O carro parou ao lado de um edifício impressionante, firme como um rochedo, construído com pedras acinzentadas. Johnny ajudou Camilla a descer. Rajab os seguiu, levando a bagagem dela: apenas duas pequenas malas. Pararam na mesa de recepção.
Quer que eu fique e a acompanhe até o quarto?
Você já fez tanto, Johnny, que acho que posso me arranjar sozinha agora. Sei o quanto está ansioso por chegar em casa.
Bem, se tem certeza... Nós lhe telefonaremos amanhã, para saber como está se saindo. Abaixou o tom de voz ao completar:
Se você quiser um conselho de amigo, não mencione nada a ninguém a respeito de sua irmã. Não que haja qualquer coisa suspeita, mas...
Se você está tentando me desanimar, está se saindo muito bem!
Não se preocupe, Camilla. É que não há razão alguma para que toda Cabul saiba por que você está aqui. Vamos deixar isso só entre nós e as pessoas em quem podemos confiar. Para qualquer outro, você será simplesmente mais uma turista, certo?
Camilla estava cansada demais para discutir. Sorriu.
Certo!
Então até breve, garota. Boa sorte!
E Johnny se foi, seguido por Rajab, deixando-a sozinha naquela terra estranha. Camilla passou os olhos pelo saguão do hotel. Era aberto e espaçoso, com paredes altas, de pedra, e chão de mármore coberto por tapetes em tons dourados e vermelhos. O ar condicionado fez com que ela se sentisse bem.
Sozinha no quarto, fechou as pesadas cortinas e estirou o corpo entre os lençóis limpos e macios, com uma sensação de prazer. Esperava dormir assim que pusesse a cabeça no travesseiro, mas, quando seu corpo descansou, sua mente começou a trabalhar. Lembrando-se de Johnny, os pensamentos a levaram até seu último e amargo encontro com Jeff.
Fora num restaurante londrino, onde jantaram pela última vez. Ele havia agarrado o braço dela com tanta força que lhe deixara uma grande marca. E, então, dissera:
Parece que você tomou mesmo a tola decisão de ir.
Seria um desperdício não ir. Com as passagens compradas, as reservas feitas, e com todas as vacinas que tomei!
Não acredito que você queira mesmo ir. Acho que decidiu isso num impulso e, como é orgulhosa demais para voltar atrás, vai levar essa loucura até as últimas conseqüências.
Não é nada disso! exclamou Camilla, desesperada e ferida pela falta de compreensão dele. Eu tenho tentado, durante semanas, fazer com que você compreenda minhas razões! Mas você não liga a mínima! Não percebe que isso está acabando com o nosso relacionamento? Será que não enxerga? Eu não tenho escolha! Eu tenho que ir para o Afeganistão e encontrar Meghan! Você está certo ao dizer que não quero ir; não pode imaginar o medo que sinto, principalmente depois do que aconteceu a ela. Meghan é minha irmã!
Era sua irmã corrigiu Jeff friamente. Desaparecida, presumivelmente morta. Esqueceu?
Ela não está morta! gritou Camilla, e sua voz ecoou pelo restaurante.
Como pode afirmar isso? Por acaso é alguma adivinha ou coisa parecida?
Se você quiser entender assim... respondeu Camilla, desanimada com a discussão. Mas essa é uma maneira tola de ver as coisas. Simplesmente eu sei que Meghan está viva. Como saberia se ela estivesse morta. Sinto isso de uma forma tão forte que tenho que acreditar! Meghan é minha irmã! É a única pessoa que tenho no mundo! E, com sofrimento, lembrou-se da trágica morte dos pais, num acidente de carro, há dois anos.
Você tem a mim respondeu Jeff suavemente, segurando a mão dela. Ou poderia ter, se quisesse. Case-se comigo, Camilla. Então também poderei ir para Cabul. Você precisa de mim, e jamais poderá levar essa missão a cabo sozinha. Você mesma admite que está amedrontada. Deixe-me ir, para ajudá-la.
Por um breve momento ela sentiu-se tentada a aceitar. Como seria fácil deixar-se levar por aquela idéia... Jeff estaria sempre a seu lado, protegendo-a, tomando conta de todos os detalhes aborrecidos e confusos. Mas essa seria uma vida totalmente sem graça. Jeff organizaria tudo tão facilmente como escolhia um restaurante ou um cinema, os teatros e as galerias de arte que visitavam. Seria uma vida na qual ele a aconselharia sobre tudo, desde vestidos e perfumes até dietas e sabonetes. Jeff lhe mostraria o Afeganistão com o mesmo esforço que fazia para mostrar-lhe um de seus museus preferidos. Camilla não precisava de um livro de informações porque ele sabia tudo e diria aquilo que desejasse que ela soubesse.
Case-se comigo, Camilla. Nós já estamos juntos há três anos! Você tem razão, nosso relacionamento está se deteriorando, mas precisamos fazer alguma coisa para salvá-lo. Eu tenho sido bom, paciente. Há três anos espero você porque acho que vale a pena. Vamos salvar o que nos resta: case-se comigo!
Camilla se apavorou ao pensar em tudo o que o casamento implicava. Porque, no fundo, não sentia atração alguma por Jeff. Na realidade, nunca o desejara.
Eu não posso me casar com você.
Por que não? Pode fazer tudo que quiser fazer.
Então eu não quero me casar com você. Diante do olhar de incredulidade dele, continuou: Você nunca pensou que eu fosse recusá-lo, não é? Mas tenho minha própria cabeça, por mais que isso possa surpreender, e vou fazer algumas coisas e visitar alguns lugares, antes de me casar com quem quer que seja. Como fui cega em não ver isso antes! Não preciso pedir sua permissão, nem a de ninguém, para fazer as coisas que quero fazer! Irei para onde tiver vontade de ir e verei o que quiser ver, sem que uma única corda me prenda. E começarei pelo Afeganistão, para achar minha irmã.
E quando você voltar?
Eu nunca poderia me casar com você, Jeff. Nunca houve nenhum envolvimento entre nós, nenhuma paixão. Não, eu não me lembro de ter alguma vez sentido algum... desejo. E certamente isso tem que existir.
Mas eu notei desejo em você!
Não, Jeff, eu não sentia. Eu nunca disse isso a você. No começo achei que o problema era comigo, que eu iria superar, mas... não há nenhum desejo mesmo. Quando eu me casar, será com alguém que ame, e acho que esse não é nosso caso. Talvez eu não tenha sido feita para o casamento.
Você parece não perceber as ilusões que está criando para si mesma! Pensa que o amor é o começo e o fim de tudo, na vida! Bem, pois saiba que não é. E sei que você não é o tipo de pessoa que gosta de ter casos e nada mais. Você é muito orgulhosa para admitir que será melhor casar-se comigo!
Se o casamento for isso que você parece pensar que é, então eu não me casarei nunca! Nunca darei, a homem nenhum, permissão legal para me dar ordens sobre isso ou aquilo. Eu tenho amor-próprio!
Eu agora vejo isso. Mas, se pensa que será feliz, está enganada!
Parece que você me oferece a seguinte escolha: ser uma escrava casada ou ficar sozinha, mas dona de minha vida. Acho que posso tomar conta de mim mesma e ser feliz, também.
Estou pagando para ver respondeu ele, sarcástico.
Mesmo exaltada, Camilla ouviu um telefone tocar em algum lugar, e o garçom veio chamá-la.
Telefone para a Srta. Simpson.
Ela se levantou e dirigiu-se para o telefone da mesa de recepção.
Camilla?
Sim?
Sou eu, Jennifer.
Jennifer era uma amiga que trabalhava na agência de viagens onde Camilla tinha reservado as passagens.
Eu telefonei para sua casa continuou ela , mas ninguém atendeu; então, imaginei que vocês dois poderiam estar aí no restaurante. Bem, seu vôo foi marcado para depois de amanhã. Se for inconveniente, poderemos reservar outro vôo para a semana que vem.
Não, não, está ótimo! Quando mais cedo melhor!
Está tudo bem, Camilla? Você está tão estranha!
Como assim?
Não sei dizer. Feliz, talvez agitada.
É, é verdade. Acabei de recusar uma proposta de casamento.
Mesmo? Bem, espero que o Afeganistão valha a pena.
Acho que qualquer lugar valeria! Camilla riu e Jennifer a acompanhou.
A lembrança de tudo aquilo, de tudo que vivera naquela noite, voltou-lhe à mente. E Camilla teve a certeza de que, por mais difícil que sua tarefa pudesse ser, havia tomado a melhor decisão. Ali, naquela terra estranha e com a liberdade que tinha adquirido, iria começar uma nova vida, iria tomar suas próprias decisões, aceitar ou rejeitar conselhos, procurar seus próprios amigos e encontrar seu próprio caminho.
Eu gosto dos Hagan; quero que eles me ajudem, pensou.
Lembrou-se das palavras de Johnny, no avião: Você vai achar este lugar estranho a princípio, mas logo vai amá-lo. Nós todos o amamos. O Afeganistão cresce em você.
E finalmente pegou num sono profundo, repleto de sonhos. Envolta nos lençóis brancos, ela sonhou com dois penetrantes e belos olhos azuis.
Camilla não saiu do hotel no dia seguinte. Tinha sido avisada para tomar cuidado com a mudança de altitude. Dessa forma, desfez as malas, arrumou os artigos de toucador, leu e telefonou para a Embaixada, mas eles não tinham novas informações para lhe dar. Desanimada, comprou alguns cartões-postais e os remeteu para alguns amigos. Não mandou nenhum para Jeff.
No dia seguinte, Rajab foi até o hotel com uma mensagem de Johnny:
Camila:
Janet está meio cansada, embora diga que tem se sentido melhor desde que cheguei. Mesmo assim vou ficar em casa com ela por mais um dia ou dois. Espero que esteja dando conta de tudo. Janet está ansiosa por conhecê-la.
Você pode vir jantar conosco amanhã à noite? Rajab estará à sua disposição, uma vez que não pretendo sair de casa. Vamos ver se podemos dar início àquele seu assunto amanhã. Até lá, esqueça-o e divirta-se.
Camilla tinha ouvido falar que os americanos eram muito amigáveis, e era verdade. Pelo menos no que dizia respeito a Johnny.
Amanhã... Só lhe restava um dia para achar alguma coisa adequada para vestir. Constatou que precisava de um vestido para noite, já que não tinha previsto a possibilidade de convites para jantar. Mas onde comprar um?
Onde quer ir hoje, memsahib?
Preciso de um vestido, Rajab, um vestido longo. Onde posso comprar um? Rajab não entendeu, e ela consultou rapidamente o dicionário. Peyran. Um vestido.
Você gosta peyran, nós vamos bazar. Muitos, muitos peyran. Bazar, então?
Bazar! respondeu ela, rindo.
Enquanto rodavam pelos quentes e sombreados bulevares, Camilla se divertia com a experiência de ter um chofer. Isso lhe dava uma sensação de importância, uma sensação falsa, sabia, mas muito engraçada.
Em todo caso, não era apenas uma turista. Cada viagem, cada expedição que fizesse, teria algum valor para sua tarefa. Mesmo esse curto passeio até o bazar. Era necessário ter um conhecimento básico do país, se pretendia descobrir os mistérios que estavam por trás do desaparecimento da irmã.
O furgão virou uma esquina, parou e Camilla saiu do carro, encontrando-se numa rua comprida e estreita. Ao longo dela, vendedores empurravam carroças de madeira carregadas de mercadorias. Frutas brilhantes, que pareciam estourar de tão maduras, deram-lhe água na boca. Ela prestou atenção no rangido das carroças, no zurro dos jumentos, no latido dos cães, em galos cantando e, misturado a isso tudo, nos berros dos lojistas. Em meio a essa animada algazarra. Camilla sentiu-se vibrar. Era uma pessoa livre!
Que lugar maravilhoso!
Vem, memsahib. Quer peyran, conheço loja cheia bom peyran.
Rajab começou a andar e ela o seguiu. Começaram a descer a rua repleta de gente, desviando aqui e ali da horda humana, dos animais e das mercadorias. Rajab movia-se rapidamente, e ela lutava para não ficar atrás. A sensação era de claustrofobia, e, de vez em quando, sentia que mãos a tocavam ou puxavam-lhe o cabelo.
Rajab entrou por uma porta e ela o seguiu, feliz por se ver livre do calor, da poeira e do barulho. O interior da loja era frio e escuro, e, assim que os olhos dela acostumaram-se à meia-luz, pôde ver uma imensa variedade de tecidos, pendurados na parede. Eram vestidos longos, de todos os estilos, com mangas largas ou estreitas, estampados ou lisos, feitos de seda, algodão ou lã pesada. Verificou, surpresa, que aqueles trajes eram os mesmos vendidos em lojas selecionadas de Londres, a preços exorbitantes. E ali estava ela, a milhares de quilômetros de Londres, na própria terra onde esses vestidos eram costurados e estampados.
Peyran-i Kushi disse Rajab. Vestidos nômades. Gosta?
A palavra Kushi já lhe era familiar, e Camilla olhou para os vestidos com interesse. Esses eram os trajes da gente que sua irmã tinha admirado tanto. No brilho das cores, nas linhas harmoniosas e no vistoso bordado, Camilla percebia um pouco da beleza que tinha atraído Meghan. Decidiu que teria um desses vestidos. Escolheu um azul e branco, todo estampado com ramos floridos verdes e vermelhos, e com um belo e multicolorido bordado na cintura, punhos e bainha.
Gosta? perguntou Rajab.
Sim. Eu quero este aqui.
Num minuto o lojista estava do lado dela.
Memsahib gostaria experimentar? Provador é logo ali.
Ela entrou no provador e fechou a cortina. Despiu-se rapidamente e sentiu com satisfação o frescor do toque do vestido no corpo. Serviu perfeitamente, e, como havia pensado, combinou com sua aparência tipicamente inglesa.
Voltou à sala e o vendedor aproximou-se novamente.
Agradou?
Sim. Quanto custa?
Para a senhora, memsahib, porque é tão formosa, apenas oitocentos afeganes.
Camilla sorriu. Um preço fantástico para um vestido pelo qual pagaria quase o dobro em Londres. Ela já ia concordar quando Rajab sussurrou-lhe:
Esse homem ganancioso. Você vai, eu decido quanto.
Camilla ficou intrigada. Tinha ouvido falar do sistema de barganha nos bazares e estava interessada em saber como Rajab conduziria a situação, embora estivesse satisfeita com o preço. Entregou o vestido a ele e saiu, caminhando de volta ao carro.
Durante longos minutos, ficou recostada no assento, quase cochilando com o calor. Uma batida na janela a assustou, e ela abriu os olhos: várias crianças, escuras e esfarrapadas, esticavam as mãos, pedindo esmolas:
Baksheesh, baksheesh, memsahib!
Ela pegou algumas moedas no bolso e abriu a porta do carro para distribuí-las. Então, alguma coisa na rua chamou-lhe a atenção: um homem alto estava lá, parado. Alto mesmo para os padrões dos afegãos. Um lento reconhecimento fez o corpo dela tremer: era o estranho que parecia um sonho, o estranho de olhos azuis. Prendeu a respiração ao observar o andar dele. Era solto, leve, seguro.
Camilla sentiu uma compulsão em segui-lo. Ameaçou, e chegou a dar alguns passos na rua quando mudou de idéia. Por que fazer uma coisa dessas? A atmosfera mágica de Cabul deveria estar afetando-a.
Memsahib!
Ela olhou para o rosto sorridente de Rajab, que lhe entregou o pacote do vestido. Apanhou-o e ficou segurando, sem olhá-lo, sentindo-se meio perdida no tumulto do bazar da rua Chicken.
Memsahib muito cansada. Vamos hotel.
Camilla acenou com a cabeça, intrigada. Como explicar a si mesma aquele momento louco, impulsivo, em que quase seguira um desconhecido? Procurou a enigmática figura. Ele tinha desaparecido. Abanou a cabeça mais uma vez, surpresa consigo mesma. Seria o calor do sol? Ou a altitude já estava lhe pregando peças? De pé, no meio da rua Chicken, segurando junto ao peito um pacote e com o olhar fixo num ponto onde um homem tinha desaparecido, ela sentiu-se uma perfeita i****a. Mas não podia negar o magnetismo dele.
Devo estar supercansada, pensou. Voltou-se em direção ao carro. Aí lembrou-se do pacote, e o seu entusiasmo voltou.
Quanto custou?
Ele diz oitocentos, eu diz quatrocentos, nós chai, ele diz quinhentos afeganes, eu diz sim explicou Rajab, devolvendo-lhe trezentos afeganes.
Da próxima vez vou tentar fazer isso. Se pelo menos nós tivéssemos esse maravilhoso sistema de argumentação com os lojistas da Inglaterra...
Mais tarde, quando ela apagou as luzes e deitou-se, seus sonhos foram agradavelmente perturbados mais uma vez por um desconhecido de olhos azuis.