Episódio sem título

1787 Words
Muitas vezes eu ficava encarregada de ajudar Rebecca a cozinhar para os machos que nos mantinham em cativeiro. Ela era um pouco mais velha que eu, e sabia preparar com destreza muitos pratos. Lembro do aroma deliciosa das refeições que nós preparávamos, mas não tínhamos o direito de comer. Às vezes, em meio ao preparo, nós passávamos um pedaço de pão pelo molho da carne e comíamos escondidas. Era tão delicioso! Estava empolgada cozinhando para o meu paladar pela primeira vez na vida! Piquei a carne, temperei, refoguei com legumes e verduras. Meu estômago roncava em antecipação. Apesar da informação de que o Alfa costumava comer suas carnes quase cruas, Tabita e Sunna insistiram que só teria valor se eu fizesse no meu gosto, e assim foi feito. Estava um pouco ansiosa, temia que o sabor o desagradasse, ainda assim, essa era a minha parte da cerimônia de cortejo e não posso mudar quem eu sou. Fiquei parada um tempo olhando para o prato que preparei, mais insegura a cada segundo, até que, finalmente, respirei fundo e segui o meu caminho. Que a Deusa me proteja! A festa estava correndo com alegria, ao som de risos, gargalhadas, vozes altas e contentes. O aroma dos pratos recém-preparados se misturava aos servidos no banquete, A quantidade de comida era colossal e os copos nunca ficavam vazios. Ao me aproximar do banquete, evitei os olhares dos membros do clã, um pouco encabulada com a cena do cortejo. Alguns pareciam alegres por mim, mas não pude deixar de perceber que outros me olhavam com desdém e amargura. Eram poucos, mas o bastante para me trazer dúvidas ao meu coração. O avistei rapidamente, na forma humana, vestindo apenas um pedaço de couro de animal que escondia suas partes íntimas. Era essa, aliás, a vestimenta dos machos, com exceção dos criados e dos idosos. Tive que segurar o prato em minhas mãos com força, para não o derrubar, quando os meus olhos correram pelo corpo dele sem que eu pudesse, ou quisesse, impedir. Magnânimo nas duas formas, inconfundivelmente um Alfa. Seus longos cabelos negros presos por uma trança e sua pele coberta de tatuagens já não era mais escondida pelas pinturas. Como se sentisse a minha presença, se virou em minha direção. O rosto sério me encarou e seus olhos azuis passearam por meu corpo de baixo para cima, antes de vidrar nos meus. Meu coração batia tão rápido que alterou a minha respiração. Meus pés seguiram na direção dele por conta própria, como se não houvesse outra direção a seguir. Parei diante dele, e como Tabita me ensinou, me curvei e ofereci o prato, permanecendo de cabeça baixa até ele aceitar. Após alguns segundos aguardando, a ansiedade me dominou e levantei só um pouquinho a cabeça, para conseguir olhá-lo. Quando os meus olhos encontraram os dele, um sorriso cínico se formou em seus lábios, Ele tinha os braços cruzados sobre o peito e me mirava com um brilho divertido no olhar. Ele sabia que eu estava ansiosa e se deliciava com o meu tormento! Exasperante! Alfa arrogante! Debochado! Não tinha pena do meu desconforto? — Levante a cabeça, Luna, se continuar me olhando assim, pode acabar vesga. Arh! Que desaforado. O peito musculoso dele se moveu com a risadinha! Odeio Alfas! São todos arrogantes e insuportáveis, além de cruéis e perversos! Ele descruzou os braços, mas não pegou o prato das minhas mãos, preferindo segurar o meu queixo entre o polegar e o indicador. — Eu sinto que está zangada, Pequena Luna. Ergui o corpo e balancei a cabeça de um lado para o outro. — Não, senhor… — Mentir é uma coisa muito feia para um Luna tão jovem… Acho que não estava enganando ninguém. No entanto, o sorriso dele me fez relaxar. O melhor era dar logo a comida dele e acabar com o tormento. — Por favor, aceite a refeição, Alfa! Ele finalmente olhou para a comida que preparei, como se só então tivesse se dado conta que eu tinha algo nas mãos. Não era verdade, esse Alfa era muito cínico! Como vinda do nada, Luna Hira apareceu ao lado do Alfa e passou o braço pelo braço dele, mantendo as mãos na altura do bíceps. — O que temos aqui? O que a novata preparou, Dérik? Ele disse que não eram companheiros, Tabita confirmou, mas cá estava ela agindo como quem marca o território. Sem tirar os olhos de mim, ele passou a língua nos lábios e disse: — Ainda não provei, mas o perfume é delicioso. Ele afastou sutilmente as mãos da Luna e pegou o prato. — Me dá o seu consentimento para conferir o quão deliciosa está? Minhas bochechas ficaram vermelhas e abaixei a cabeça horrorizada. Algo me dizia que ele não estava falando da comida! Luna Hira deu um passo a frente e disse após suspirar. O tom era de falso pesar: — Oh, tsc tsc tsc… A novata não sabe o seu gosto e desperdiçou um coração fresco cozinhando como uma carne qualquer…. O Alfa ignorou as palavras dela, enfiou o dedo no molho e levou a boca. — Hum… O melhor que já provei. Acredito que a Pequena Luna tem muitos talentos a serem deflorados… Usando as mãos, mais uma vez, ele pegou um pedaço do coração, passou pelo molho e me ofereceu. Levantei a mão para pegar, mas ele fez que não com a cabeça e aproximou mais a carne da minha boca. — Derik! — Luna Hira exclamou, avexada. — Isso não é apropriado! A carne tocou meus lábios e abri instintivamente a boca, mordi a carne com cuidado para não tocar os dedos dele e enfurecer ainda mais a Luna. — Vá procurar algo para fazer, Hira, está atrapalhado o cortejo. Minha fera deseja alimentar a pequena Luna, acha mesmo que é uma boa ideia ficar interrompendo? Quando o Alfa encarou a Luna Hira, seus olhos estavam negros. Ela me olhou com repulsa antes de sorrir, sua postura segura e elegante retornando. — É claro, é apenas o cortejo. Tenham um bom apetite! Ela se virou e saiu sorridente, parecendo para quem observava, que estava feliz e satisfeita. — É a sua vez, Pequena, de me servir. Não pude deixar de arregalar os olhos, surpresa. Desajeitada, usei a mão para pegar uma porção do cozido. O Alfa, com seus olhos negros, me fitava, não desviando o olhar ao abrir a boca. Diferente de mim, ele fechou antes que eu retirasse os dedos, Não poderia explicar a sensação que percorreu o meu corpo quando senti a língua dele deslizar por meus dedos enquanto chupava o molho. Abri a boca, mas palavra alguma saiu, apenas o ar quente dos meus pulmões. — Eu sei que está pronta, Luna, sinto o cheiro da sua loba aprisionada dentro de você. A voz dele estava diferente, gutural, as palavras lentas, pela dificuldade da fera em formar as frases. Mesmo na forma humana a natureza dele conseguia se pronunciar. Incrível… Servi-o de mais uma porção, dessa vez ele segurou a minha mão, antecipando a minha intenção de afastá-la antes que me tocasse. Após culpar os meus dedos, ele virou a minha mão, a palma para cima, e beijou. O gesto era simples, mas nada inocente. Meu peito arfava pelas sensações estranhas que se apoderaram do meu corpo e turvavam meus pensamentos. — Me diga a verdade, Pequena Luna, qual a sua idade? — Eu não sei, Alfa. Ele aproximou o rosto e inalou profundamente. — Hm… Não está mentindo… Eu sei que seu corpo está pronto, quando a sua mente também estiver, vai ser minha! O barulho de vidro quebrando interrompeu a nossa conversa e minha mente desanuviou, Agradeci mentalmente pelo retorno do meu discernimento. — Essa v***a fez de propósito! — Berrou um macho antes de tomar o garrafão da mão de um dos que estavam ao lado dele e virar no gargalo. Alfa Derik chegou rapidamente na cena em questão e eu corri em seu encalço. — O que está havendo? — Questionou, impaciente. Notei que seus olhos regressaram a cor azul. — Essa v***a estragou o cozido com pimenta. Sunna estava encolhida, apenas um pedaço de carne restava em seu prato. Na bandeja, sobre um tronco de árvore, um pouco de carne com molho. — Não a chame minha fêmea de v***a, Oseias! General Azis empurrou o amigo antes de tomar o garrafão dele e engolir todo o conteúdo. — Ela fez de propósito! Sunna enfiou o último pedaço de carne do seu prato na boca ainda cheia, eliminando a única prova de que a parte dela estava livre de pimenta. — Qual o seu problema, Oseias, não aguenta uma pimentinha à toa? — A voz veio da multidão que se formava em torno da cena, vinda de um dos soldados. — Tem que puni-la, Alfa! Ela dessacralizar o cortejo! — O que você fez, Sunna? — Perguntou o Alfa. — Eu não fiz nada, Alfa, eu apenas preparei uma porção de javali como o general Azis ordenou! Eu gosto de pimenta, pensei que, sendo eles generais, também gostariam. — v***a desgraçada, eu vou- — Cala a boca, Osseias, ela é minha fêmea, eu irei puni-la! — Gritou o general Azis após empurrar o tal de Oseias no chão. Sunna estava encolhida no chão, olhos cheios de lágrimas no rosto pálido. Estava com tanto medo que eu não consegui ficar quieta. Não poderia permitir que aquele macho pervertido a punisse! — Eu vi quando ela preparou, Alfa, ela gosta muito de comida quente e disse que acreditava que o general Azis, sendo forte e corajoso como é, apreciaria o prato… O Alfa me encarou por alguns segundos, sua narina abriu e fechou, inalando o meu cheiro. Um brilho arteiro apareceu nos olhos dele e eu temi ter estragado tudo. — Sunna ainda nem está madura e tem mais colhão que você, Oseias? Não aguenta pimenta? Que merda de general perde para um filhote? O general Azis engoliu o último gole do vinho e jogou o garrafão em cima de Oseias, que ainda estava caído no chão, bêbado e furioso. — Sunna é uma fêmea forte e resistente, perfeita para mim! Bom saber que gosta de coisas fortes e ardentes, lobinha. — Ele passou a língua pelos lábios e se forçou a devorar o restante do cozido apimentado. — Veja, lobinha, estou pronto para devorar tudo que vem de você! Observei, aliviada, quando as duas foram embora. Estava distraída, perdida em pensamentos. Tive informações demais em tão pouco tempo. O hálito quente do Alfa em minha orelha me afastou das dúvidas. Seu sussurro continua uma leve contrariedade e velada promessa: —Se voce mentir para mim de novo, Pequena, terei que te punir...
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