— Não precisa se dar ao trabalho de montar tudo na sala de jantar. Eu como aqui mesmo — digo, preferindo a simplicidade da cozinha, onde pelo menos há um toque de vida, à formalidade vazia da sala de jantar.
— Tudo bem, você é quem sabe.
Enquanto colocamos os pratos e talheres na pequena mesa da cozinha, percebo que Nice hesita, como se estivesse procurando as palavras certas para dizer. Seu olhar preocupado revela uma tentativa de cuidado que toca algo profundo em mim.
— Sarah — ela finalmente quebra o silêncio, sua voz suave, quase maternal —, sei que este tem sido um período difícil para você, especialmente depois do seu rompimento com Pedro. Eu só queria que soubesse que estou aqui para você, caso precise conversar ou desabafar.
Suas palavras, ditas com tanta sinceridade e carinho, rompem a barreira que eu havia erguido em torno dos meus sentimentos. Um nó se forma em minha garganta, e antes que eu possa me controlar, as lágrimas começam a rolar pelo meu rosto, silenciosas e implacáveis.
— Obrigada, Nice — digo com a voz embargada. — Realmente tem sido difícil lidar com tudo isso sozinha. Às vezes, sinto que estou me afundando em um abismo sem fim de dor e solidão.
Ela coloca sua mão gentilmente sobre a minha, um gesto de conforto que faz meu coração se aquecer, mesmo que apenas por um momento.
— Você não está sozinha, Sarah — ela diz com firmeza, seus olhos fixos nos meus, transmitindo uma força que eu não sabia que precisava. — Você tem sua família, tem amigos. E sei que, com o tempo, vai encontrar uma maneira de superar essa dor. Vai ver, as coisas vão melhorar.
A sinceridade em sua voz é um bálsamo para minha alma ferida. Eu a abraço, e o ato de apertar outra pessoa me dá uma estranha sensação de segurança, como se, por um breve momento, eu pudesse deixar toda a minha dor para trás. Minhas lágrimas molham seu ombro, e ela simplesmente me segura, sem pressa, permitindo que eu libere tudo o que tenho guardado.
Quando finalmente nos separamos, solto um suspiro pesado. Decido, silenciosamente, que preciso lutar. Que hoje, ao menos por hoje, vou me esforçar para deixar o passado para trás. Com um coração pesado e uma determinação frágil, enfrento o novo dia que se estende à minha frente.
Nice se junta a mim para o café da manhã. Enquanto comemos, ela começa a me contar histórias engraçadas sobre os animais da fazenda, suas travessuras e peculiaridades. Pela primeira vez em muito tempo, deixo escapar uma risada genuína. É estranho como, no meio da escuridão, pequenos momentos de leveza podem surgir, oferecendo um vislumbre de esperança.
Depois do café, Nice menciona, quase como um comentário casual, que está preocupada com a preparação do manjar branco para o jantar de véspera de Natal. A cozinha, geralmente seu domínio, parece ter se tornado um campo de batalha onde faltam ingredientes cruciais.
— d***a! — ela exclama de repente, voltando da despensa com uma expressão frustrada. — Estamos sem o ingrediente principal.
— O que falta? — pergunto, já me preparando mentalmente para resolver o problema.
— Maizena — ela responde, olhando para mim com uma expressão esperançosa. — Será que você poderia ir até o mercado e comprar para mim? Não demora muito.
Eu sorrio, sentindo que posso, pelo menos, fazer algo útil.
— Claro, Nice. Vou agora mesmo.
— Obrigada, querida — ela diz, aliviada.
Saio da cozinha e caminho em direção à garagem, onde os carros da fazenda estão estacionados. Escolho a picape e, ao partir em direção ao mercado, o ar fresco da manhã envolve-me. A paisagem ao meu redor, com suas vastas planícies e montanhas ao fundo, é uma lembrança da beleza intemporal desta terra que chamo de lar. As árvores balançam suavemente ao vento, e o gado pasta tranquilamente nos campos verdejantes. Tudo parece tão calmo, tão imperturbável, que, por um breve momento, sinto-me conectada a algo maior, algo que transcende a minha dor pessoal.
Ao chegar ao Carrefour, sou imediatamente recebida por um ambiente completamente diferente. A agitação do mercado, com sua música Natalina e o burburinho das pessoas, me tira da serenidade que a fazenda me proporcionou. Mas há algo de reconfortante nesse caos também, um tipo de vida vibrante que me faz sentir menos sozinha.
Enquanto percorro os corredores do mercado em direção ao caixa, uma corrente de adrenalina percorre meu corpo ao avistar uma figura conhecida no final do corredor. Lá está ele, Pedro, parado entre as prateleiras, absorto em sua tarefa de examinar os produtos. Seu corpo musculoso se destaca de forma irresistível sob o jeans desgastado, moldando suas pernas fortes, enquanto a camisa entreaberta revela os contornos do peito e uma fina camada de pelos escuros. A barba semicerrada dá-lhe um ar ainda mais masculino, uma aparência rude que contrasta com a suavidade de suas feições. Ele está ainda mais atraente do que a última vez em que o vi. A imagem dele faz meu coração disparar, e uma avalanche de emoções antigas me atinge com força, deixando-me momentaneamente sem ar.
Minhas pernas vacilam, incapazes de se mover. Por um momento, fico ali, parada, como se estivesse presa a algo invisível que me impede de avançar. Meus olhos não conseguem se desviar dele, fixos naquela figura que representa tanto para mim. É como se a distância entre nós fosse irrelevante, como se existisse uma força invisível que continuasse a nos unir, mesmo depois de tanto tempo.
Então, Pedro levanta o olhar e nossos olhos se encontram. Sinto um choque percorrer meu corpo. Ele para ao me ver, congelado no lugar, e por um instante que parece uma eternidade, ficamos imóveis, apenas nos encarando. O silêncio que nos envolve carrega o peso da nossa história, de tudo o que não foi dito durante esses meses de separação. É um silêncio cheio de mágoa, arrependimento e uma tensão tão densa que parece quase palpável.
Cada segundo nos mantém presos nessa troca de olhares carregada de significados ocultos. Nenhum de nós se move ou diz uma palavra, mas o que não é dito fala mais alto do que qualquer conversa poderia expressar. O ar ao nosso redor parece pesado, como se estivesse cheio da dor e da saudade que tentamos enterrar, mas que agora ressurge com força total.
Finalmente, Pedro quebra o contato visual, desviando os olhos para o chão por um instante antes de erguer a cabeça e encarar-me de novo, desta vez com uma expressão mais resoluta. Ele começa a caminhar na minha direção, seus passos lentos e cautelosos, como se estivesse travando uma batalha interna com seus próprios sentimentos. Cada movimento dele carrega uma hesitação que revela o quão difícil este reencontro é para nós dois.
Eu permaneço imóvel, meu corpo congelado pelo choque e pela confusão. Nunca imaginei que ele se aproximaria, que quebraria o muro invisível que construímos entre nós. O meu coração bate descompassado, cada batida ecoando a mistura de raiva, amor e saudade que sinto, mas que não consigo expressar.
— Sarah... — A voz dele é baixa, rouca, cheia de uma emoção que ele tenta suprimir, mas que transborda nas palavras.
— Pedro... — Minha voz é um eco da dele, quase inaudível, como se estivesse tentando se esconder da intensidade do momento. Sinto meu corpo inteiro reagir ao som de seu nome, meu coração acelerado, minhas mãos trémulas.
O que acontece entre nós é uma tempestade silenciosa, um redemoinho de sentimentos conflitantes que nos arrasta para um mar de lembranças. Estou dividida entre o desejo de fugir e a necessidade de permanecer, de confrontar tudo o que está acontecendo.
Pedro para a poucos passos de mim, o seu olhar penetrante buscando respostas que talvez nem ele saiba quais são. Seus olhos, antes tão familiares, agora parecem um labirinto de emoções que eu não consigo decifrar. A proximidade dele me faz sentir como se estivéssemos à beira de algo inevitável, um precipício emocional do qual não há como escapar.
— Eu... não esperava te ver aqui — digo, as minhas palavras saindo entrecortadas, lutando para organizar os meus pensamentos e sentimentos. Parece quase ridículo falar algo tão trivial quando há tanto em jogo, mas é a única coisa que consigo dizer.
— Nem eu — ele responde, sua voz baixa, quase um sussurro, e eu vejo a dor nos seus olhos, a culpa e o arrependimento misturados. Sua expressão é um reflexo do que estou sentindo, e isso me atinge como um soco no estômago.
Por um momento, ficamos assim, no meio do corredor do mercado, rodeados por pessoas que seguem com suas vidas, alheias à tempestade emocional que estamos vivendo. O tempo parece desacelerar, e cada segundo se estende em uma corda tênue que pode se romper a qualquer momento.
— Você está bem? — ele pergunta de repente, e o som da sua voz me tira do transe em que estou.
Eu tento sorrir, mas o gesto parece falso até para mim. — Estou ótima — minto, porque essa é a resposta mais fácil, mesmo que esteja longe da verdade. — E você?
Pedro hesita, os seus olhos me analisando como se estivesse tentando determinar se minhas palavras são verdadeiras. — Estou... lidando com as coisas — diz ele finalmente, a sua voz carregada de uma tristeza que não consigo ignorar.
Há tanto que ainda precisa ser dito, tantas feridas que precisam ser confrontadas, mas no fundo sei que isso não vai acontecer agora. Estamos presos em um ciclo de mágoas e arrependimentos que não podem ser resolvidos numa conversa casual no corredor de um mercado. Mesmo assim, continuamos presos um ao outro, como se ainda estivéssemos procurando uma maneira de consertar o que foi quebrado.
Mas as palavras falham, e eu sei que não há mais nada que possamos dizer um ao outro que possa mudar o que aconteceu.
— Feliz Natal, Pedro. — a minha voz soa estranhamente formal, como se estivesse colocando um ponto final na nossa história.
Ele me encara por mais um momento antes de dar um leve aceno de cabeça. — Feliz Natal, Sarah.
Eu me afasto, carregando comigo os ingredientes para a sobremesa de Natal e o peso de tudo o que ficou por dizer. O encontro inesperado com Pedro me deixou desnorteada, uma lembrança dolorosa de que o passado ainda tem garras afiadas em mim. Ao sair do mercado e dirigir de volta para a fazenda, as paisagens que sempre me confortaram agora parecem irreconhecíveis, como se estivessem envoltas em uma neblina de dor e arrependimento.
Cada quilômetro que percorro me afasta fisicamente de Pedro, mas emocionalmente ainda estou presa naquele corredor, naqueles minutos em que tudo voltou à tona.