capitulo |V

2366 Words
Elsa! Como você entrou? Aquele homem deve ter deixado a porta aberta... Não se preocupe, não vou mandá-la embora. Estou precisando de uma companhia que não exija nada de mim. Camilla subiu para o banheiro, vestiu-se e voltou para baixo. Colocou música suave no toca-fitas e sentou-se, deixando que os acordes invadissem seu mundo, enquanto as mãos acariciavam as orelhas douradas de Elsa. Uma cena pacífica, calma. Exatamente o contrário do que ela sentia: estava envolta num turbilhão de emoções, provocadas por perturbadores olhos azuis... Às onze horas o táxi chegou. E, enquanto ela se dirigia para o hotel, começou a se sentir mais em casa, nessa nova e exótica terra. CAPÍTULO IV No seu quinto dia em Cabul, Camilla decidiu aventurar-se pelos bazares. Pôs um vestido de linho rosa-pálido, calçou sandálias de salto baixo e, pegando a bolsa, saiu. Começou a descer a rua. Não prestava atenção por onde andava: os olhos famintos de novidade percorriam cada nova experiência. À direita e à esquerda, podia ver os ônibus que passavam, os táxis pretos e brancos, os cavalos e jumentos puxando carroças. Em largos gramados, no centro dos círculos de tráfego, membros de tribos de fora da cidade sentavam-se em grupos, conversando e fumando. Toda a sua atenção concentrava-se nessas estranhas e novas visões, e ela não percebeu que muitos olhos escuros a observavam. Dirigiu-se ao centro do bazar, encantada com as cores das mercadorias. Aí lembrou-se de Jeff. Pobre Jeff, com seu estreito círculo de museus, restaurantes e teatros! Ele nunca saberia quanto uma simples viagem poderia abrir a mente a novas experiências. Absorta em pensamentos, ela examinava, distraída, o bazar. Então, um movimento familiar chamou-lhe a atenção. Não ficou surpresa. Já sabia que ia encontrá-lo nos lugares mais inesperados. Portanto, essa não podia ser uma boa explicação para as batidas rápidas de seu coração. Como sempre, seu primeiro impulso foi o de se aproximar dele, mas controlou-se e não saiu do lugar. Afinal, era um homem rude e arrogante, que não merecia sua atenção. Então uma idéia a assaltou. Será que ele a estava espiando? Uma pessoa sem princípios, à procura de grandes emoções...” Lembrou-se das palavras dele com indignação. Será que aquele estranho perturbador decidira segui-la, para provar alguma coisa a Johnny? De repente, houve um tumulto na multidão. Uma figura alta, vestida num manto branco, irrompeu em sua direção, gritando e gesticulando. Camilla sentiu uma gota úmida nas faces, e depois a dor de uma pancada violenta. Sua cabeça girou, a escuridão a envolveu, e ouviu gritos furiosos numa língua incompreensível: Khaarh! Sag! E aí, então, que alívio! Vão embora! Parem, seus imbecis, parem! Sentiu a massa humana em volta dela. Mãos fortes apertaram seus braços. Uma voz firme, com sotaque estrangeiro, gritou: Rápido! Venha comigo! Camilla se deixou levar para um carro marrom, parado na estrada, que rapidamente se afastou do bazar. Começou a tremer descontroladamente e explodiu em soluços, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Tome meu lenço, mademoiselle. Logo estará bem. Ela fitou seu benfeitor e seus olhos encontraram-se com pequenos olhos castanhos, que brilhavam num suave rosto bronzeado, emoldurado por cabelos escuros. O nariz era bem-feito e o lábio superior coberto por um bigode aparado. A figura dele era magra, imaculadamente vestida num terno de três peças, com um chapéu Panamá branco sobre a cabeça. O sorriso mostrava dentes bem cuidados. Ele estendeu uma das mãos. Patrice Desmarets. E o seu nome, bela mademoiselle, qual é? Oh! Não faça brincadeiras! Foi h******l! Você foi atacada por um mulá. Mas... por quê? Ele me bateu! E olhou para as contusões que estavam começando a aparecer nos braços espancados. Acho que ele queria me m***r. Por quê? Por que alguém gostaria de atingir uma flor tão bela? Talvez, quem sabe, esse mulá não tenha nenhum senso estético. Talvez seu vestido lhe tenha desagradado. Mas por quê? Minha roupa não é indecente! Aliás, mademoiselle, é très chic e lhe cai muito bem, mas não é exatamente aquilo a que eles estão acostumados. Eu me refiro às mangas. Mangas?! Meu vestido não tem mangas! Esse é o ponto, mademoiselle. Ver braços tão bonitos pode ter levado algum dos severos muçulmanos a uma ira incontrolável. Você já deve ter notado que a maioria das mulheres daqui permanece coberta por véus da cabeça aos pés. Chadaris. Mas eu pensei que o tipo de coisa pelo qual acabo de passar só acontecesse em Kandahar! Pode ter sido um mulá kandahari que a tenha atacado. De qualquer forma, agressões também acontecem em Cabul, embora raramente. Quero comunicar isso às autoridades imediatamente. Acho melhor deixar como está. Não creio que você queira ficar famosa como criadora de casos. Mas... eu não... Se vai dizer que não foi você quem começou a confusão, está absolutamente certa. Mas a culpa será sua, por estar usando um vestido tão provocador. Eu já vi roupas mais provocantes na rua Oxford! Em Londres. Mas, aqui, tudo é diferente. Ninguém vai achar que a culpa é daquele homem. Portanto, é melhor não se envolver com as autoridades afegãs. Camilla concordou. Se os costumes daquele país eram tão diferentes dos seus, não adiantava lutar contra eles. Era melhor respeitá-los. Olhou para o homem que a salvara do mulá enfurecido. Eu... eu receio não ter gravado seu nome. Nem eu o seu. Vamos recomeçar as apresentações? Ele estendeu a mão a ela. Patrice Desmarets. Camilla Simpson. Um nome tão encantadoramente inglês! Como é agradável encontrar alguém como você aqui, nesse lugar abandonado por Deus! Mas, se é isso que pensa deste país, por que está aqui? Negócios exigem minha presença. E a senhorita, há quanto tempo está aqui? Cheguei há quatro dias. Quatro dias! Pois vivo em Cabul há quatro anos! Diga-me, o que foi que a trouxe a este lugar? Bem, não sei ao certo... Necessidade de mudar, talvez mentiu ela. O que o senhor faz, monsieur Desmarets? Eu? Sou jornalista autônomo, sempre esperando que alguma coisa importante aconteça. Engraçado, pensei que não acontecesse muita coisa por aqui... Mesmo assim ela observou o carro, o terno, o motorista , o senhor parece ganhar o suficiente para ter uma boa vida, não? Bem, o suficiente, apenas o suficiente. Ou, como eles dizem aqui, khaafi. Camilla notou que ele estava tentando mudar de assunto e apressou-se em explicar: Espero que você não pense que tenho o costume de andar em carros estranhos, dirigidos por homens estranhos. Nem eu de levar mulheres desconhecidas, embora bonitas. De qualquer forma, desde que nós, através de uma série de circunstâncias extraordinárias, tomamos conhecimento um do outro, espero que me dê a honra de um drinque. Eu... eu não tenho o hábito de beber assim tão cedo, monsieur Desmarets. Então, ouviu, à distância, o sonoro barulho de uma artilharia. O que foi isso? Nada com que se alarmar. É o canhão do Forte de Bala Hissar. Ele é disparado sempre ao meio-dia. E, já que é meio-dia, que tal almoçarmos juntos? Ela estava com fome e seu charme era irresistível. Aceito, muito obrigada. Logo depois, o carro estacionou em frente a um grande e moderno edifício, todo de vidro brilhante, cromo e concreto. Esse é o Hotel Bagh-i-Bala explicou Desmarets, ajudando-a a descer. Foram recebidos por um porteiro uniformizado. Boa-tarde, monsieur Desmarets. No bar, havia pequenas rodas de homens bem vestidos e mulheres elegantes, conversando a meia voz. Todos saudaram Patrice com silenciosos acenos de mão ou de cabeça. Logo acharam uma mesa, e o garçom lhes entregou o cardápio, dizendo: Boa-tarde, monsieur Desmarets. Parece que todos o conhecem por aqui comentou Camilla. É que a comunidade estrangeira é muito pequena. Talvez umas mil pessoas, incluindo crianças. Quanto a Hussein, ele tem sido meu garçom desde que cheguei, há quatro anos. Bem, o que você gostaria de pedir? Posso sugerir vitela? Se você sabe que é bom, eu concordo. Afinal, conhece melhor o lugar, não é? Ah, o prazer de gozar a verdadeira sofisticação, a verdadeira cultura! Como Jeff poderia competir nesse mundo?, pensou ela. Conversaram sobre tudo durante a refeição. Patrice comentou com Camilla o que deveria ser visto em Cabul. Mencionou o túmulo e os jardins de Babur, do outro lado da cidade, fora da estrada para Kandahar. Gosto muito de jardins, principalmente porque são algo vivo, e não objetos presos a caixas de vidro, como os que há nos museus. Se você gosta de jardins, então me ofereço para levá-la aos melhores jardins da cidade. Camilla estava se divertindo muito. Aliás, nunca havia se sentido tão bem, desde que chegara a Cabul. Mas, de repente, depois do excelente café turco, Patrice ficou sério. Eh, bien, mademoiselle, nós conversamos sobre muitas coisas, mas ainda não me contou o que a trouxe a este país. Realmente, eu... Sabe, você me lembra muito uma pessoa que conheci aqui. Não há muito tempo, na verdade. Um trágico fim. E observou-a intensamente. O rosto dela tornou-se pálido. Meghan Cowley! gritou, incapaz de disfarçar a emoção. Você a conheceu? Bem, na realidade, conheci Thomas Cowley, mas achei a esposa dele muito simpática. Você a conhecia? Ela... ela é minha irmã. Eu não sabia que Meghan tinha uma irmã! Camilla exultou. Aquele homem conhecia sua irmã! Ela não via nenhum motivo, agora, para evitar contar a Patrice a verdade sobre sua estada no Afeganistão. Vim para achar minha irmã. Tenho que encontrá-la! Pensei que ela estivesse morta. Ouvimos dizer que ambos tinham sido assassinados. Foi algo muito trágico. Talvez você não saiba de todas as circunstâncias, não? Sim, sei sim. Recebi um relatório completo da embaixada. E certamente não acredita que sua irmã ainda esteja viva, acredita? Eu sei que ela está viva. Sabe? Como é que sabe? Que provas tem? Nenhuma. Apenas algo me diz que ela não está morta. Ninguém encontrou o corpo de Meghan, e, até que o encontrem, vou acreditar que ela está viva. Meghan é tudo que eu tenho, desde que meu pai e a minha mãe morreram num acidente de carro... Oh, eu não posso perdê-la também! Não se preocupe, chère mademoiselle. Acho que tem razão. Farei o que puder para ajudá-la. Agora conte-me tudo, desde o início. O que pretender fazer? A tarde ia avançada quando Camilla voltou para o hotel, cansada, com calor, os braços machucados e doendo. Mas estava com uma enorme sensação de alívio. Era como se Patrice tivesse retirado uma carga de seus ombros, ouvindo-a, compreendendo-a e comentando tudo com muita gentileza. Com inteligência e charme, ele a fizera sentir-se atraente e feminina. Até conhecia os Hagan, o que não a surpreendia, pois ele parecia conhecer muita gente. Camilla tocou a campainha da mesa de recepção, ansiosa por apenas duas coisas: um banho e uma cama. Naquele instante, sentiu uma presença familiar a seu lado. Srta. Simpson! A voz a fez corar e estremecer dos pés à cabeça. Ela nem se voltou para olhá-lo, pois queria disfarçar a confusão que sentia. A senhorita tem progredido muito, não? Dois homens em três dias! Pode ser atraente, mas tamanho sucesso é realmente fenomenal! A que você o atribui? Isso era demais! Camilla voltou-se, as faces ardendo de raiva. Para sua informação, o homem que me trouxe aqui estava simplesmente se portando como um cavalheiro. Ele me salvou de uma situação perigosa, e gentilmente levou-me para almoçar. Ele sorriu, irônico. A senhorita não tem que me dar explicações. Sou apenas um humilde observador. Mas deixe-me dizer que há poucas coisas mais perigosas que passear pela cidade com aquele francês, Patrice Desmarets. Aquele francês, Patrice Desmarets, como o senhor o chama, teve a presença de espírito de salvar-me do ataque de um mulá, que poderia muito bem ter me matado. E você bem que teria merecido, por usar um vestido como esse no bazar. E além disso machucou seu braço disse ele, tocando em suas lesões. Camilla afastou-se e evitou o olhar dele. Não me toque! Deixe-me em paz! Vá espionar outra pessoa! Mesmo porque você foi mais do que um humilde observador na noite passada! Fez várias acusações, além de dar conselhos que não pedi. E o que está fazendo aqui, agora? Você me seguiu o dia inteiro! Guarde suas observações e vá embora! Ela notou que o recepcionista estava esperando e então disse, em voz bem alta: A chave do meu quarto, por favor! Eu lhe asseguro que sua mania de grandeza é infundada. Falou tão perto da nuca, os lábios tão próximos, que ela pôde sentir-lhe a respiração. Este nosso encontro é tão indesejável para você como para mim. Eu não a vi no bazar esta manhã. Nem fui até lá para segui-la. Mas, pelo visto, você me viu. A respiração dele, assim tão próxima, era perturbadora, principalmente porque era agradável, e ela se afastou um pouco. Como se eu me importasse com isso! Nem sequer sei quem você é, nem estou interessada. Quem quer que seja, eu já vi o suficiente e não quero ver mais. Passe bem. Eu também já vi bastante de você, mas não tudo. O olhar dele era como uma carícia íntima. Quem sabe se eu... As palavras dele foram cortadas por uma bofetada que ecoou pelo saguão do hotel. Como você se atreve? Ele apanhou o pulso de Camilla ainda no ar e o torceu até que ela mordesse o lábio, de dor. Você vai se arrepender por ter feito isso! Não vou, não! Você mereceu. Sorriu estranhamente, um falso sorriso que assustou Camilla, e soltou-a. Talvez você tenha razão. Levou a mão até o rosto dela e a acariciou. Por um momento Camilla se deixou levar pelo enlevo, numa atitude inconsciente e natural. Mas ele acrescentou, com suavidade: Mantenha-se longe do francês. Será melhor para você... Pode acreditar em mim. Ela se recobrou. Deixe-me em paz. O que tem a ver com quem é ou quem não é meu amigo? Quem é você para me dar ordens ou fazer acusações? Seja quem for, estou surpresa por ninguém ter me prevenido contra você até agora. Ele sorriu. Mas irão fazer isso, não se preocupe. A propósito, meu nome é Armstrong, Malcolm Armstrong. E saiu. Eu deveria ter desconfiado, pensou ela, andando num passo lento e compassado da recepção até a escada. A partir daí, correu em direção ao quarto.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD