grave da voz dele e do cheiro, era nostálgico demais. Minutos depois ele entrava em um estacionamento de um prédio em construção:
- Chegamos – ele disse – esse aqui é o meu novo bebê.
- Sim – ela disse, reconhecendo a construção – o Porta do Sol.
- Exato – ele riu – andou pesquisando os meus projetos?
- Vi o seu nome no projeto quando estava procurando um imóvel...
- Ah, eu sei dessa história, moça – ele riu – vem – e logo a conduziu para o elevador – vai ter o panorâmico, mas ainda não instalamos, esse aqui é o particular – ele sorriu.
Quando o elevador pariu ela estava em um hall bem decorado: tons de cinza, plantas verdes e um espelho, aquele era certamente o hall da cobertura:
- Bem vinda à minha humilde residência – ele abriu a porta – você precisava ver isso – ele pegou ela pela mão, mas ela logo estava parada, ajoelhando-se no chão ao lado de uma grande almofada amarela onde um rottweiler imenso dormia:
- Thor, nenê – ela disse com os olhos marejados enquanto segurava a cabeça do cão e encostava no nariz no focinho dele – que saudade, bebezão!
- Olha ai – Henrique tinha lágrimas nos olhos – ele se lembra de você, Mari.
- Eu sei, senti sua falta – ela abraçou o cão que visivelmente satisfeito, voltou a dormir logo depois que ela levantou.
- Ele está velhinho – Henrique disse – não consigo ficar longe desse babão.
- Certo – Marianna se recompôs: havia despedido-se de Thor na estação rodoviária quase quinze anos antes, também tinha doído, ela amava aquele cão – o que eu precisava ver?
- Além do Thor? – ele riu e a conduziu pela sala bagunçada e sem decoração específica para a porta da sacada – meu mundinho – ele indicou a cidade toda que se debruçava na sacada – sabe quem mora ali? – ele indicou o prédio na rua Santana, onde ela morava.
- Vista privilegiada da minha sala, é? – ela franziu a testa ironicamente.
- Só pra perceber que alguém tem insônia – ele a encarou – mas não julgo – ele a conduziu à outra parte da área externa, contornando o prédio e tendo outra visão da cidade, logo ele apontou em outra direção – mas o importante é a vista privilegiada para a A1 – ele riu, mostrando à ela que da janela do quarto e da rede que ele havia pendurado, enxergaria também o apartamento de cobertura que ela havia adquirido.
- Perseguição – ela ria – meu Deus, quanta coincidência.
- Pois é – ele debruçou-se na mureta, encarando a paisagem do alto: a cidade era linda – eu olho em volta e só vejo vazio, um imenso vazio...
- Que dramático – ela deu um tapinha no ombro dele.
- Não – ele sorriu sem graça – projetei muitas coisas, muitos sonhos... – ele suspirou – mas não encontrei um lugar pra chamar de meu, não encontrei uma pessoa que faça eu me sentir vivo, entende? É tudo muito sem emoção.
- Não entendi, você está noivo, impossível não sentir...
- Gosto dela, mas é simples, não penso em ser uma pessoa melhor, ou em construir coisas com ela, e principalmente nos meus projetos, eu projeto coisas, que as pessoas enchem de coisas e mesmo assim estão vazias – ele a encarou – lembra do que minha avó dizia?
- “Se você não conseguir dizer quem mora, apenas olhando em volta, você está em uma casa e não em um lar” – ela sorriu com os olhos marejados – acho que eu te entendi.
- Exatamente – ele suspirou e tocou o rosto dela – conversei com o Vicente, disse que eu ia pular fora, que eu precisava de gente de verdade e ele me disse que eu precisava era falar com você, porque você tinha mudado a vida dele.
- É, posso dizer que sim – ela riu – um dia depois de conhecer o Vicente, eu fui pagar a fiança dele porque ele tinha brigado em um bar – ela riu alto – mudei mesmo.
- Convenhamos – Henrique a encarou – o Vicente estava perdido, e agora ele tem um propósito. Eu preciso de um propósito.
- Eu só posso prestar assessoria administrativa, Henrique, não sei nada sobre propósitos...
- Ideias novas – ele suspirou – vamos conversar melhor o plano profissional na nossa reunião daqui a pouco, e eu sinto que é isso que eu preciso, entende?
- Entendo sim – ela consentiu – tenho uma reunião com a minha equipe daqui a pouco, e sim, entendo bem o que você está me dizendo.
- Que maravilha, sabia que você entenderia – ele sorriu e a pegou pela mão – vou levar você de volta em um minuto... Aceita um café?
- Ah, aceito sim – ela sorriu.
- Maravilha – ele a conduziu para a cozinha, onde ela sentou em um dos bancos no balcão enquanto ele preparava café – não tem coisa melhor depois do almoço, né?
- Tem sim – ela riu alto – mas um café é sempre bom.
Conversaram sobre as turmas de mestrado dela, sobre as filhas, sobre os projetos dele, sobre o irmão desmiolado que ele tinha, e a uma e quinze os dois saíam em direção à sede da Future. Marianna estava segura de si, não seria difícil trabalhar com Henrique, não como ela imaginara que poderia ser. Ele a deixou em frente à porta e ela entrou:
- Boa tarde – os saltos batiam em ritmo acelerado – oi, Dani – ela disse quando avistou uma das meninas do RH, e andava firme em direção à sala de reuniões, mas antes de entrar, percebeu alguém em sua sala, e não era Marcelo, intrigada, desviou, o que fez seu estagiário correr para encontra-la no corredor – Marcelo, quem está...
- O Pedro – ele respondeu rapidamente – falei que você tinha uma reunião e ele disse que aguardaria – o rapaz parecia muito nervoso – ele deixou claro que só vai embora depois que falar com você.
- Tudo bem – ela mudou o caminho, indo em direção à sala de reuniões novamente – pede para a Isabel ver se ele precisa de alguma coisa, por favor – ela o encarou – vamos aceitar, Marcelo, vai ser uma loucura, mas vamos aceitar.
- Estou orgulhoso de você – o rapaz a abraçou – vai dar tudo certo, você vai ver – ele disse antes que ela entrasse na sala.
Lincoln a aguardava na sala de reuniões, ainda sozinho. Marcelo havia corrido e já digitava compulsivamente em sua sala.
- Bom dia – ela sorriu para o sócio.
- Bom dia, Marianna – o homem sorriu – resolvi passar aqui para conversarmos em particular, antes da reunião com o pessoal.
- Tudo bem – ela sentou-se em sua cadeira.
- Eu, Lincoln, pensei muito na proposta, e sim, querida, é um contrato dos sonhos – ele sorria tranquilo, o tom de voz baixo de quem tem uma carga de experiência imensurável – mas infelizmente, eu tenho percebido que você está um pouco sobrecarregada, e nem mesmo sei do que é – o senhorzinho a encarava com bondade nos olhos – antes do resto do pessoal sentar nessa mesa, quero ter certeza de que você está bem com isso, entende? Vai ser um volume extenso de trabalho, e vai ser seu, então, como eu “desempato tudo” e o Vicente já deu seu veredito, preciso saber de você, se está tudo bem.
- Está tudo bem sim, Lincoln – ela sorriu – e eu agradeço imensamente a sua preocupação. O m*l que me assola, infelizmente, não tem a ver com o trabalho – ela suspirou – mas com a mudança e tudo mais, eu tenho certeza de que darei conta, com maestria.
- Então está ótimo, minha querida – o senhorzinho ainda sorria – posso te dar um conselho? Sem parecer um velhote intrometido?
- Claro que sim...
- Organiza uma semana para você, de verdade – ele sorria – folga, férias... Não sei, mas tira um tempo de verdade, daqueles de nem mesmo atender o telefone.
- Acho que vou aceitar esse seu conselho – ela sorriu, já tinha pensando naquilo.
- Vai ser bom para você, tenha certeza.
Logo os demais foram entrando na sala de reuniões: Armando e Vicente e assim que perceberam Pedro na sala dela, não deixaram de demonstrar certa agitação. Marianna resolveu começar logo, assim poderia terminar logo também:
- Boa tarde à todos – ela sorriu – espero que todos tenham analisado com calma os relatórios e principalmente as projeções que o Vicente nos passou ontem.
- Analisei – Lincoln foi o primeiro, era um velhinho prático, que não gostava de perder tempo – conforme conversamos rapidamente agora a pouco – ele sorriu para Marianna – acho que é importantíssimo para a nossa empresa esse contrato, mesmo que sobrecarregue a Marianna. Então, diferentemente do normal, onde eu voto no final por um desempate – ele riu – darei meu parecer inicialmente: sou a favor do projeto. Coloquei algumas observações – ele entregou folhas de papel para os outros presentes – que acho que são válidas, para podermos organizar uma rotina de trabalho onde a Marianna, o Armando e o Marcelo dêem conta – ela observou adendos de que ela deveria trabalhar três turnos da semana no escritório com Henrique inicialmente.
- Obrigada pelas observações, Lincoln – disse Armando – do ponto de vista da viabilidade, sim, com a Mari mais tempo na capital é totalmente viável, claro, que eu vou sugerir que contratemos mais alguém para auxiliar a gestão – ele sorriu – ou promover o Marcelo e colocar um novo estagiário, como acharem melhor, mas deixar alguém exclusivamente aqui para lidar com as coisas daqui e organizar para os dias que a Mari estiver, e outra pessoa com ela no projeto...
- Concordo – Vicente interpôs – mesmo se considerarmos o custo de um novo funcionário por conta desse projeto, ainda vale a pena em termos financeiros, isso sem mencionar a visibilidade – ele sorriu – desde o início, sou a favor desse projeto, mas sim, precisamos dividir essas questões todas, para que não sobrecarregue a gestão. Voto por promovermos o Marcelo, que vem provando diariamente sua competência e comprometimento com a empresa e buscarmos um novo estagiário.
- Concordo com isso também – Lincoln disse – puxamos de estagiário para auxiliar administrativo, conforme o andar da carruagem, estabelecemos um departamento para isso, como fizemos com os projetos... Para tratar mais da nossa questão local e deixar a Marianna mais livre.
- Certo – Marianna iniciou – neste projeto, do Cavalcantti, terei um estagiário em treinamento para segurar as pontas por aqui, por vezes o Marcelo estará aqui com ele, e por outras, estará comigo – ela sorriu – acredito que é um grande passo para nós, e que devemos dar ele com segurança, vamos precisar de bastante comprometimento de todo mundo para que tudo dê certo, então sim, aceitaremos o contrato – ela sorriu confiante.
- Vou pedir para que a Dani do RH suba – Armando iniciou – para conversar a questão do processo...
- Pede para ela subir em quinze minutos, por favor – Marianna respondeu séria - tenho uma questão para resolver.
- Tá tudo bem? – Armando perguntou baixinho assim que se aproximou dela para sair da sala, sem tirar os olhos da sala dela.
- Acredito que sim, obrigada.
- Qualquer coisa você me chama, viu?
- Com certeza – ela deu um tapinha nas costas dele.
O clima estava um pouco tenso: Lincoln e Vicente encaravam a sala dela pelo vidro.
- Ainda temos alguma coisa para resolver? – Marianna questionou.
- Não – Lincoln disse – tá tudo certo com ele? – ele indicava Pedro com o olhar.
- Não – ela suspirou e voltou a se sentar na mesa – estamos nos separando.
- Ah, entendo – o senhorzinho sorriu – por isso ele chegou daquele jeito.
- Que jeito? – ela franzia a testa.
- Nervosinho, apressado...
- ... mas parece mais calmo – Vicente tentou acalmar Marianna – voltamos a nos ver às 16?
- Isso – ela sorriu – até logo.