— Abel! — chamei e o anjo apareceu em minha frente como se estivesse ali o tempo inteiro. — Já estou na casa dos meus pais como prometi. Cumpra sua parte da promessa! Quero meu emprego!
Seus olhos reviraram e ele sentou na ponta da cama, seu semblante era uma espécie de decepção e indiferença, o olhar de quem vê uma criança fazendo pirraça só para conseguir o que quer.
— Você tem uma lista de problemas, Nana, — falou pegando um ursinho rosa e apertando sua barriga fofinha. — você mesmo os listou. Eu vou ajudá-la a resolvê-los, mas tudo no tempo certo.
— E por enquanto eu fico sendo torturada pelos meus segredos e pelas expectativas da minha família! — sussurrei mesmo querendo berrar. Seria péssimo se além de ferrada, meus pais descobrissem que eu estava maluca e conversando com um anjo imaginário.
Ele deu de ombros, paciente e apático.
— Talvez esse seja o primeiro problema a ser resolvido... — comentou somente.
— Acontece que este não é um problema que pode ser resolvido. Sou um fracasso, ok! Mas não quero tornar isso mais público do que já é.
Meu celular vibrou mostrando um histórico de ligações e mensagens, a maioria delas era do Samuel. O maldito cretino! Olhei para o anjo quase em tom de súplica.
— Pode ao menos fazer esse i****a para de me mandar mensagem? — perguntei inalando pesadamente.
Samuel era o cara perfeito até se tornar o maior filho da mãe de todo o universo! Quando o conheci achei que eu tinha começado a fazer sentido. Para uma garota caipira, conhecer um norte-americano bonitão e bem de vida era como estar numa comédia romântica transmitida nas sessões da tarde. Ele foi doce, galante e divertido. Apresentou-me aos amigos e fez com que eu sentisse que todas aquelas relações eram de verdade. Achei que com ele a sorte havia chegado para mim, mas Samuel era só mais um azar da minha vida, um muito bem disfarçado e debochado.
Abel suspirou caminhando até mim, pegando meu celular, em que bloqueou o número do outro e desligando o aparelho logo em seguida. Era o óbvio a ser feito, mas que na raiva não lembrei de fazer, ou não quis, afinal Samuel era a pessoa mais próxima que eu tinha em NY. Ele era a minha família de lá.
— Comece pelo mais fácil Nana! — falou voltando à cama. — Diga o que já está na ponta da língua e o resto sairá com facilidade.
Não precisei pensar para dizer o que estava engasgado.
— Eu odeio minha vida! — respondi com convicção.
— Mas por quê? — Nívea estava na porta do meu quarto, olhando como se olhasse uma tragédia acontecer. — O que está acontecendo com você, estranha?
— É que... — gaguejei tentando pensar em alguma desculpa.
Abel não estava mais lá. Grande ajuda!
— A faculdade está difícil e está com vergonha de nos contar? — supôs com um sorriso no rosto. — Coisas assim acontecem, mas você consegue! O mundo não acabou por conta disso!
Não contestei, só respirei fundo me sentindo ainda mais triste.
— Farei algumas compras de Natal, quer vir comigo? — perguntou.
— Não.
Não poderia ficar sozinha com ela ou descobriria todos os meus segredos antes que eu pudesse pensar em contar. Nívea era assim, ela me olhava e podia adivinhar facilmente o que eu queria dizer. Eu que nunca fui muito observadora ou sensitiva, talvez nem fosse uma boa irmã.
Nívea torceu o nariz, analisando-me.
— Por que está tão ranzinza assim? Até parece que não quer estar aqui. Nós caipiras não somos mais dignos da sua presença internacional e fluente em inglês? — deu uma risadinha cínica.
Revirei os olhos e meneei a cabeça. Eu que não era digna deles.
— Não estou ranzinza. Eu sou ranzinza. Você não tem que brincar de casinha e vida feliz de casada, não? — respondi deitando na cama que agora era um pouco pequena para mim.
— Não lembro de você ser assim, Nana Banana! — chamou-me pelo meu apelido de infância
— Odeio que me chame assim! — resmunguei.
A história do meu nome era ridícula. Meus pais fizeram o favor de deixar uma criança de dois anos escolher o nome da sua irmã que estava para nascer. Nívea m*l juntava as sílabas e de repente escolheu Nana. O mais estranho foi que meus pais gostaram de como soava sem nem pensar que eu sofreria bullying na escola.
— Por sua causa tenho nome de animal de estimação! — ralhei.
Nívea soltou uma gargalhada e cruzou os braços. Fazia muito tempo que não discutíamos sobre aquilo depois de passarmos a adolescência inteira discutindo sobre.
— Ah, para! Eu tenho nome de marca de cosmético! — relembrou. — Te chamavam de totó e me chamavam de desodorante, lembra?
Torci o nariz e me virei na cama para não olhá-la. Não queria mais lembranças felizes do passado para me lembrarem de que me estraguei tanto.
— Vamos lá, Nana! — insistiu. — Abriu uma nova loja no shopping e você vai amar, juro! Te compro um lanche estilo nova-iorquino!
— Vou passar essa — murmurei.
Minha irmã bateu o pé no chão com a cara de que não se contentaria com aquela resposta.
— Você vai comigo querendo ou não! — ralhou.
— Não vou não! — retruquei me virando para um cochilo. Tinha dormido a maior parte do tempo desde que chegara no dia anterior.
— Ah não? — falou chateada. — Ô mãe, a Nana Banana está dormindo até agora!
Golpe baixo. Golpe tão baixo quanto a minha autoestima.
Mamãe despontou pelos corredores da casa e eu quis enfiar minha cabeça no travesseiro e morrer sufocada.
— O que foi? — mamãe perguntou entrando no quarto. — Está doente, Nana? Foi o cansaço da viagem?
— Só estou indisposta... — respondi quando ela colocou a mão em minha testa para medir a temperatura como sempre fizera.
Suas mãos sempre estavam frias e cheirando à cebola.
— A disposição virá se sair dessa cama! — incentivou-me e me enrolei na cama mais ainda. — Vamos, venha! Me ajude a cozinhar!
E com uma carranca levantei da cama. Nívea sorriu vitoriosa e eu quis que o bebê dela nascesse de bigode, o que seria péssimo se fosse uma menina, e não seria muito melhor se fosse um menino.
Descascamos mais de uma dúzia de batatas até as pontas dos meus dedos ficarem enrugados com a umidade.
— Tire só a casca! — mamãe chiava e apontava para as minhas batatas deformadas. — Está jogando a batata toda fora! Onde estão as ameixas em calda? Quem comeu? Era para o pudim!
Eu nunca fui boa em cozinhar. Na verdade, ainda não sabia no que era boa, de fato. Talvez eu fosse boa em soletrar palavras difíceis ou usar a crase corretamente, mas essas não pareciam ser qualidades memoráveis. Eu só poderia soletrar o quanto eu era frustrada. F.R.U.S.T.R.A.Ç.Ã.O. Substantivo feminino e abstrato que alega que uma pessoa está no fundo do poço de todas as formas humanamente possíveis. Utilização numa frase: Nana sente-se frustrada desde... sempre!