“Droga. Não era pra ter molhado o cabelo!”
Juliana estava tão aérea com o beijo que Ciro lhe deu, que até esqueceu de que não devia ter lavado o cabelo pois a noite estava fria. Já eram quase seis e meia e sua mãe iria embora tão logo ela saísse do banho, pois tinha que abrir o mercado no domingo pela manhã bem cedo.
A água do chuveiro esquentou de repente, fazendo Juliana sair debaixo dele.
Ela se enrolou na toalha e foi até a porta abrindo uma fresta e chamando pela tia.
- Dinda! A água do chuveiro tá quente demais! Tô me queimando!
- Ah peraí Ju. A água da caixa deve estar acabando. Tem que ir lá no galpão ligar a bomba, vou pedir pro Ciro.
O galpão onde ficava o motor que puxava a água e a levava para a caixa ficava no galpão de alvenaria ao lado da casa de Ciro. Juliana fechou a porta do banheiro por causa do frio que vinha de fora e entrou novamente no box, onde haviam resquícios de vapor. Ainda não estava quente, mas o contraste já era nítido e seu corpo agradeceu.
Escutou um ronco de motor e sua tia abriu a porta avisando-a de que podia voltar ao banho. A temperatura da água voltou ao normal, porém a noite estava tão fria que mesmo com a janela do banheiro totalmente fechada e a água quente, Juliana não conseguia se esquentar por completo.
Enxaguou o cabelo e terminou o banho mais rápido do que gostaria para ir se despedir da mãe.
Enquanto se secava escutou um burburinho vindo da cozinha e identificou duas vozes, mas não discernia exatamente de quem eram. Suas primas continuavam com a TV ligada nas alturas, então deviam ser sua mãe e sua dinda. Mas por que falar tão baixo?
Se vestiu e saiu, ao que percebeu que a conversa entre as duas gelou e ambas lhe encararam com susto.
- Oi mãe. Já terminei. A senhora vai ir de ônibus?
- Não filha. O Ciro vai me levar.
Ao ouvir de novo o nome do rapaz o coração de Juliana voltou a disparar. Tinha vontade de pedir para ir junto com eles e depois voltar sozinha com ele de carro, mas não podia ser ousada à esse ponto.
- Ah mãe! Eu voei no banho por que achei que a senhora ia de ônibus!
- Mas como que eu vou de ônibus Juliana? Se o ônibus vai reto pra rodoviária e não passa lá em casa?
Juliana lembrou do detalhe e percebeu o quanto estava desligada pelo que acontecera. Se não tratasse de pôr os pés no chão,logo o pessoal iria desconfiar.
“Mas foi só um beijo. Não tem motivo pra eu ficar assim.” Pensava ela enquanto ia na direção da mãe para lhe abraçar.
- Bom filha, amanhã depois do almoço o dindo te leva.
Antes de concordar com a mãe, Juliana percebeu que sua madrinha teve uma leve hesitação ao ouvir “o dindo”, e logo se deu conta de que ele ainda não havia voltado para casa.
- Sim mãe.
Malú juntou suas coisas e as colocou na sacola, indo em direção ao carro. Quando Juliana ia sair e ir até o portão com a mãe, ela a impediu.
- Não, nem pensar! Tá de cabelo molhado, depois te dá gripe e fica de cama. Já se despediu pode ficando aí e fecha a porta Juliana, fica aí dentro que tá quente. Seca o cabelo!
- Ah tá mãe!
Juliana fechou a porta à tempo de ver Ciro chegando no carro. Quando ele a enxergou ela fechou a porta.
Não era possível que estivesse se apaixonando de novo, não tão rápido.
Foi até o quarto desembaraçar o cabelo e passar o secador. Sua mente se dividia entre o por que sua mãe e sua tia cochichavam na cozinha, a volta às aulas dali dois dias e Ciro. Afinal, ela gostava de Wilian ou só quis namorar com ele para não ficar solteira? Qual foi a última vez que ela gostou de alguém que não algum amor platônico por algum ator? Foi então que se lembrou que todos os meninos por quem se apaixonava não a correspondiam. Afinal, será que ela tinha algo errado ou era má sorte mesmo? Sempre que seu coração batia mais forte ou era por alguém que já tinha namorada, ou por algum famosinho que jamais estaria ao seu alcance.
Seu cabelo estava tão cheio de nós que puxar a escova fazia sua cabeça doer horrivelmente.
Percebeu que mudaram o canal da TV para a novela das sete e continuou penteando o cabelo, agora mais rápido para poder ir se sentar e assistir a novela.
Ao chegar na sala percebeu sua tia tensa, provavelmente por seu tio ainda não ter voltado para casa, enquanto suas primas assistiam a novela com elevado entusiasmo.
- Será que a mulher engravidou mesmo? Será que ela conseguiu? – Perguntou Vitória.
- Não sei. Também pra que já tem a guria grande, agora querer mais filho. – Respondeu a irmã. – Né mãe?
- É, pois é. - Falou Malú olhando para a TV.
- Mãe a senhora pediu pro Ciro andar com o carro e procurar o pai? - Perguntou Marcela.
Marcelina que até então estava com o olhar perdido e roendo as unhas, de repente voltou a si.
- Ai meu Deus, cadê meu celular?!
E saiu correndo em direção ao quarto.
Juliana e as primas se encararam, de repente o ônibus passou.
Vitória foi até a porta na esperança de que o pai tivesse descido na parada próxima. Ela foi até o portão e Marcela ligou o refletor do pátio,mas nem sinal do pai. As meninas começaram a ficar preocupadas.
Juliana ficou na sala e escutou a madrinha falando ao telefone com alguém que ela deduziu ser Ciro, e pedindo que andasse pela cidade e mantivesse o celular por perto.
Quando as primas voltaram pra dentro de casa e a madrinha voltou pra sala, Juliana quis quebrar o clima.
- Vamos ver um filme depois?
- Qual que vai passar?
- Pior que não lembro agora. Mas não vamo dormir cedo, vamos assistir.
- É, vamos.
A madrinha se esforçava para parecer normal e não transparecer o nervosismo. Viram a novela até o fim, e quando começou o jornal a dinda foi até a cozinha fazer a janta. As meninas tornaram a mudar de canal e aumentar o volume, se distraindo novamente com assuntos de outra novela.
Juliana foi atrás da madrinha na cozinha e ofereceu ajuda.
- Dinda vamos fazer um arroz de forno?
- Podemos! Boa ideia Ju!
Marcelina riu, nostálgica.
- Que foi dinda?
- Olha só Ju. Você ficou um ano sem visitar a gente, e agora você está aqui comigo,e as suas primas tão lá na sala, nem dando bola pra situação.
- Ah dinda, elas também tão nervosas. Mas a gente quer te ajudar. Daqui um pouco o Ciro volta com ele. Como a senhora faz o arroz de forno?
- Pega uma panela na geladeira e vê se já tem arroz pronto. Se tiver a gente usa esse pronto pra primeira camada e cozinha mais.
A madrinha foi preparar o guisado enquanto Juliana desmanchava o arroz.
- Pega uma travessa no armário e coloca o arroz Ju. Não pode ficar embolotado, desmancha bem. Faz uma camada e põe presunto e queijo.
- E depois?
- Depois a gente bota o guisado. Mas ainda demora um pouquinho por que tem que cozinhar.
- Dinda, eu sei que o dindo não apareceu ainda, mas vamos ficar calmas. A cidade deve ter uns 20 mil habitantes e logo a gente saberia se algo aconteceu.
Marcelina suspirou e olhou para baixo.
- Ju, casar é uma eterna preocupação. Com o parceiro se ainda não chegou, com os filhos que crescem e começam a te responder. Com uma possível separação que você não quer.
- Mas o dindo não quer se separar da senhora. A mãe diz que quando o homem quer, ele pega e separa. Com o pai foi assim.
- É, quem sabe.
- Dinda, é verdade que antigamente lá no interior as meninas casavam com 13 anos? E que os pais que escolhiam o marido?
- No tempo dos teus avós sim. Casavam com 13,15 anos. Mas não era toda família que os pais escolhiam. O homem ia na casa da mulher e pedia. Geralmente a mulher aceitava o primeiro por que se ficasse rejeitando muitos as pessoas começavam à falar. Também os pais tinham que aprovar. A tua vó casou com 13 anos, e foi mãe do teu pai com 15. Mas a tua mãe casou com 18.
- Nossa tia, a mãe casou com 18 anos e a senhora tá falando como se ela tivesse casado muito velha. – Disse Juliana rindo.
A madrinha temperava o guisado e o remexia na panela enquanto conversavam.
- Mas era Ju. 18 anos já era velha. A gente crescia se preparando para casar cedo. Com 6,7 anos a gente já tava cozinhando. Aprendia a lavar roupa, passar, cuidar dos irmãos se tivesse. Isso já fazia a gente chegar no casamento preparada.
- Pois é. Mas a mãe disse que vocês eram tão crianças com 13 anos. Como que num dia era criança no outro já era mulher?
- É que era assim: a gente crescia aprendendo que ia casar e aprendendo o que tinha que saber pra levar o casamento. Só que enquanto ele não chegava a gente ia vivendo a nossa vida. Brincava, sonhava. Até o dia de casar.
- E as mães falavam de sexo com vocês?
A madrinha deu uma sonora gargalhada que fez as meninas na sala olharem.
- Claro que não Ju. Comprimido já existia mas ih! Nem se comentava nada. A gente só sabia que não era pra beijar ou andar se agarrando com ninguém. Não era pra ficar sozinha com ninguém, deixar passar a mão. Se deixasse, já sabia as consequências.
- E é verdade que daí não casava mais?
- Se o pai descobrisse quem pegou a menina eles faziam casar. Casavam na delegacia se preciso fosse.
As duas riram. A madrinha tirou o guisado da panela e colocou no prato.
- Daí se a menina engravidasse e o pai sumisse ou fosse casado, daí era só lomba abaixo. Meninas iam embora de casa grávidas e ninguém mais ouvia falar.
- Que horror.
- Não é diferente daqui Ju. Aqui vocês dão e depois todo mundo fica sabendo. Não pense que as pessoas não falam por que falam. Até as amigas de vocês que ajudam vocês depois saem espalhando.
- É. Complicado dinda. Só que a gente fica naquela: se não dá, riem por que tu é virgem. Daí depois que já deu, tu arruma um namorado não sabe como que faz. Não sabe se já dá no primeiro dia, se é só isso que eles querem. Não sabe se eles vão te achar fácil, não sabe se algum dia alguém vai querer casar contigo. Por que vocês eram virgens, tinha um “atrativo”. A gente não tem mais isso, daí não sabe se vão gostar da gente, ou se só vão julgar pelo que ouvem.
Elas ouviram um barulho de carro e foram abrir a porta.
Ciro mesmo abriu o portão e entrou com o carro. Mas chegou sozinho.
- Nada dele?
- Não. Rodei por tudo e nada dele.
Ele estacionou o carro e Marcelina fez sinal para que ele entrasse.
- Você ligou pra ele?
- Liguei. Dá fora de área ou chama e ninguém atende.
- Onde o pai pode ter ido? Será que na firma não tem ninguém que saiba onde ele foi?
- Não Vi. Agora só segunda.
- Mas mãe,na agenda tinha telefone dos amigos dele do serviço. Liga pra eles.
Um olhar de esperança percorreu os olhos da madrinha.
- Vou pegar a agenda. Ju tu tem crédito?
- Tenho dinda.
Abriram a agenda e a madrinha pegou o celular de Juliana. Cada número que achavam do serviço iam ligando.
Ciro encara Juliana rapidamente e voltava a desviar o olhar.
Ligaram para uns quinze números e nada. Ninguém sabia.
Após todas as tentativas só restou à Marcelina suspirar profundamente.
- Nada. Ninguém sabe. Ninguém viu. Fiz arroz de forno. Querem comer?
- Vou pegar um pouco e levar pra casa dona Celina. Qualquer coisa que precisarem é só gritar. – Disse Ciro.
Ele saiu e a madrinha avisou que iria se deitar. As meninas estavam sem sono e resolveram ficar na sala aguardando caso Guido ainda chegasse naquele dia.