Para casa

1560 Words
Lista de motivos para não querer voltar para a casa dos meus pais: 1. Eles não sabiam que não estava vivendo a vida de que tínhamos planejado; 2. ‎Eles surtariam ao saber que todo o dinheiro que gastei para estudar em outro país tinha se resumido em nada, porque nem estudando eu estava; 3. ‎Surtariam mais ainda se soubessem que minha expectativa de vida é bem fantasiosa; 4. ‎Seria comparada à Nívea, como sempre; 5. ‎Odiava ser comparada à qualquer pessoa e ser sempre o exemplo r**m; 6. ‎Eu não tinha preparação psicológica para suportar essa viagem; 7. ‎Estava na bad! Momento mais bad da minha vida. Minha vida já poderia se chamar bad, de tanto que a bad é constante. Daí as pessoas falariam "como vai a bad?" em vez de "como vai a vida?" — Você já leu todos esses livros? — Abel perguntou interrompendo meu monólogo sobre quão r**m era seu eu. Ele estava em frente à minha pequena prateleira de livros, encaixada num lugar estratégico para esconder uma rachadura na parede. — A maioria sim. — respondi jogando qualquer roupa na mala. Não sabia mais como me vestir para estar no interior da Bahia. Quer dizer, naquele momento estava usando duas calças, dois suéteres, duas meias e luvas só para ficar dentro de casa, enquanto no Brasil seria os 40ºC do verão. Tudo bem, o problema não era as roupas, eu só não estava preparada para decepcionar minha família. — E qual seu livro preferido? — insistiu numa conversa aleatória. — E qual você gostaria de ler, mas ainda não leu? — Meu favorito se chama Anexos, o de capa amarela. É o terceiro livro da direita para a esquerda! — apontei e pensei um pouco na segunda pergunta. — Acho que os que eu gostaria de ler ainda não tenho. — E os que têm aqui? Dei de ombros indiferente. Grande parte daqueles livros foram presentes do Samuel. No começo era fofo que ele se interessasse pelo meu gosto pela leitura, mas depois de tudo que aconteceu, comecei a perceber que eram presentes convenientes, não atenciosos. Ganhei um livro para cada data comemorativa que passamos juntos. Livros de gêneros que nem me interessavam. Por que ele me daria tantos livros quando eu trabalhava numa livraria? A verdade é que ele nem se preocupava em pensar no que eu queria ou o que precisava. Ganhava livros porque era mais fácil para ele. Nada foi por mim. — Ainda não tenho interesse em lê-los... — expliquei. — Mas por que está perguntando isso? Abel colocou o livro Anexos dentro da minha mala e me deu um sorriso compadecido, como se soubesse o que todos aqueles livros significavam. — Para ler na viagem. — falou. Pensei em retrucar, mas já havia um tempo que eu queria reler aquele livro. — Está tudo pronto? — perguntou quando vesti o meu casaco e respirei fundo. — Não esqueceu nada de importante? Olhei em volta. Tudo o que eu precisava era de coragem e isso não estava em nenhuma gaveta ou canto da casa. — Peguei tudo — respondi. — Então, vamos? Lamentei mentalmente. Lista de motivos para voltar para a casa dos meus pais: 1. Fiz um pacto com um anjo. O prédio estava silencioso quando saí. Provavelmente os outros moradores já deveriam estar na casa de seus familiares, embora eu não soubesse se todos tinham algum lugar para ir. De qualquer forma, sempre parecia que eu era a única a não viajar em feriados e fins de semana. Também não me bati com a Sra. Jackson, por sorte! Pagaria o aluguel atrasado quando voltasse e já tivesse meu tão prometido emprego. Se Abel cumprisse o que estava dizendo talvez desse tudo certo. Talvez eu nem precisasse admitir meus fracassos para todos. Já tinha ligado para mamãe para avisar que estava no aeroporto e que ligaria quando o avião pousasse. Ela me assegurou de que papai ou Diego, meu cunhado, me buscaria no aeroporto da nossa cidadezinha. Só esperava que a Nívea não fosse junto, porque precisaria de mais um tempo para formular todas as respostas prontas que driblassem minha irmã mais velha sobre a verdade. — Você está com medo? — Abel perguntou durante a viagem, eu neguei silenciosamente. Estava apreensiva, nervosa, ansiosa, mas não com medo. O meu receio fazia parecer que meus pais eram terríveis, controladores, grosseiros. Porém não. Eles eram as melhores pessoas que conheci em toda a minha vida, eram gentis e nobres, provavelmente me perdoariam. O problema era comigo. Estava cansada de ser um fracasso, foi por isso que tentei uma bolsa para estudar no exterior, porque não aguentava mais não corresponder às expectativas dos parentes, não conseguir seguir os mesmos passos da minha irmã... Não sabia ainda quem eu era e por isso fui buscar em NY enquanto aproveitava o visto de estudante de Psicologia para descobrir um novo mundo. — Chame a comissária e peça alguma coisa para comermos! O que acha? — o anjo insistiu me fazendo parar de pensar besteira. *** Quando encontrei meu pai no aeroporto até me derreti um pouco, quase tinha esquecido sua estatura redonda e aconchegante. Sentia saudade deles, de todos. Talvez eu só não sentisse de si mesma ali. E quando cheguei em casa e encontrei todos lá, fiquei com vontade de voltar para Nova York. Não saberia mais mentir para eles. — Achei que você não viesse! — Minha irmã mais velha debochou antes de me abraçar apertado, amassando meu rosto em seu ombro e escondendo minha careta entre seus cabelos cacheados e rebeldes, assim como os meus. — Está mais magra! — mamãe comentou segurando meus ombros para me dar uma boa olhada. — Está se alimentando direito? Eu sei bem que esses norte-americanos comem mais lanches do que comida saudável! — Estou bem, mãe! — falei sem vontade de explicar que eram só as preocupações que estavam me consumindo de dentro para fora e seria um péssimo começo se já fosse falando que estava racionando comida desde a semana passada. — Vá descansar, Nana! — papai falou e quase lhe dei um abraço em agradecimento. Cumprimentei a todos brevemente. Até alguns vizinhos estavam presentes para poder me saudar e fofocar sobre mim depois. Tinha sido uma grande fofoca quando decidi estudar no exterior. As pessoas comentavam pelos cantos que eu não passava de uma perdida que explorava meus pais ingênuos, o que acabou se tornando verdade. Todos elogiavam minha irmã, pela sua perspicácia e gentileza, torciam para que eu me tornasse semelhante, mas sempre com a conversa de ninguém seria melhor filha, irmã e esposa do que a Nívea. E tudo bem, até eu gostava mais dela do que de mim. — Sua família é legal! — Abel comentou quando entrei no meu antigo quarto. Estava tudo exatamente igual como deixei dois anos atrás antes de partir. Meu edredom rosa favorito e meu tapete felpudo que deixei por achar que não sentiria falta, mas senti. Senti falta de cada canto daquele universo que um dia era o quarto que dividia com minha irmã, e depois se tornou só meu quando Nívea se casou. — Espera até só eles começarem a exaltar a Nívea e me jogar para escanteio!  — resmunguei empurrando algumas das velhas pelúcias de cima da escrivaninha para colocar a minha bolsa. A ovelhinha de pelúcia que antes era de um branco estridente agora tinha um aspecto doente e amarelado. — Você tem inveja da sua irmã? — ele questionou sem escrúpulos. Parei um momento pensando em sua pergunta. — Inveja não. Só queria também ser reconhecida... — suspirei. — Mas só posso ser reconhecida como o maior fracasso da família. A ovelha n***a, sabe? Ou melhor, a ovelha encardida e amarelada, que não se ajeita nem com Vanish. — Você não é uma fracassada! — rebateu deitando em minha cama, os braços esticados sobre a cabeça fazia com que a blusa subisse um pouco, mostrando seu abdômen, a pele tinia como se usasse os melhores cosméticos do mercado. — Só é um pouco azarada. — Exatamente! Tenho azar no amor, azar no dinheiro, azar no sucesso e sorte no azar. Ou seja, fracassada! A soma dos meus azares resultam no meu fracasso. É a equação da minha vida, da minha bad! — Que pessimista e dramática! — sibilou antes de evaporar como fumaça. Odiava quando ele fazia aquilo. Sumia e aparecia do nada, quando queria. Era só esperar para ver, pensei me jogando na cama aonde Abel estivera. O lugar estava frio, apesar de vagamente desarrumado, como se um corpo humano nunca tivesse se deitado ali e transmitido calor. Provei a equação da minha vida quando durante o jantar, Nívea anunciou que estava grávida. Quer dizer, me informou, porque todos já sabiam e o motivo de mamãe insistir para que eu voltasse, além de ser Natal, era isso. Era uma grande notícia e quase achei que seria o suficiente para que as pessoas esquecessem da minha existência ali, mas foi bem o contrário. A novidade da minha irmã criou ainda mais expectativas sobre a minha vida em ruínas. Também fizeram uma série de perguntas sobre o meu relacionamento (agora inexistente) com o Samuel e sobre a faculdade e eu apenas dei respostas ambíguas e curtas, sem vontade e coragem para contar a verdade   
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