Eu sou uma Luna.
Enquanto prisioneira, ser uma Luna era uma maldição, razão pela qual fomos capturadas. Motivo, também, de sermos mercadoria de alto valor, preparadas para serem vendidas ou alugadas.
Por não saber antes o que significava ser uma Luna, me odiava por isso. Tudo o que eu queria era ser normal, parte das histórias contadas por Rebecca.
Apenas um dia nesse novo clã, e fui informada do que significa ser uma Luna, que, para minha surpresa, era considerado uma benção. Uma Luna é sempre companheira de um Alfa, a categoria mais poderosa entre os lobos. Nem todo Alfa é companheiro de uma Luna, no entanto.
Ser alma gêmea de uma Luna significa que o destino daquele Alfa é ser líder.
A frase que Tabita repetiu várias vezes para mim foi:
“ Nem todo alfa se torna um ALFA, precisa lutar para alcançar o título de líder, mas uma Luna, nasce Luna.”
Alfa Dérik nasceu alfa, sobrinho do Alfa do clã, sem direito ao trono enquanto o primo era herdeiro. Segundo o que Tabita me informou mais cedo, ele sempre foi muito mais forte, ágil, inteligente e rápido do que o primo. Quando amadureceu, seu lobo era muito mais imponente e logo desafiou o primo para um duelo pelo trono.
O clã ficou em choque, mas o lobo sabia o seu lugar e não abaixaria a cabeça para alguém que considerava inferior. Após vencer o desafio, deixou o primo derrotado com vida, porém, seu tio não aceitou o resultado e atacou Dérik com alguns de seus generais.
Era abuso de poder e contra a tradição, mais de dez soldados atacando o Alfa vencedor após o desafio.
Essa foi a primeira vez que a terceira forma se apresentou.
Não apenas matou o tio de Dérik, como os generais e soldados revoltosos, e não satisfeito, foi até o alfa derrotado e arrancou a sua cabeça e pendurou a cabeça de todos eles nos mastros das fronteiras do clã.
A fera, poderosa e aterradora, era temida e idolatrada por todos em simultâneo. Um monstro que fornecia segurança aos membros apenas por existir, já que era impiedosa e c***l com qualquer um que atentasse contra o seu clã. Um misto de lobo gigante e humano, que alcançava uma velocidade fenomenal em quatro patas, mas que tinha destreza e força sobre duas patas.
A lembrança da conversa com Tabita, que me revelou essas nuances do Alfa do clã, vieram na minha mente ao ver tal fera me entregar um urso pardo!
Um urso que era bem maior do que eu!
Morto, aos meus pés, o sangue ainda escorrendo para o chão.
Estava em choque, impressionada com a caça e surpresa por estar sendo presenteada com ela.
Eu deveria carregá-la para o harém como fez Sunna com o javali?
Pelos deuses, acho que até a cabeça do urso era maior do que eu!
Não consigo imaginar como estava a minha cara quando encarei a fera, que me encarava de volta, parecendo estar ansiosa, aguardando se eu aprovava ou não a oferenda.
— Dá para fazer mais de um agasalho com esse ursão, Luna! — Era a voz de Hadit, que não parava de sorrir com os olhos arregalados vidrados no animal morto. — Esquece agasalho, pode cobrir a sua cama com ele, ou fazer de sua pele um cobertor!
A fera empurrou um pouco o urso na minha direção, repetindo a oferta, visto que eu ainda estava paralisada feito uma i****a.
— Eh… é … para mim? — Perguntei sussurrando e apontando para mim mesma.
A fera soltou um grunhido baixo e fez que sim com a cabeça.
A cabeça enorme com dentes afiados saltando da bocarra.
— Hum… Muito obrigada, mas, não sei como-
Antes que eu terminasse de falar, com apenas uma de suas garras pretas afiadas, o Alfa cortou o couro do urso e puxou sua pele de uma vez, deixando apenas o corpo com a carne exposta. O cheiro de sangue subiu para as minhas narinas e me causou ânsia de vômito.
Sei que sou uma loba, mas minha natureza ainda estava dormente e sangue era algo que não me apetecia.
A fera entregou a pele do urso para uns homens que eram parte da criadagem e assistiam a tudo com sorrisos bobos no rosto.
— Obrigado pela honra, Alfa! Cuidaremos na pele do urso para Luna Nadja, faremos o melhor!
Estudaram o peito e sorriam atrás mim antes de saírem carregando junto a pesada pele do urso. Estavam orgulhosos pelo Alfa confiar tal tarefa a eles.
— Hum… Luna, você terá que cozinhar uma parte da carne para o Alfa agora.
Fiz que sim com a cabeça, porém, continuava imóvel, me esforçando para não vomitar.
A fera soltou um grunhido baixo e mostrou os dentes, não furiosa, não… era um sorriso, aquilo?
Com suas garras afiadas, abriu o peito do urso e retirou o coração, entregando-o para mim em seguida.
Oh, Deusa… em horas como essa que gostaria de desmaiar, mas permanecia desperta. Com as mãos trêmulas, aceitei o coração e corri dali para a cozinha do harém o mais rápido que pude. Enquanto corria, ouvi o uivo alto do Alfa, que mais uma vez foi seguido pelo uivo dos membros do clã.
*****
A cozinha do harém estava uma algazarra. Varias fêmeas agitadas, sorridente e falantes, ocupadas como preparo da carne trazida pelo macho caçador. Dentre elas, a criada idosa que tinha visto antes. Ela estava muito orgulhosa preparando um guizado com a carne de tamanduá que o filho trouxera. Foi ela que me socorreu quando cheguei correndo a ponto de desmaiar.
Afastou a panela do fogo e veio até mim, tirando o coração de urso das minhas mãos ensanguentadas. Sunna enxugou as mãos no avental e me levou até a pia, para lavar as minhas mãos. Escabreada, me perguntou qual macho tinha me oferecido a caça.
Após alguns momentos para recuperar o folego, respondi:
"Alfa Dérik trouxe um urso pardo enorme e me ofertou."
A cozinha, antes barulhenta, ficou em silêncio quando as fêmeas me olharam com expressão de espanto.
Após a surpresa, começaram os cochichos e gritinhos de excitação, dentre a cacofonia histérica que assaltava meus ouvidos, essas eram as partes que consegui captar.
“ O Alfa…”
“ Um urso pardo…”
“ Para a novata…”
“ O coração…”
“ Luna Hira…”
— Ele te deu o coração, hein… — Tabita se aproximou sacudindo as sobrancelhas de maneira sugestiva.
— A parte mais valorizada da carne, macia e nutritiva, o Alfa deve te valorizar muito, filha. — Comentou a idosa. — Olha, eu lavei e limpei o coração, mas você quem tem que preparar. Eu já terminei com o guizado do meu filho e vou levar para e ele e os amigos.
— Muito obrigada! — Agradeci ainda me sentindo meio zonza.
O aroma de vários pratos diferentes excitou meu trato digestivo, eliminando o efeito da lembrança do forte cheiro de sangue.
— Como eu preparo coração de urso?
— Os animais que a Luna Hira prepara para o Alfa geralmente são apenas selados, ela diz que ele gosta de quase crus…— A jovem chamada Vivi disse antes de sair da cozinha carregando uma travessa.
— Não ligue para o que ela disse, Luna, o preparo do cortejo tem que ser no seu gosto, não no do macho. Eu estou fazendo carne de lebre ensopada, do jeito que eu gosto, Eli também gosta, mas é o meu favorito.
— Eu nunca comi coração…
— Prepare do seu jeitinho, Luna Nadja. Faça como se estivesse fazendo para você. O cortejo funciona assim: O macho caça para te agradar e te presenteia com o melhor que ele consegue caçar ou, no meu caso, o que o Eli sabe que eu amo. Daí, você usa para fazer seu prato favorito, como estou fazendo, e compartilha o seu melhor com ele.
— O melhor do macho com o seu melhor, tão romântico. — Suspirou uma fêmea que picava alguns legumes.
Todas estavam sorridentes, menos Sunna. Foi quando me lembrei do que tinha presenciado.
— E você, Sunna, está bem? — Perguntei após colocar sobre o balcão uma tábua de carne e o coração. Decidi preparar o meu prato junto a ela.
— Sim, Luna... é só que…Eu não gosto do general Azis, ele… ele me assedia desde que eu era criança e a companheira dele ainda era viva!
— Mas… Eu pensava que lobos marcados eram fiéis…
— E são, não é estranho? Ele me oferecia doces e me pedia para sentar no colo dele. Quando fiquei um pouquinho maior, entendi que ele se esfregava em mim, eu era ainda um filhote!
— O Alfa sabe disso?
— Eu… eu nunca contei, tenho vergonha… quer dizer… Na época, eu aceitava os doces dele e fazia tudo o que ele me mandava…. eu até…Deixa para lá!
Havia lágrimas nos lhos dela, que abaixou a cabeça sentindo vergonha e culpa. Eu queria dizer-lhe que não sentisse culpa por algo que não tinha controle, que um filhote não tem como saber, mas ela se afastou enxugando as lágrimas e sentou em uma cadeira distante de mim.
Não éramos amigas e não queria invadir a privacidade dela. Espero que um dia ela confie em mim o suficiente para se abrir.
Pelo que entendi, Lunas tem como função proteger as fêmeas do clã, com uma forte conexão emocional com todas. Mas, se era assim, como Luna Hira não percebia a dor de Sunna, se eu, que acabei de chegar, pude notar?
— Sunna, não fique chateada por preparar a comida daquele brutamontes. O que acha de encher de pimenta? — Sugeriu Tabita sacudindo um vidro de pimenta na direção de Sunna.
— Eu terei que dividir o prato com ele e não aguento pimenta…
— Não seja boba, coloque em toda a carne e molho, deixe apenas uma pontinha de fora. Sirva essa pontinha para você e o resto para ele e os amigos escrotos dele!
Sunna mordeu o lado de dentro da bochecha, pensativa, até que um sorriso maquiavélico se formou devagar em seus lábios.