CINCO ANOS ANTES
— A mamãe vai brigar com a gente, Ana — repeti olhando para as duas caixas de coloração para cabelos nas minhas mãos que havíamos acabado de comprar em uma loja.
— É o seu aniversário — minha irmã mais velha recordou com um sorriso eufórico no rosto e aumentou a velocidade da caminhonete velha que tínhamos emprestado do chefe do nosso pai. — Ela não pode ficar brava contigo no seu aniversário.
— Só não pode, como vai me m***r e eu só tenho doze anos.
— Treze, na verdade — corrigiu, toda orgulhosa como se eu tivesse conquistado o prêmio de melhor aluna do colégio.
A cada minuto mais próximo da nossa casa, mais ansiosa eu ficava para poder mudar a cor do meu cabelo pela primeira vez, porém, não deixava de temer a reação dos meus pais quando descobrissem que a filha mais nova fez mechas roxas.
Ao avistar o portão de madeira rústico com dois X embutidos, a Ana parou com o veículo na frente e eu, rapidamente, tirei o cinto de segurança e desci para abri-lo.
Quase me arrependi de ter vestido um casaco de moletom preto com uma calça jeans quando senti o sol quase rachar a minha cabeça, entretanto, odiava vestir roupas justas e curtas quando ia na cidade mais próxima, porque os homens costumavam me chamar de gostosinha e falar palavras grotescas para mim mesmo que eu tenha só doze anos. Bom, estou completando treze anos hoje, contudo, não deixa de ser nojento de qualquer maneira.
É muito comum meninas adolescentes se casarem com homens mais velhos pelas redondezas de onde moramos, o que pra mim é pior que a morte, porque eu, particularmente, preferiria ter minha cabeça decepada do que beijar um cara com quinze anos a mais que eu.
— Tá passando m*l? — Ana gritou, fazendo com que eu olhasse confusa para trás e a encontrei com a cabeça do lado de fora me encarando com preocupação. — Você tá fazendo cara de quem vai vomitar, Alana.
— Ah, isso? — Dei uma risadinha sem graça e abri o portões. — Tô lembrando que a Julie vai casar com aquele velho que é dono do mercado.
— Não vamos julgar nossa prima, porque, um dia, pode ser a gente se apaixonando por um idoso.
— Deus me livre e guarde desse m*l, Ana! Vai jogar essa praga em outra…
Ana soltou uma gargalhada e deu partida na caminhonete enquanto eu esperava ela estacionar embaixo das árvores.
— Vai querer pintar hoje ou amanhã? — a morena indagou quando desceu do veículo.
— Hoje! Com certeza, hoje!
Fechei os portões outra vez antes de correr em direção a nossa casa.
— Hermione! — gritei ao ver a minha gatinha ruiva sentada na varanda e a segurei no colo. — A neném da mamãe já comeu?
Fiquei acariciando o pelo macio da minha b******a e me surpreendi quando notei a Ana parada ao meu lado com seu olhar fixo na nossa casa como se quisesse gravar na memória cada detalhe da estrutura pintada de verde esmeralda e janelas brancas.
— Vou sentir tanta falta daqui, sabia? Passo dias reclamando da vida difícil que temos na roça, mas ainda é o meu lar.
— Não sei como vai ser quando você for embora. — Meus olhos se encheram de lágrimas e ela me abraçou de lado. — Tô tão acostumada em passar os dias contigo.
— Prometo vir te visitar sempre que possível e assim que você completar dezoito anos, irei te levar pra morar comigo.
— Não sei se quero deixar a minha vida aqui, mas é melhor morar com você na cidade grande do que casar com um velho como a nossa prima.
— Para de implicar com a Julie, sua chata. — Sua risada chegou aos meus ouvidos no mesmo instante que a garota jogou seu quadril contra o meu.
— Tá defendendo muito a dona do asilo, hein? Tem algum Matusalém em vista, é? — impliquei, rindo.
— Só se tiver muito dinheiro pra me oferecer uma vida de rainha.
— Pode ser o homem mais rico do mundo que eu ainda iria querer distância.
Adentrei a sala de estar que parecia um cemitério com tantas fotos de parentes mortos pendurados pelas paredes, o que me fazia sentir observada o tempo inteiro por ter inventado na minha mente perturbada que os espíritos dos meus familiares estavam aprisionados dentro dos quadros e poderiam se rebelar a qualquer momento contra mim.
— Vou preparar a tinta — Ana avisou e eu assenti.
Coloquei ração no pote para a minha gata e em seguida, trilhei caminho pelo pequeno corredor entre a sala e a cozinha para encontrar a minha irmã.
[...]
— Meu Deus, tá incrível! — Ana afirmou quando secou o último fio do meu cabelo.
Me levantei da cadeira no meio do nosso quarto e dei passos lentos até o espelho embutido no guarda-roupa em verniz, o nervosismo tomando conta de cada célula do meu corpo, me fazendo suar um pouco mais que o normal e sentir a camiseta branca grudar na minha pele.
— Ficou legal mesmo? — perguntei enquanto encarava o meu reflexo no espelho do nosso quarto. — Acho que vão me zoar na escola.
— Não deixe ninguém pisar em você, Alana. — Ela me abraçou por trás e depositou um beijinho na minha bochecha. — Você é linda e pode esmagar qualquer uma daquelas vagabundas com cara de p**a do seu colégio.
— O que vocês fizeram? — Marlene, a nossa mãe, entrou no cômodo inesperadamente e olhou para o meu novo visual de boquiaberta. — Isso foi ideia sua, Ana?
— Não, foi ideia minha, mãe — respondi, fechando meus olhos, me preparando para a bronca.
— Se for brigar, briga comigo, porque hoje é o dia da nossa princesinha — Ana pediu, apertando as minhas bochechas como se eu fosse uma criança e eu rodei os olhos. — Ela é uma princesa malcriada, mas ainda é uma princesa.
— Não vou brigar com ninguém, mas, na próxima vez, gostaria de ser informada quando a minha filha resolver virar roqueira.
— A Alana não é do rock, mãe! Ela é emo.
— Nem existe mais emo hoje em dia, sua idosa da época do Orkut.
— Mas a bonita tem um preconceito com gente mais velha! — Minha irmã colocou as mãos na cintura e fingiu estar chateada. — Você acha que vai morrer sendo novinha?
— Deixem de brigar por besteira e venham comer o bolo que a gente trouxe pra comemorar o aniversário da Alana — minha mãe exigiu, quase perdendo a paciência com as duas filhas.
— Por que a pia tá toda suja de tinta, meninas?! — escutamos o André, meu pai, gritar.
— Ih, esqueci de limpar. — Ana fez uma careta e saiu correndo rumo à cozinha.
— De zero a dez, o quanto a senhora tá chateada comigo? — questionei para a minha mãe quando ficamos a sós.
— Zero, Alana. — A mulher se aproximou com um sorriso carinhoso e tocou no meu cabelo. — Só foram uma mechas, não tem nada demais, mas gosto de saber o que vocês vão aprontar com antecipação.
— Desculpa, mãe. Prometo não lhe esconder mais nada. — Ela me envolveu em seus braços e eu retribui o gesto de carinho no mesmo segundo.
[...]
Estávamos comendo o bolo do meu aniversário na mesa da cozinha quando o meu pai se dirigiu à sala e ligou a televisão e ouvimos uma notícia de que uma menina de dezessete anos havia sofrido um e*****o coletivo em uma favela comandada por um traficante conhecido como Cordilheira.
— Lá vem… — Ana resmungou e nós três respiramos profundamente.
— Tá ouvindo isso, filha? É pra essa cidade que você quer se mudar? — Nosso pai voltou para o cômodo que estávamos e encarou sério a minha irmã mais velha.
— Pai, por favor, já conversamos sobre esse assunto tantas vezes… — Ela tentou ignorá-lo e voltou a comer o pedaço do bolo no seu prato.
— Não sei porque você não faz faculdade por aqui, filha.
— Porque eu não quero ter que viajar por mais de duas horas para comprar a p***a de uma tinta e, definitivamente, não quero ser igual a vocês que tem acordar às três da manhã para irem trabalhar para colocar um pouco de comida nas bocas das filhas. — Observei minha irmã empurrar o prato para longe e levantar-se bruscamente, fazendo com que a cadeira caísse no chão.
— Então, você tem vergonha da gente? — O pai inquiriu puxando seu braço e a Ana o empurrou com força.
— Eu tenho muito orgulho dos pais que tenho! — Ela bateu forte no seu próprio peito. — Porém, nem de longe, isso quer dizer que eu deva seguir os mesmos caminhos que os dois.
A discussão foi ficando cada vez pior e a minha mãe teve que intervir enquanto eu fiquei comendo sozinha o bolo que ganhei no meu aniversário.