Um

3096 Words
Isabela O dia amanhecia, as estrelas desapareciam vagarosamente sendo substituídas pelos raios solares que transpassava as frestas da janela impelindo meus olhos. Isso não me incomodava, tão pouco me despertou, na verdade esta foi apenas mais uma das muitas noites de sono perdido. A insônia se tornou minha melhor amiga desde que cheguei aqui. Toco em meus cabelos negros e embaraçados a fim de me distrair com algo, mas nem foi preciso, minha tia fez isso por mim. Era apenas seis horas da manhã quando tia Lucinda ousou bater insistentemente na porta do meu quarto, ocasionando um barulho ensurdecedor para aquele horário. Emburrada, ela empurrou a porta com força e entrou sem ao menos me desejar bom dia antes de iniciar mais uma de suas longas ladainhas. — Isabela! Você não tem vergonha na cara? – esbravejou – vai fazer um mês que você está na minha casa à toa! Se quisesse alguma coisa com a vida já teria levantado e saído pra arrumar um serviço! — Mas estou procurando, a senhora sabe muito bem disso! Eles que não me ligam, eu não tenho culpa, tia! Impossível não decorar tais insultos quando sua tia insiste em jogá-los na sua cara diariamente. Por mais que eu tivesse acostumada a ser tratada com a maneira rude e desagradável, tudo que ela dizia me atingia como uma adaga. Cada palavra doía e me feria demais. — Tá procurando com o r**o na cama? – ela apontou o indicador na minha cara – na minha época não tinha essa moleza menina, eu vou avisar pela última vez: se você não me ajudar com as despesas já pode ir juntando suas malas e voltando para a roça de onde veio! — Não tia! Isso não, por favor, hoje vai ser meu primeiro dia na faculdade… eu ralei tanto pra conseguir essa bolsa… eu juro. Desse mês não passa, eu vou consegui um emprego! – respondi determinada. Ela não pronunciou mais uma única palavra; Encarou-me com desprezo, saiu marchando e novamente bateu forte a porta contra a parede, como se tivesse intencionada a arrancá-la. A angústia cortava meu peito quando eu pensava na possibilidade de voltar para o interior. O que eu iria fazer da minha vida lá, se todos os meus sonhos só podiam ser realizados aqui? Compreendo minha tia, ela mora de aluguel e mantém as despesas da casa sozinha, porque o marido assim como eu também está desempregado há um bom tempo, há anos eu acho. Basta ter bom senso para se dar conta de que eu além de incomodar, estou causando um tremendo prejuízo.  Pedir ajuda para meus pais agora, seria o mesmo que dar um tiro no pé. Daí mesmo que eles iriam insistir, falar que aqui não era para mim e implorar para que eu voltasse logo para casa. Desde que me entendo por gente venho me esforçando, me dedicando e vivendo em prol dos estudos. Quando tive minhas primeiras aulas de química e física não tive dúvidas de que eu nasci destinada a me tornar uma grande engenheira química. Às vezes eu me pegava imaginando vestida com o jaleco da Petrobrás em um de seus enormes e bem estruturados laboratórios químicos. Mas como escutei todavia: “O que cai do céu é só chuva”, sempre estudei muito, e por incrível que pareça eu não “engulo” os livros por obrigação, ou porque meu futuro depende disso, e sim porque eu simplesmente adoro números, fórmulas, ler, estudar e aprender muito. Como fazem a maioria dos estudantes após o término do ensino médio, me inscrevi na prova do ENEM, e tive um resultado positivo, tanto é que quando me inscrevi no SISU eu pude escolher entre duas grandes universidades. Mas quando vi que uma delas era a UFRJ não tive dúvidas que seria ali que iria me preparar para me tornar uma excelente profissional. Eu sei que fui ambiciosa ao me inscrever para uma federal em outro estado, até porque não sou carioca, cheguei no Rio há um mês justamente pela bolsa. Mas havia um gatilho, minha tia morava aqui há mais de 20 anos e por algum motivo ela nunca teve filhos, por isso sempre a vi como uma oportunidade perfeita para sumir do lugar que nasci. Nunca me identifiquei com minha cidade natal; Sertãozinho ficava localizada no interior de Minas, uma cidadezinha pacata com pouco mais de dois mil habitantes, ausente de urbanização e movida apenas pela fofoca. Não trago boas lembranças da maioria das pessoas, com exceção da minha família e amigos, é claro. Quanto ao Rio de Janeiro… Quem nunca quis morar na cidade maravilhosa enquanto assistia alguma novela das nove? A Globo sempre foi expert em iludir seus telespectadores.  Saí da casa de meus pais com o coração dilacerado, preparada para viver como submissa de uma saudade doída. Amo eles, seu Alfredo e dona Luzia são tudo para mim, e, é justamente por isso que irei estudar, me enquadrar numa profissão bem remunerada para futuramente oferecê-los uma vida melhor, a que eles realmente merecem. Antes de eu sair de casa, preocupada, mamãe disse: “Cuidado Isa, o Rio de Janeiro não é brinquedo!”. Quanto a isso ela tinha razão, não pela criminalidade, na verdade meu maior problema estava sendo o maldito desemprego, e posso garantir que não é por falta de procura. Eu já havia tentado de tudo. Espalhei currículos em escritórios, lojas, bares, em todo lugar imaginável. Em nenhum momento fiz questão de escolher – nem podia –, qualquer coisa me cabia, minha situação era de total desespero. O problema é que das micros às grandes empresas exigiam experiência. Mas, como vou adquirir experiência se eles não me davam uma única oportunidade de trabalho? Impossível. Apesar dos pesares, algo me diz que hoje será um novo dia, por isso não irei mais reclamar, vou focar em correr atrás do que eu quero. Imprimi mais 100 cópias dos meus currículos, creio eu que durante este mês enviei mais de 200 online, além de ter me cadastrado em vários sites. Fiz a higiene matinal e penteei meus longos cabelos com pressa. Vesti uma calça jeans lisa acompanhada de uma blusa de manga azul, estava simples, mas de acordo com a ocasião. Fiz uma make básica, me perfumei, calcei confortáveis sapatilhas na cor preta e saí. Estava mais animada para o primeiro dia de aula do que para passar mais um longo dia procurando emprego, mas não larguei a positividade em nenhum momento. […] Só tinha um mês que morava aqui, ainda não compreendia muito bem, na verdade eu sempre me perdia quando pegava um ônibus – não fazia a mínima ideia de onde parar –, portanto o aplicativo google maps se tornou meu maior aliado toda vez que saía à procura de trabalho. Peguei o ônibus e depois de mais de uma hora na condução lotada, finalmente cheguei ao centro. Lá entrei e saí de várias lojas, lanchonetes, restaurantes e outros estabelecimentos. Repeti tudo que fiz semana passada até meus currículos esgotarem de vez. Surtei quando me dei conta de que os raios solares estavam perdendo espaço para a negritude da noite. Tenho que ir logo pra faculdade! Dessa vez peguei o BRT, lotado devido ao horário de pico. Nem me surpreendi quando recebi uma mensagem da operadora dizendo que "Você usou 80% da sua franquia de internet". Revirei os olhos e voltei a me mexer numa tentativa frustrada de encontrar uma posição confortável em meio àquele aglomerado de gente. Saltei do BRT no terminal do Campus da universidade. Mesmo estando meio desorientada, não pude conter as lágrimas quando pisei ali. Meu peito esquentou quando avistei há pouquíssimos quilômetros o prédio com o acabamento moderno, marcado por grandes janelas envidraçadas.  Não acredito que vou estudar aqui!  Queria gritar para o mundo o tamanho da minha felicidade, nunca me senti tão vitoriosa em toda minha vida. Peguei outro ônibus até chegar ao prédio. No seu interior precisei pedir ajuda para encontrar minha sala em meio às centenas de portas e corredores. Como cheguei atrasada, me sentei na única carteira vaga, a última esquerda no final da fileira. Duas garotas me deram oi e se apresentaram, ainda bem que eu não era a única desesperada por novas amizades. Nesse primeiro dia de aula os professores fizeram com que todos os alunos se apresentassem assim como eles. Posteriormente cada um fez uma apresentação introdutória de suas respectivas matérias, e quando o ponteiro marcou 9hs fomos dispensados. Não esperava mais do primeiro dia de aula. Na saída, Thalita e Carol me chamaram para lanchar, porém, mesmo com fome procurei disfarçar – até porque os dois reais que eu tinha no bolso não pagariam nada ali – me despedi e saí logo. […] Minhas colegas disseram que naquele horário já não havia mais BRT direto para meu bairro, elas sugeriram que eu pegasse um ônibus, era muito mais viável e rápido. Aceitei a sugestão, mas o problema é que eu não fazia ideia de qual das dezenas de pontos de ônibus eu pegaria o meu, ali era muito grande, parecia um bairro. Passei em um por um pedindo informação. Uns diziam que era para lá, outros para cá… d***a! Estava me complicando toda. Apanhei meu telefone, porque aquelas pessoas aparentemente sabiam menos que eu. Caminhei a passos largos com os olhos concentrados no google maps. Como sou uma garota de sorte, meu celular travou e depois de longos minutos tocando a tela eu consegui acessar a página, mas para minha infeliz surpresa a operadora enviou outra mensagem: “Você usou 100% da sua franquia diária de internet”. Aff, que tédio. Averiguei o meu redor. Caminhei tanto que nem me dei conta de que havia saído da área da faculdade. E como se não bastasse eu parei numa rua m*l iluminada – quase assombrada –, longe de tudo e todos, com exceção de algumas prostitutas vestidas com roupas vulgares, algumas de calcinha e sutiã exibindo os s***s e a b***a. Mendigos espalhados sobre pedaços de papelões também marcava presença, assim como alguns cracudos.  Minhas pernas pensaram antes da cabeça. Alarguei os passos a fim de retroceder o maldito caminho que me trouxera até aqui. O interior do meu peito parecia o Alasca. Sabe aquela sensação r**m de que você está sendo, por algum motivo, o centro das atenções? Era exatamente isso que eu estava sentindo. Não me contive. Assumi para mim mesma que estava perdida, firmei a mochila nas costas e corri contra o desespero s*******o alguma de para onde iria. Corria feito uma presidiária em fuga. Quando um farol altíssimo ofuscou minhas vistas quase desfaleci de medo. Apavorada, elevei as mãos no rosto intencionada a conter a luminosidade que me cegava, quando tirei já era tarde, meus olhos ardidos avistaram um homem armado quase esfregando o instrumento mortal na minha cara. Senhor me perdoe por tudo que fiz. Eu sei que pequei e que durante meus 18 anos de vida só errei… Mas, por favor, não me deixe morrer aqui… Rezava com as pernas trêmulas, enquanto minha garganta travava uma luta contra a imensa vontade que eu tinha de gritar, botar para fora todo choro que me sufocava. — Ih qual foi? Nem te passei a visão e tu já assim. Relaxa… Vamo acabar com isso logo, passa tudo p***a! Vai adiantando as nota, celular, cordão de ouro. Se arranja! – a voz rouca me deixou ofegante. O homem parecia estar ditando minha morte através do timbre rude.  Com os braços trêmulos tirei meu celular da mochila e o entreguei temendo. O par de olhos negros do bandido faltaram saltar para fora do capacete quando ele viu o aparelho. — Que p***a é essa novinha? Cadê o celular? Passa logo o iphone com a senha! — Iphone? Moço, pelo amor de Deus! Esse é o único ce-ce-lular que eu tenho… Eu não tenho nada, eu juro! – respondi em meio a lágrimas e gaguejos, desesperada com tudo.  Tirei a mochila das costas e joguei tudo que havia dentro no chão. Eu queria provar para aquele desgraçado que eu não tinha nada, muito menos um iphone. Peguei, abri minha carteira e estendi a mão com a única cédula que tinha, 2 reais. O ordinário calou-se momentaneamente. Depois respirou fundo e disse: — c*****o! Já vi que não vai dar em nada, guarda isso aí – disse num ar de deboche, enquanto colocava a arma na cintura outra vez – sá p***a não dá nem pra revender! Desgraçado! Infeliz! Folgado! — Tava rodando nesse pedaço atrás de quê? Se for pedra eu tô com umas aqui pow… O interrompi frustrada. — Não! Não é nada disso. Eu só quero ir embora… ai meu Deus eu tô perdida, preciso achar o ponto de ônibus! Tô liberada, não tô?! – perguntei apavorada, àquela altura meu rosto se encontrava completamente molhado devido às lágrimas. Minhas mãos ainda tremiam enquanto eu me abaixava disfarçadamente para apanhar os pertences que joguei da minha mochila. Não aguardei uma resposta, firmei a mochila nas costas e corri. Porém, antes de eu sequer dar o primeiro passo o bandido foi mais rápido, ele apertou meu braço, me puxando agressivamente para trás.  — Perdida? Tu mora onde? – não consegui dizer nada, o medo me impedia de agir e de falar qualquer coisa. O silêncio se acomodou como uma tortura até ele quebrá-lo de vez – passa a visão, p***a! Tô aqui, mas tô no corre! — Deodoro – minha voz saiu fraca, angustiada. — Mó contra mão. Mas de boa, tu me pegou tranquilasso, hoje eu tô suave. Monta aqui que eu vou te dar essa moral: vou te deixar em casa! – o homem piscou maliciosamente através do capacete. — Como?! —Ta s***a?! Eu realmente não estava acreditando, o cara que tentou me assaltar estava mesmo me oferecendo uma carona? Não é possível. Mas o que eu poderia fazer? Contrariar um bandido? Jamais. E perdi o controle dos meus batimentos cardíacos, meu coração chacoalhava mais que um sino. Eu sei que aceitar era tão arriscado quanto recusar. Não conseguia raciocinar, tudo estava acontecendo de uma maneira tão rápida que nem eu mesma estava sabendo lidar.  — Mas, e… o capacete? — Tô te oferecendo carona, e tu ainda quer capacete?! Monta logo nesse bagaço p***a! Não ousei questionar mais. Tive medo de contrariá-lo. Caminhei até ele a passos lentos e desconfiados. Antes de subir ele perguntou meu endereço com referências, eu expliquei tudo, depois não ouvir mais a voz prepotente. Era difícil acreditar no que estava havendo, a culpa era minha! Todos me avisaram sobre os perigos que rondavam a cidade, tia Lucinda mesmo havia me alertado, ela já foi assaltada três vezes; não podia negar que estava com medo, muito medo, e se aquele homem me levasse para um matagal e me estuprasse? Subi na garupa e mantive os olhos fechados, não só pelo temor, mas pelo vento intenso que batia contra meu rosto e brincava com meus cabelos. A moto acelerava desenfreada a mais de 100km por hora. Durante o trajeto as buzinas eram o barulho mais frequente. Como já estava sem capacete, o jeito era segurar firme na cintura forte, quente. O corpo do homem estava levemente inclinado para baixo e eu me mantive agarrada nele da mesma maneira. O casaco de algodão grosso esquentava sua pele, e consequentemente a minha. Meu nariz estava próximo à nuca do bandido e mesmo diante de toda ventania não pude deixar de sentir o perfume forte com toque amadeirado que conseguiu me deixar inebriada num único suspiro. Não sabia que bandidos cheiravam tão bem. Quando a moto parou, abri os olhos vagarosamente, não acreditei na imagem à minha frente, ele realmente havia me deixado no portão de casa. Desci do veículo desacreditada. Minha vontade era correr para dentro de casa e fingir que nada daquilo aconteceu. Mas como esperado ele foi ágil e me puxou pelo braço novamente. — Curtiu a carona? Te dei mó moral – ele me soltou e elevou as mãos até o capacete. Ao tirá-lo, o sorriso branco perfeitamente alinhado destacou-se no rosto marcado por um perfeito e definido cavanhaque, e barba por fazer. O homem franziu o cenho, enrugando a pele naturalmente bronzeada, n***a como chocolate – hoje tu colou com a sorte, tá ligada que se fosse outro… – arqueou as sobrancelhas grossas que faziam um desenho sobre os grandes olhos negros, que mais pareciam uma forma de acesso a escuridão. Ele segurou meu punho com força, quase me machucando com a mão áspera. Num impulso me puxou contra seu corpo fazendo nossas peles tocarem uma à outra. Meus pelos se ergueram quando sua temperatura quente chocou com meu suor frio, tenso. Respirei fundo numa tentativa louca de prender meus gritos e o choro na garganta. — E aí, tá esperando o quê pra me agradecer? — Agradecer… – eu sabia o que ele queria, fui muito ingênua. Com certeza ele iria me usar, depois picar meu corpo em pedacinhos e me jogar na lata de lixo, era óbvio isso. Engoli em seco quando os olhos escuros me fitaram como se estivesse me escaneando.  — Pow! Mar tu é dramática hein! Pra quê esse choro todo?! – perguntou num ar de deboche enquanto desviava os olhos para o imenso e luxuoso relógio dourado – já deu minha hora, vou ter que meter o pé. Aí, me passa teu número, gostei de ti. Tu é uma gracinha – piscou maliciosamente com um dos olhos. Eu sorri, mas não sabia distinguir se aquilo era pânico ou alívio por ainda estar intacta, viva. Balancei a cabeça ainda em euforia. Até parece que eu iria passar meu número para um bandido, minhas loucuras tinham limites. — Eu pego o seu. Juro que ligo! – afirmei séria. — Então tá, anota aí. Anotei o número. Óbvio que eu nunca iria ligar, mas disfarçar evitava imprevistos e me mantinha viva.  Quando ele ligou a moto não contive minha curiosidade. — Ei, qual é o seu nome? — Marre… Rafael! Ajustou o capacete, me sondando com um sorriso no canto dos lábios carnudos. — O meu é Isabela, obrigada pela carona Rafael – afirmei sorrindo, acenando para o bandido. Ele retribuiu fazendo o sinal de dois com os dedos. Depois partiu em alta velocidade, queimando os pneus no asfalto enquanto puxava de uma roda. Achei aquilo legal. Fiquei admirando-o de longe enquanto roía as unhas com o nervosismo exalando do meu corpo. Só entrei em casa quando o assaltante desapareceu de vez da minha vista.
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