CAPÍTULO V

4690 Words
Camilla acordou com a campainha do telefone tocando. Atendeu, ainda morrendo de sono. Sim? Chamada da Sra. Hagan para a Srta. Simpson. A senhorita vai atender? Sim, por favor. Alô, Janet? Você parece estar a quilômetros de distância! E você parece sonolenta. Eu a acordei? Sinto muito! Não tem importância. Já estava mais que na hora. Como está o Sr. Brody? Não muito bem. Vão levá-lo de volta aos Estados Unidos. Mas o motivo do meu telefonema, querida, foi para pedir desculpas por aquela noite. Imagine! Não há a mínima necessidade de pedir desculpas. De qualquer forma, queríamos convidá-la para jantar conosco, esta noite. Achamos que você talvez gostasse do Afghan Room. Sabe onde fica? Sei: no último andar do hotel. Mas eu nunca estive lá. Você vai adorar. Vejo-a às nove, então. Baamane khoda. Espere, Janet! disse Camilla, mas a americana já havia desligado. Ela queria mais informações sobre o estranho que a tinha perturbado tanto, mas podia esperar até a noite. E Janet tinha dito baamane khoda, as mesmas palavras de Malcolm Armstrong. Camilla levantou-se e vestiu-se depressa, tendo o cuidado de colocar uma túnica de mangas compridas. Resolveu sair para comprar um dicionário inglês-persa, alguns cadernos e uma caneta. Quero ir a uma livraria disse ao recepcionista do hotel. Uma que tenha livros em inglês. Aonde devo ir? Há uma loja indiana, muito boa, em Shar-i-nau. Camilla hesitou. Fora exatamente em Shar-i-nau que ela havia sido brutalmente atacada pelo mulá. Eu prefiro não ir lá. Não... não há outro lugar? A senhorita pode tentar outros lugares, mas o melhor é esse mesmo. Obrigada. Baamane khoda. Ba... baamane khoda. Camilla sorriu e saiu para o dia fresco e agradável. Decidiu andar, já que precisava de exercício, e, além disso, queria conhecer melhor a cidade e suas ruas. De repente, um carro parou a seu lado. E então, mademoiselle, encontramo-nos novamente! Fico contente ao ver que seguiu meu conselho e mudou suas roupas. Bom-dia, monsieur Desmarets. Ouvi dizer que é uma boa idéia usar branco em climas quentes. É verdade, mademoiselle, especialmente quando se tem cabelos tão bonitos como os seus. Conheço artista que daria muito dinheiro para poder pintá-la. Bem, vejo que está indo a algum lugar, e quero oferecer-lhe uma carona. Eu não gostaria de tirá-lo do seu caminho... Qualquer caminho é meu caminho. Estou passeando sem destino. Seria um alívio para o meu tédio, se me fosse permitido acompanhá-la. Camilla novamente o achou irresistível e, com um sorriso, entrou no carro. Com uma condição, monsieur Desmarets: que dirija devagar. Estou tentando aprender os caminhos dessa cidade. Aceito. Para onde devemos ir? Estou procurando uma livraria, pra comprar um dicionário inglês-persa. Sinto necessidade de aprender o idioma desse povo, mesmo porque pretendo ser bem-sucedida na minha busca. O persa é uma língua muito difícil. Eu me ofereço como intérprete. Assim você poupa o trabalho de aprendê-lo. Muito obrigada, mas tenho que recusar. É uma questão de amor-próprio. Ele concordou e levou-a até a livraria indiana, a mesma que o recepcionista tinha recomendado. Você acha que essa é a melhor? Eu não iria a nenhuma outra, mademoiselle. Entraram na loja grande e fresca e foram recebidos por um indiano com uma longa barba e um bracelete de aço no braço. Mademoiselle gostaria de ver um dicionário para aprender o persa. Certamente, monsieur Desmarets. Eles ficaram meia hora dentro da loja, examinando e rejeitando vários livros. Depois de comprarem um bom dicionário, ele a levou para conhecer as lojas de tapetes. Camilla ficou fascinada com a riqueza das cores, a variedade dos desenhos e a maciez dos tecidos. Preciso comprar pelo menos um! A manhã terminou logo, e a salva do canhão do meio-dia tocou. Almoço, mademoiselle? Acho que deveria voltar para o hotel... Nem pensar! O segundo almoço é sempre mais importante. Hoje eu a levarei a um lugar pequeno, meu favorito, cheio de... como é que se fala? Cheio de cor local. E pararam numa espécie de café chamado Lanterna Verde, com uma sacada cheia de mesas, da qual se via a rua. Podemos sentar na sacada? Seu desejo é uma ordem, senhorita. Eu realmente gostei muito. Pode-se ver tudo e todos. Telefonei para seu hotel à noite, mas ninguém atendeu. Fiquei desolado. Oh, sinto muito! Eu estava muito cansada e pedi para que não me chamassem. Pensei que estivesse na casa dos Hagan. Ela hesitou e decidiu que não haveria m*l algum em contar-lhe que já estivera lá. Eu fui jantar com eles, outro dia. E teve uma noite agradável? Infelizmente eles tiveram que sair para atender a uma emergência. Eu entendo bem esse tipo de situação, meu pai era médico. Sei como é. E calou-se. Não, não ia falar nada sobre Malcolm Armstrong. Você gostou dos Hagan, não? Sim, gosto deles. Mas talvez não concorde... Eles nunca foram muito amigáveis comigo. Mas não os culpo. Talvez eu tenha feito alguma coisa que os ofendeu, embora não saiba o que possa ter sido. Bem, eles foram bons para mim. Mademoiselle, não... Não é nada. O que foi monsieur Desmarets? Nada. Não importa. Sim, importa sim. Noto que o senhor está aborrecido com alguma coisa. Não quero aborrecê-la. Mas agora me deixou curiosa. Por favor... Bom, é que... Sinto muito, mon Dieu, mas é assim que é. Tenho pensado muito em você, desde que a conheci, e, por mais estranho que possa parecer, e apesar do pouco tempo que nos conhecemos, eu me afeiçoei à senhorita. Estou preocupado. Preocupado e assustado. Pensei em tudo que pode lhe acontecer nessa missão insensata que quer levar a cabo. Os homens, neste país, são rudes e violentos, e qualquer mulher viajando sozinha está em perigo. Assassinato, roubo, a morte nas montanhas, nas estepes, no deserto... Sofrer o ataque de lobos, escorpiões ou cobras, levar um tiro ou uma facada; ser seqüestrada por traficantes de escravas brancas ou por nômades; todas essas coisas, ou talvez até ser atirada numa cadeia imunda, por tentar levar adiante uma investigação que as autoridades, por razões particulares, declararam encerradas. Que razões particulares são essas? Bem, não sei. É que... eu me preocupo com a senhorita. Sinto que todas essas coisas podem acontecer, e por quê? Por um corpo que provavelmente está enterrado em algum lugar nas montanhas? Você disse que achava que ela estava viva! Você disse! Mademoiselle, minha preocupação com a senhorita é maior do que qualquer outra coisa. Tenho que ser franco: não acredito que sua irmã esteja viva. Andei falando com alguns conhecidos e ninguém acredita nisso, também. Inclusive ninguém sabe como o marido dela morreu. O relatório disse que a morte foi provocada por um golpe na cabeça, enquanto ele estava consertando o carro. O relatório! Eu acho mais provável que ele tenha sido assassinado! Não há sinal algum de sua irmã, e certamente, se ela estivesse viva, deixaria alguma pista. Quero que a senhorita entenda o que estou dizendo: não vejo nenhuma esperança e nenhum sucesso em sua busca. Sua decisão foi insensata, própria de uma pessoa que se deixou cegar pelo amor e pelo sofrimento. E estou lhe dizendo isso porque quero ajudá-la. Acho que deve voltar para casa, Camilla. Ela ficou desanimada. Então a única pessoa que havia conhecido Meghan a aconselhava a esquecer o caso! Que fazer agora? Desorientada, Camilla sentiu um m*l-estar e foi até o toalete, jogou água fria no rosto. Estava deprimida e assustada. Patrice Desmarets, que era tão confiante, agora a desencorajava. Desejou ver Janet e Johnny. Talvez todos acreditassem que a situação não tinha mesmo saída e achassem que ela acabaria vendo isso por si própria e desistindo. Talvez... Quando voltou para a mesa, Patrice levantou-se e observou seu rosto, preocupado. A senhorita parece estar melhor, mas creio que é melhor irmos embora. Quando chegaram ao carro, ele procurou por algo nos bolsos. Você me daria licença por um minuto? Creio ter deixado as chaves no café. Enquanto aguardava, Camilla sentiu que alguém a tocava. Virou-se e viu um moleque maltrapilho, que colocou um pedaço de papel em suas mãos e fugiu. Ela tentou segui-lo, mas não houve tempo. Estava desdobrando o papel quando Patrice chegou. O que é isso? Eu ... eu não sei! Um moleque me deu... mas ele fugiu. Ela começou a ler a mensagem. Oh! Patrice pegou o papel das mãos dela e leu: Você quer descobrir o que aconteceu à sua irmã, não é? Mas, se não quiser que lhe aconteça o mesmo, vá embora. Agora. Deixe o país. Vou levá-la para o hotel. A ameaça é séria. Alguém deve estar seguindo você, mademoiselle. Senão, como a encontrariam aqui? Bem, só posso dizer que espero que siga o conselho. Foram para o hotel em silêncio. Assim que Patrice a deixou, ela foi direto para a cama, pois as pernas trêmulas m*l a sustentavam. Os Hagan chegaram às nove. Camilla os estava esperando no saguão, com o mesmo vestido azul e branco que tinha usado há duas noites. Seu rosto ainda estava pálido. Janet parecia cansada, e vestia uma encantadora bata estampada, Johnny usava calça jeans e uma jaqueta leve. Você parece ótima disse Johnny, beijando-a no rosto. Você também. O que tem nas mãos, Camilla? perguntou Janet. Eu lhes direi tudo assim que tomarmos nosso drinque. Mas que lugar é esse aonde vamos? Você pode chamá-lo de cabaré. Só que não servem bebidas alcoólicas. A propósito, como você se deu como babá de cãezinhos naquela noite, Camilla? Sem problemas, Janet. Mas levei um susto! Vi um escorpião no banheiro e... Sim, ouvimos falar Janet disse, rindo. Não se sinta constrangida, Camilla. É uma história muito engraçada! Para mim não foi engraçada! Então você vai ter que superar seu embaraço disse Johnny, sorrindo. Convidamos Malcolm Armstrong para jantar conosco esta noite. Vocês o quê? perguntou Camilla, mas não pôde continuar. A porta já tinha sido aberta e dois afegãos caminhavam na direção deles. Um deles era um pouco baixo, bem barbeado e atraente, com olhos negros e turbante. O outro era alto, bronzeado, de cabelos dourados. Os olhos azuis dele encontraram os de Camilla. Salaam aleikon cumprimentou Malcolm Armstrong, beijando Janet. Você está mais bonita do que nunca! E você, mais selvagem! Cuidado para não assustar Camilla. Ela não está acostumada com malucos. Sei que a Srta. Simpson não se assusta facilmente. Ele a olhou demoradamente. Está pálida, senhorita. Não está se dando bem com o clima? É. Talvez não. É um prazer vê-la novamente. Se ele pensa que eu posso perdoar seu comportamento tão facilmente, está muito enganado!, pensou Camilla, furiosa. Mas limitou- se a dizer: Boa-noite, Sr. Armstrong. Venham, vamos nos sentar. O que vocês vão querer? Foram feitos pedidos de café e chá. Não quero nada, obrigada disse Camilla. Olhar para Malcolm e ouvir-lhe a voz a deixaram confusa e irritada. O que será que ele pretendia, vestido como um nativo? Todo o aspecto dele era o de um estrangeiro hostil, Janet o tinha chamado de maluco, e talvez ele fosse mesmo. Pedi a Malcolm para nos ajudar começou Johnny , porque acho que ele será extremamente útil. E como o ano letivo já terminou, Malcolm terá bastante tempo para investigar. Quanto a mim, já tirei minhas férias este ano e tenho muito trabalho a fazer. Camilla lembrou-se de como os Hagan haviam saído correndo aquela noite e sentiu uma pontada de culpa. Como vai o Sr. Brody, Janet? Oh, ele vai se recuperar. Mas vamos sentir saudades dele. Só que existem muitos outros pacientes além dele disse Johnny. Como pode ver, Camilla, vai ser difícil, para mim, arranjar tempo livre para sair com você. Além do mais, Malcolm conhece todo o país muito melhor do que eu e tem carro. Poderá levá-la aonde você tiver que ir. Achei que seria uma boa idéia trazer Ali Shah. Malcolm indicou o amigo moreno, que acenou com a cabeça. Não creio que o conheça, Srta. Simpson. O atraente afegão estendeu a mão e Camilla a apertou. Nenhum amigo seu é amigo meu, Sr. Armstrong, pensou ela. Ali Shah é meu aluno na Universidade, e me ajuda nas pesquisas, durante o verão. Qual é o seu trabalho, Sr. Armstrong? Leciono História na Escola Internacional e na Universidade. Durante as férias faço pesquisas sobre a história afegã. No momento estou preparando uma tese sobre as conseqüências de Gêngis Khan e a invasão mongol. Mas não creio que isso possa lhe interessar. Que tal se começássemos por revisar tudo que sabemos sobre as circunstâncias do desaparecimento da irmã de Camilla? sugeriu Janet, tentando atenuar as hostilidades. Foi em algum lugar entre Cabul e Kandahar disse Camilla. Sei disso porque o último cartão que recebi dela foi mandado de Cabul, e dizia que eles partiriam para Kandahar no dia seguinte. Além disso, o carro foi encontrado cerca de dezesseis quilômetros fora da estrada para Kandahar, além de Ghazni. Mas por que eles teriam saído da estrada? perguntou Johnny. Aquela região é muito inóspita, difícil até para os que a conhecem bem. Talvez eles quisessem passear um pouco disse Janet. Dificilmente. Não há nada além de pedras, areia e alguns álamos entre Ghazni e Kandahar afirmou Malcolm. Talvez estivessem procurando um atalho sugeriu Camilla. Malcolm acenou negativamente com a cabeça. Existe apenas uma estrada daqui a Kandahar. Não há atalhos no Afeganistão. O carro estava a dezesseis quilômetros da estrada, dizem. Isso quer dizer que estava perdido, num campo coberto de pedras e poeira. O carro estava quebrado acrescentou Johnny. Talvez o tivessem tirado da estrada. E empurrado por dezesseis quilômetros? Duvido muito observou Janet. Mas é possível que Meghan tenha deixado Tom consertando o carro enquanto ia buscar ajuda disse Camilla. Pode ser concordou Johnny. Neste caso, três coisas podem ter acontecido: ou ela foi raptada, ou assassinada, ou morreu de sede. Espero que a primeira possibilidade seja a correta, se tem que haver uma escolha entre as três. Tem que ser a primeira! Eu sei" que Meghan não está morta. E todos nós concordamos, Camilla, ou não estaríamos aqui disse Janet. Parece que houve mesmo r***o disse Johnny. Não há outra opção. Esta é a única opção, se partirmos da hipótese de que Meghan saiu para buscar ajuda ponderou Malcolm. Mas há outras explicações para o desaparecimento dela. Quais? perguntou Camilla. Posso ver o cartão-postal, Srta. Simpson? perguntou Malcolm. Camilla estendeu-o a ele, que leu com atenção e o passou para o quieto Ali Shah. Fale-me um pouco de sua irmã, Srta. Simpson. Ela gostava de aventuras, desafios? Sim. Sempre foi a aventureira da família. Por causa disso, a idéia de viver em Cingapura e viajar pela Ásia a atraiu. Suponho que ela gostava de novas experiências, não? Gostava. Adorava experimentar coisas novas, mas basicamente era amante da natureza, de ecologia, vida ao ar livre, esse tipo de coisa. Ela disse alguma vez que gostaria de viver em contato com a natureza, em comunidade? Sim. Como você sabe? Ela costumava falar o tempo todo sobre como as pessoas eram mais felizes e mais saudáveis quando viviam naquilo que chamava de estado natural. E sua irmã era bem casada, Srta. Simpson? Como você se atreve a insinuar uma coisa dessas? O casamento dela não é da sua conta! A risada dele foi sarcástica. Sua reação responde à minha pergunta. É óbvio que ela não era. Mais uma vez Camilla teve que se esforçar para manter a calma. Como poderia esconder alguma coisa de um homem tão perspicaz como Malcolm Armstrong? Aonde isso tudo vai nos levar, Malcolm? perguntou Johnny. O que você está tentando provar? Simples: seguindo a melhor tradição dos romances policiais, estou apenas tentando descobrir o caráter de Meghan. Agora sabemos que era uma mulher jovem, idealista, vibrante, amante da natureza e da aventura e infeliz no casamento. Um esboço correto, não acha, Srta. Simpson? Camilla teve que admitir que ele estava certo. E o marido dela? continuou Malcolm. Tom? Acho que nunca o conheci profundamente. Mas posso dizer que era aborrecido e temperamental, raramente emotivo e muito preguiçoso. Ele tinha ambições, era ganancioso, mas nunca fez nada para mudar de vida, porque não tinha energia suficiente. Estava sempre procurando caminhos mais fáceis. Pelo menos era assim que eu o via. Um esboço de mestre! disse Malcolm. Em outras palavras, ele não compartilhava nem dos ideais nem das aspirações de sua irmã. Devo admitir que nunca pude entender por que eles se casaram disse Camilla, meio a contragosto. Acho que foi o emprego dele em Cingapura que persuadiu Meghan. É bem possível então, não acha, Ali Shah? perguntou Malcolm. Eu acho mais do que provável. O quê? perguntou Janet, ansiosa. Diga-nos! Foi realmente a primeira coisa na qual pensei respondeu Malcolm. Ela fugiu com os Kushis. Johnny riu. Você está louco, Malcolm! Fugir com os nômades? Já aconteceu antes. Você não pode chamar a possibilidade de remota acrescentou Ali Shah, com voz moderada. Combina com o que sabemos sobre a personalidade dela, e explica o fato de o corpo não ter sido encontrado. Oh! Mas isso é inacreditável! disse Camilla. Por que você acha a possibilidade de sua irmã ter se juntado a um romântico bando de primitivos viajantes inacreditável, Srta. Simpson? Por acaso conhece os Kushis? Camilla virou-se para Malcolm e abanou negativamente a cabeça. Ela só sabia que havia um grupo de nômades chamado Kushis e que o vestido que estava usando vinha da tribo deles. Eles são um povo tão antigo quanto o próprio Afeganistão continuou Malcolm. Ninguém tem certeza sobre quem foram os ancestrais deles, mas sempre foram nômades, o que é essencial para sua sobrevivência. Eles sobrevivem dos animais que têm: camelos, ovelhas, cabras, cavalos. E vão em busca de pastagens. Passam o verão no planalto do Hindu Kush, e no inverno juntam tudo e partem para as terras baixas. Cada tribo, cada família, tem seus próprios pastos para o verão e para o inverno, e mantém direitos sobre eles desde tempos imemoriais. Muitos dos chefes são homens de imensa fortuna, mas mesmo assim moram em tendas de couro, andam descalços, e têm suas riquezas penduradas no corpo das mulheres, sob a forma de jóias. Você não pode imaginar o esplendor de uma caravana Kushi, desfilando de maneira majestosa pelo deserto, os camelos carregados de ricos brocados, roupas, tapetes, as mulheres nos seus vestidos da cor do arco-íris, os homens impassíveis, montados em cavalos brilhantes. Eles são, na minha opinião, o povo mais bonito da terra, com olhos escuros como carvão, cabelos espessos e negros, altos, com braços e pernas compridos. Para muitas pessoas, simbolizam a existência perfeita, pois a vida deles parece ser vazia de materialismo e dos problemas enfadonhos da civilização ocidental. Eles representam a liberdade que nossas fazendas, fábricas e escritórios roubaram de nós. A voz de Malcolm era suave e profunda. Camilla estava arrebatada pelas imagens que aquele professor descrevia. Podia até visualizar a silhueta dos animais movendo-se graciosamente ao pôr-do-sol, emoldurada pelos topos das montanhas cobertas de neve. Podia ouvir o barulho dos sinos de prata, o latido dos cães e o chamado para o rebanho de ovelhas. Malcolm falava como se estivesse fazendo uma conferência, e tinha a atenção de todos. Por um momento, Camilla sentiu a mesma urgente necessidade de viajar que os nômades, os Kushis. As palavras dele eram mágicas. Muitos são tentados a largar tudo para experimentar essa liberdade, uma tenda sacudida pelo vento noturno do deserto, cascatas de neve nas pastagens. Para muita gente, a vida dos Kushis é a imagem da perfeição. E digo imagem porque a vida deles é dura, de intermináveis caminhadas no calor e na neve. As doenças são constantes. A morte sempre paira sobre eles. Nasceram e foram criados para essa vida, e nela florescem. O que já não acontece com os ocidentais. Camilla sentiu que o encanto estava começando a se quebrar. Durante vários minutos estivera escutando atentamente, mas, afinal, não tinha vindo ao Afeganistão para ouvir conferências sobre a vida dos nômades. Lutou consigo mesma para apagar a imagem forte de Malcolm de sua mente, para ter uma visão mais objetiva da situação. Mas ele continuava falando: Há três ou quatro anos, uma garota americana, aluna minha, fugiu da família e foi encontrada com os Kushis, três meses depois, vivendo na maior miséria. Você está sendo ridículo interrompeu Camilla. Se é assim tão odioso, então minha irmã dificilmente teria ido com eles! A voz de Malcolm perdeu a magia e voltou ao habitual tom de arrogância e sarcasmo. Os Kushis vivem do jeito que gostam. Para alguns estrangeiros ignorantes, isso pode parecer superficialmente atraente. No cartão- postal, a sua irmã disse que os admirava: Eu sonho com uma vida assim foram palavras dela. Pode ser que ela goste. Alguns estrangeiros permanecem para sempre, outros imploram para voltar. Pode ser que a princípio ela tenha gostado e depois descoberto que não queria mais, mas eles não a deixaram sair. E isso é possível? Tudo é possível. Tão possível quanto qualquer das outras soluções que apresentamos. De certa forma, Camilla sentia que Malcolm tinha se aproximado da verdade. Como ela odiava dar-lhe essa satisfação! Se, como você diz, minha irmã está vivendo com os Kushis, não posso entender por que ela não entrou em contato comigo. Ao menos uma palavra que fosse, para evitar que eu me preocupasse. Se, como sugeri, ela está lá contra sua própria vontade, eles na certa a impedem de manter contato com qualquer pessoa que não seja da tribo. Por acaso sua irmã tem alguma aptidão que a torne valiosa para a tribo? Sim. É enfermeira. Malcolm agarrou-lhe os braços com força, e ela sentiu a carne tremer debaixo do aperto. Você ainda não entendeu as implicações disso tudo! É indispensável que não esconda nenhuma informação de nós, por menor que seja. Coisas como o casamento infeliz de sua irmã, ou o fato de ela ser enfermeira. Tudo isso sustenta minha teoria de que Meghan está vivendo com os Kushis. Eu sei! Eu sei! desabafou Camilla. Agora, o que mais você está nos escondendo? Malcolm, por favor! interrompeu Janet. Está tudo bem, Janet disse Camilla, empurrando a mão de Malcolm, que a machucava. Existem mais duas coisas que devo dizer, embora não pretendesse. Estive conversando com um amigo, e ele... ele conheceu muito bem minha irmã e meu cunhado, quando viveram aqui. E acredita que não houve nenhum acidente na morte de Tom. Do que você está falando? perguntou Malcolm. Ele acha que Tom foi assassinado. O rosto de Malcolm ficou pálido. Você andou conversando com outras pessoas sobre esse assunto? Ele... ele disse que conhecia minha irmã! Quem é ele? Assustada com a ira nos olhos de Malcolm, Camilla só pôde balbuciar: Patrice Desmarets. Oh! Camilla! Janet suspirou antes que o punho de Malcolm descesse sobre a mesa como uma explosão. Eu sabia! Eu sabia! E por que não deveria contar a ele? Patrice tem me ajudado tanto quanto o senhor, Sr. Armstrong. Não vamos discutir isso. O que está feito está feito. Eu só gostaria que não tivesse acontecido. O que ele disse? Nós estávamos conversando sobre o relatório que a Embaixada me mandou. Ele não pareceu impressionado e, para dizer a verdade, nem eu. Patrice disse qualquer coisa como: Eles não têm nenhuma idéia de como Tom morreu. Malcolm segurou as mãos de Camilla quase com ternura e ela estremeceu ao contato. Camilla, eu já a preveni antes. Agora você precisa me prometer uma coisa. Se quer que eu a ajude, não deve ver esse Desmarets novamente. Nunca fale com ele, nunca o consulte e, acima de tudo, não lhe conte nada sobre nossas descobertas. Camilla olhou-o nos olhos e instintivamente quis confiar nele. Era uma atitude ilógica, já que ele a insultava e a tratava com condescendência. Confiar em Malcolm Armstrong não era sensato, mas os olhos azuis dele assim o exigiam. Ele parecia dar-lhe energia, transformando-a numa lutadora. O instinto dizia-lhe para confiar nele, a lógica dizia o contrário. Ela estava confusa. Diga-me por quê! falou Camilla, afinal. Por que devo esquecer Patrice? Se me disser o porquê, confiarei em você! Você não pode acreditar sem provas? Não. Patrice tem me ajudado e você sabe disso. Ele tem motivos secretos disse Malcolm. Camilla, de certa forma, concordava com isso. Tinha sentido alguma coisa errada em Patrice. Se pelo menos Malcolm apresentasse alguma prova real que confirmasse o que estava dizendo... Resolveu insistir: O que foi que ele fez? É melhor que você não saiba. Se souber, poderá ferir-se. Por favor, acredite em nós. Estamos fazendo o melhor. É que nada faz o menor sentido! Como posso fazer uma promessa baseada em razões tão inconsistentes? Ele realmente tem me ajudado, e isso deveria ter algum valor! Você não pára de repetir isso! exclamou Janet. Por quê? O que há de importante nisso? Eu simplesmente não posso prometer que não vou ver uma pessoa que talvez me aponte indícios no caso do desaparecimento da minha irmã! Apontar indícios! disse Malcolm. Como se ele pudesse fazer isso! Diga-me a verdade! Por que não me conta logo? Camilla, por favor! exclamou Janet. Malcolm sabe o que faz. E eu não, não é mesmo? De repente, Camilla percebeu que, se seguisse Malcolm Armstrong fazendo o que ele mandasse, indo aonde ele fosse e acreditando no que ele dissesse sem nenhuma razão ou prova, não estaria melhor do que em Londres, e Malcolm nada mais seria que um outro Jeff. Ela precisava começar a acreditar em seus próprios julgamentos. Tinha o direito de cometer seus próprios erros. Caso contrário, o que mais poderia ser, além de uma criança? Se não cortar essa sua amizade com Desmarets, pouco poderemos fazer por você disse Johnny. Muito bem, então. Eu realmente sinto muito, mas espero que vocês entendam. Sempre lhes serei grata, mas, por favor, digam-me por que devo aceitar as palavras de Malcolm sem questioná-las. Será que não posso acreditar na minha integridade? Pois prefiro confiar em mim mesma. Adeus e muito obrigada. Levantou-se e saiu da sala. Estava em paz. A decisão havia sido tomada. Agora, tinha que afastar da cabeça a imagem perturbadora de Malcolm Armstrong. Por sorte, o elevador estava esperando. Ela entrou e, assim que as portas se fecharam, apertou o botão do térreo. O elevador parou no andar inferior, com um solavanco. As portas se abriram e um homem alto entrou, apertando o quarto botão. Mas, entre os andares, ele tocou a emergência e o elevador parou. Qual era a segunda coisa que a senhorita ia nos dizer, Srta. Simpson? Acho que se esqueceu disso. Nós não temos mais nada a dizer, Sr. Armstrong. Ao contrário: ainda temos muito que conversar. Nosso relacionamento m*l começou. Eu já o considero terminado. Por favor, deixe-me ir. Não enquanto eu não disser o que tenho para dizer. Você parece estar tremendamente confusa, e espero poder clarear um pouco as suas idéias. Se eu precisasse disso, o senhor seria a última pessoa que eu iria procurar. Você é uma hipócrita pretensiosa, não é? Fazendo grandes discursos sobre integridade pessoal! O que entende disso? Camilla olhou para ele com dignidade. Talvez seja isso que eu esteja tentando descobrir. Meu Deus, mulher, eu realmente estou tentando ajudá-la, embora você não acredite. E não consigo entender por que está me agredindo tanto. Ela sentiu-se irritada. Isso tudo é ridículo. Deixe o elevador descer! Talvez existam pessoas esperando por ele! Eu preciso saber o resto da história. Você ia nos contar, lembra-se? Leve-me para baixo e eu lhe direi! Vai ser difícil. O elevador está quebrado e precisa de um pouco de tempo para ser consertado. Está bem! Você ganhou! Ela tirou o papel que continha a ameaça da bolsa e o entregou a Malcolm. Talvez agora me deixe em paz! Ele pegou a folha e leu duas vezes. Por que você não mostrou isso antes? Não achei importante. Deve ser apenas uma brincadeira. Brincadeira? Oh, Deus, o que devo fazer? Você deveria ser adulta o suficiente para saber que isso não é uma brincadeira de esconde-esconde no quintal de sua casa! É vida ou morte, coisas com as quais você não deveria brincar! Quantos anos tem? Dezenove? Vinte e um. Ah, sim, isso faz muita diferença! Dois anos inteiros...
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