O avião estava prestes a aterrissar. Camilla observou a paisagem pela janela e, numa agitação crescente, agarrou os braços da poltrona. Estirada ao longo de um rio prateado e sinuoso estava Cabul, a capital da terra exótica e estranha, para a qual ela havia viajado de tão longe. Pequenas cabanas de barro se espalhavam pelas colinas que rodeavam a cidade, confundindo-se com a cor da terra e contrastando com os telhados cintilantes das mesquitas e dos palácios.
Lá está a Mesquita Azul disse seu companheiro de poltrona.
Olhando na direção que ele apontava, Camilla viu um grande edifício encimado por uma abóboda, que brilhava como uma escultura de vidro.
É tão bonito! exclamou ela, voltando-se para o homem sentado a seu lado.
O nome dele, isso ela soubera no começo do vôo, em Roma, era Johnny Hagan, um médico americano que tivera a paciência de aturar os medos de Camilla, marinheira de primeira viagem, respondendo a todas as suas perguntas com um sorriso. Ele vivia em Cabul e não via a hora de chegar.
Eu m*l posso esperar para encontrar Janet. Ela está esperando um bebê, o nosso primeiro filho, e fica muito abatida quando viajo, pobre menina. Eu também me abato. Para animá-la, trouxe-lhe cartas da família.
Você não sente falta do seu lar, quero dizer, dos Estados Unidos? Sua mulher não preferiria ter o bebê num lugar com mais recursos médicos?
Acho que não. Pelo menos ela não disse nada a respeito. Nosso filho será um verdadeiro afegão. Vai crescer falando a língua do país, uma oportunidade que eu gostaria de ter tido. Se ficarmos bastante tempo em Cabul, ele será aluno de Malcolm Armstrong, o que é realmente um privilégio.
Camilla estava intrigada.
Você mencionou esse Malcolm Armstrong várias vezes. Quem é ele?
Alguém que já faz parte da história da nação. É inglês como você, mas parece um verdadeiro afegão, especialmente quando está vestido a caráter. Aposto que um dia o cabelo loiro dele vai ficar preto. Você precisa conhecê-lo. Irá admirá-lo.
Certamente você quer dizer gostar dele disse Camilla, embaraçada.
De forma alguma! respondeu Johnny, sorrindo. Creio que não são muitos os que realmente gostam dele, mas todos o admiram. É muito difícil chegar perto de Malcolm para conhecê-lo e gostar dele.
Camilla tinha entendido. Esse tal Malcolm parecia um expatriado convencido, que tentava impressionar outras pessoas fazendo-se passar por nativo, representando o silencioso afegão, o homem misterioso. Bem, ele poderia impressionar quem quisesse, menos a ela.
E, então, mudou de assunto, falando sobre outras coisas, sem vontade de levar adiante aquela conversa sobre Malcolm Armstrong.
Estava cada vez mais fascinada por seu jovem amigo americano, cujo rosto, meio bronzeado e coberto de sardas, irradiava simpatia e bom humor. Se a esposa dele fosse tão gentil quanto o marido, Camilla poderia contar com dois amigos naquela terra desconhecida, da qual o avião se aproximava mais e mais. E só Deus sabia o quanto ela precisava de ajuda!
Johnny inclinou-se sobre a janela, cheio de entusiasmo, e apontou para os quatro pontos cardeais, descrevendo o que havia em cada um deles:
O sul. Aquele é o deserto, cujas maiores cidades são Ghazni e Kandahar. Kandahar é dominada pelos severos mulás.
Mulás? Quem são eles?
Sacerdotes muçulmanos. Kandahar é a zona n***a do país. Quase todo mês ouvimos rumores sobre algum apedrejamento ordenado pelos mulás.
Apedrejamento? Que coisa h******l!
Johnny riu.
Desde que cheguei, nunca tive confirmação de qualquer desses boatos. Mas eles demonstram que tipo de lugar Kandahar pode ser, se até esses ridículos rumores são tidos como verdadeiros e divulgados. Eu já estive lá e posso garantir que a pior coisa daquele lugar são as moscas, que pousam sobre tudo, como um cobertor n***o.
Que h******l! Detesto insetos!
Bem, mas vale a pena conhecer Kandahar. Embora eu admita que não seja lugar para uma mulher de cultura ocidental. Especialmente uma garota frágil como você.
Camilla mordeu o lábio. Eram todos iguais, os homens! Altos, baixos, gordos, magros, amarelos, loiros, pretos, bonitos ou feios, inteligentes, charmosos, egoístas ou misteriosos, tanto fazia: todos acreditavam que a necessidade fundamental de uma mulher era p******o. E ela, Camilla Simpson, já estava farta disso tudo.
A liberdade era algo novo, estranho e inebriante, e estava disposta a usufruir de suas emoções ao máximo. Quem tinha o direito de dizer qual era e qual não era o lugar para onde poderia ir? Ninguém iria impor limites às suas vontades. Camilla agora sabia que não era o tipo de mulher que agia sob a tolerância de alguns machos dominadores.
Eu não me deixarei dissuadir por alguns rumores. Irei a Kandahar, se quiser ir. Afinal, vim até aqui sozinha.
Johnny parecia embaraçado.
Eu não quis insinuar que você não era capaz de tomar conta de si própria. É só que... você não conhece os afegãos. O modo de vida deles é totalmente diferente do nosso. É muito difícil explicar. A liberdade das mulheres está crescendo um pouco em Cabul, com influências que chegam do Ocidente, mas na maior parte do país todas elas ainda usam os chadaris, véus que as cobrem da cabeça aos pés. Você estaria arriscando sua vida se fosse a Kandahar vestida como está.
Camilla olhou para seu vestido de algodão verde, os braços e pernas nus, os pés calçando alpargatas brancas. A aparência de frescor do traje contrastava com o fulgor dos cabelos castanhos, avermelhados, e a cor do vestido estava refletida na profundidade dos olhos verde-esmeralda. Aquela roupa seria perfeitamente aceitável na Inglaterra, mas os costumes pareciam ser diferentes em Cabul.
Tenho que ser muito cautelosa, pensou ela.
Para o leste continuou Johnny , está a cidade de Jalalabad, próxima à província da fronteira noroeste do Paquistão. Você provavelmente sabe mais do que eu sobre as batalhas que têm sido travadas nas fronteiras, já que os ingleses têm estado envolvidos em tantas guerras afegãs. Para o nordeste, está o Nuristão, isto é, a Terra da Luz, assim chamada porque os nativos, no final do século passado, foram convertidos ao, islamismo: você sabe, viram a luz. Antes disso o lugar era chamado Cafiristão.
Terra dos Cafires?
Isso mesmo. Eles eram pagãos, antes da conversão, e muitos afegãos ainda os temem. É uma área confinada: você precisa de um visto especial para entrar lá. Eles têm poucos escrúpulos quanto a m***r estrangeiros.
Que lugar!
Armstrong esteve lá uma vez, há muitos anos. É o único estrangeiro que conheço que voltou para contar a história. E, assim mesmo, ele teve que sair às pressas. Aparentemente, um dos chefes gostou de Malcolm e tentou vender-lhe a filha.
Aposto que a filha do chefe sentiu-se aliviada pela negociação ter fracassado. Imagine, ser vendida como se fosse mercadoria!
As mulheres executam boa parte do trabalho pesado neste país, e portanto alguém tem que compensar o pobre papai pela perda de um par de mãos extras!
Camilla sabia que esse costume existia na maioria das nações islâmicas, e por isso não disse mais nada. Mas a história a revoltou, e o fato de ter acontecido a um compatriota tornou tudo desagradavelmente próximo.
Além do Nuristão, que é formado essencialmente de bosques e montanhas, está o corredor Vakhan, que conduz à China.
Eu não sabia que estávamos assim tão próximos da China!
Johnny aquiesceu e continuou:
Ao norte de Cabul, estão as montanhas altas; depois vêm as estepes e os sopés, e, depois disso, a Rússia. As montanhas são chamadas de Hindu Kush, o que significa O Matador de Indianos. São conhecidas por esse nome sangrento porque, todas as vezes em que os indianos tentaram invadir o Afeganistão, foram rechaçados pelas escarpadas montanhas. Os altos planaltos e os desertos arenosos estão ao sul. E, para o oeste, está Bamian, onde dois gigantescos e antigos Budas foram esculpidos nos penhascos. Bandi Amir, os Lagos do Rei, estão ali perto também. Esses cinco lagos pequenos são famosos pelas raras colorações, que variam do branco ao verde-escuro. É o primeiro lugar que você deve visitar, se tiver tempo.
É um lugar seguro, eu suponho murmurou Camilla, os pensamentos longe dali.
Através da janela, podia ver apenas o perfil das montanhas de cor escura, que Johnny tinha chamado de Matador de indianos. Mas, com sua imaginação fértil, podia ver além delas, para o leste, oeste, norte e sul, e tudo que captava da descrição dele era uma vasta expansão de solidão, deserto, estepes ou montanhas; uma paisagem hostil, com homens violentos. Aquilo a assustou, dando-lhe a dolorosa dimensão de seu isolamento e sua ignorância. Apertou as mãos e sentiu um frio na espinha. Tinha um pensamento fixo:
Minha irmã, a única parente que eu tenho, está perdida naquele lugar.
Pegou no bolso os dois pedaços de papel que a tinham feito viajar meio mundo. O primeiro era um cartão-postal. Ela não tinha necessidade de olhar para ele: as cores berrantes e retocadas estavam gravadas em sua memória. Tratava-se de uma rua sombreada por árvores espessamente folheadas de verde. Embaixo delas, homens vestidos com espécies de pijamas sentavam-se atrás de barracas repletas de frutas deliciosas: melões, uvas, amoras, romãs. Foram as frutas que primeiro lhe chamaram a atenção, quando o cartão-postal chegou a seu apartamento, em Londres, três meses atrás. No verso, havia uma mensagem com a letra de sua irmã:
Estivemos uma semana em Cabul, e é o lugar mais maravilhoso que você pode imaginar. Sei que o que vou dizer não é original, mas realmente desejei que você estivesse a meu lado. Vale a pena sentir-se sufocada nos outros países, só para chegar aqui e respirar: o ar é puro! Os Kushis, um povo nômade, estão passando pela cidade. Eles são fascinantes, incrivelmente ricos, e as mulheres são as únicas, no Afeganistão, que não usam véus. Eles parecem ter saído de algum filme épico, com seus camelos, jumentos e cães. Sonho com uma vida assim. A propósito: não é nem um pouco como parece na fotografia, mas sim frio e ainda com um pouco de neve. Um alívio, depois da índia! Vou para Kandahar amanhã. Escreverei em breve.
Meghan.
Meghan e o marido, Thomas, viajaram de carro pela Ásia desde Cingapura, onde Tom trabalhou durante muitos anos. Por isso, quando Camilla recebeu o cartão-postal, não deu muita importância ao fato. Era só mais um, que ela juntou aos outros, vindos da Tailândia, de Butão, da índia e do Paquistão, e que estavam pendurados na parede da cozinha do apartamento. Não podia supor que aquele cartão seria a última comunicação que receberia da irmã.
O segundo papel era uma folha timbrada, datilografada com a frieza impessoal da tinta preta e do papel branco. Estava escrito:
Embaixada Britânica Cabul, 30 de abril
Cara Srta. Simpson:
É com profundo pesar que lhe informamos que Thomas Cowley foi encontrado morto na manhã de 28 de março, às nove horas e trinta e cinco minutos, a dezesseis quilômetros da estrada para Kandahar, a sudoeste da cidade de Ghazni. O relatório da polícia local informa que a causa da morte foi um golpe na base do crânio. A investigação oficial concluiu que a morte aconteceu por homicídio acidental.
Pelo fato de o Sr. Cowley não nos ter notificado de sua chegada ao Afeganistão, e em virtude da ausência de quaisquer documentos pessoais com o falecido, levamos muito tempo para identificá-lo. Com a ajuda das autoridades da fronteira, soubemos que ele tinha entrado no país vindo do Paquistão, através do desfiladeiro Khyber, acompanhado da esposa. E é também com profundo pesar que informamos não saber do paradeiro da Sra. Cowley.
Pelo que foi declarado pelas autoridades, ela está desaparecida, presumivelmente morta. Naturalmente, continuaremos a fazer todos os esforços no sentido de localizar sua irmã, mas devemos informá-la de que as dificuldades que temos encontrado são enormes...
Camilla suspirou. Nunca havia se importado com Thomas, mas não desejaria a ninguém o fim que ele teve. Sempre o considerara um esnobe, do tipo que andava por aí com o nariz empinado. Mas tentava acreditar que deveria haver algo de bom nele, senão Meghan não o teria escolhido para marido.
Thomas estava morto. E ela precisava achar Meghan. Foi pensando nisso que desceu do avião. Saindo do conforto do ar condicionado, o calor atingiu-a violentamente. Ela respirou com dificuldade e cambaleou, mas Johnny, que estava logo atrás, a amparou e evitou que caísse.
Está muito quente, mas você logo vai se acostumar. E gostará do clima daqui quando estiver com a pele bem bronzeada.
Bem bronzeada? Eu descasco, como as cebolas! Johnny, você se importaria em chamar um táxi para mim? Tenho um quarto reservado no Hotel Cabul.
Eu a levarei. E vou achar um insulto se não permitir que a acompanhe até o hotel. Dessa forma, o motorista não poderá cobrar o dobro da tarifa e terei certeza de que você chegou lá sem perigo.
Ainda tentando me proteger!, pensou Camilla, enquanto passavam pela alfândega. Mas estava cansada demais para recusar, e a presença de Johnny seria muito mais alentadora do que a de um desconhecido motorista.
Onde está seu carro? perguntou ela, olhando para o estacionamento quase totalmente vazio, o que parecia estranho para um aeroporto.
Você está pensando no quanto é diferente do aeroporto de Londres, não está? Venha comigo.
Ele a conduziu em direção a um furgão Volkswagen. Visões novas e fascinantes a rodeavam: uma fileira de camelos passava ao longe; homens escuros montados em jumentos circulavam em meio ao tráfego; táxis e ônibus importados rodavam pela cidade e ainda havia uma estranha figura, vestindo um manto, que deslizava silenciosamente e a olhava através de um véu rendilhado. Ao lado do carro, estava um homem sorridente, vestindo uma espécie de pijama branco e um boné de lã n***a, lã de ovelha recém-nascida.
Camilla, esse é o meu motorista, Rajab. Rajab, esta é a Srta. Simpson. Ela veio conhecer o Afeganistão.
O rosto do motorista abriu-se num sorriso de dentes irregulares, e ele estendeu a mão:
Salaam aleikon.
Camilla apertou a mão dele.
Muito prazer.
Como está a memsahib, Rajab? perguntou Johnny.
Khubnes disse o motorista, sacudindo a cabeça.
Bessiar? perguntou Johnny, ansioso. E, virando-se para Camilla: Ele diz que Janet não está muito bem. Nunca vou poder me perdoar se alguma coisa aconteceu a ela enquanto estive fora!
Mas Rajab o tranqüilizou:
Ne, não tão r**m; ela não gosta senhor Hagan sai...
Mas qual é o problema? perguntou Camilla, preocupada.
Tinha ouvido falar tanto sobre Janet que já a considerava sua amiga, e detestava pensar que pudesse acontecer alguma coisa r**m com ela.
Eu não tenho parado muito por aqui, e, assim, não conheço direito o idioma. E Rajab praticamente não fala inglês. Portanto, terei que esperar até chegar em casa para descobrir como as coisas realmente estão. É uma pena. Eu gostaria de convidá-la para jantar esta noite. Ainda não lhe contei metade das coisas que você teria que saber, e existem algumas que somente uma mulher poderá fazê-lo. De qualquer forma, posso telefonar para o hotel assim que souber como estão as coisas em casa. Tenho certeza que Janet vai adorar conhecê-la.
É uma gentileza sua, Johnny. Mas eu terei que recusar. Estou tão cansada que m*l posso manter os olhos abertos!
Ele sorriu e se acomodou no assento do carro, examinando o rosto de Camilla, que observava, pela janela, as imagens hipnóticas da bela cidade asiática.
Você quer que eu lhe apresente algumas pessoas? Isso talvez ajude. Afinal, está sozinha num país estranho...
Você tem sido tão amável, Johnny... Obrigada. Sei que posso confiar em você. E nem sei como lhe agradecer.
Camilla sorriu, feliz por ter como amigo alguém tão sincero e valioso como Johnny. Se não o tivesse conhecido durante o vôo, estaria em pânico agora.
Depois de conversarem sobre assuntos variados, ele se mostrou intrigado a respeito da viagem dela e perguntou:
Por que, entre tantos lugares, você escolheu vir para o Afeganistão?
Então ela contou toda a história: o desaparecimento da irmã, seu sofrimento, a crença de que Meghan não estava morta, a demissão do emprego como secretária e a necessidade de juntar todas as economias para a viagem.
Ele admirou-se da coragem dela e ofereceu-se para ajudá-la, assegurando-lhe que Janet iria compartilhar daquele interesse.
Pararam num farol vermelho e Camilla olhou para a frente: dois homens estavam parados num cruzamento, vestidos com mantos e turbantes. Um deles tinha estatura média, pele ligeiramente parda, enquanto o outro era bem mais alto, bronzeado, e mesmo a roupa solta não escondia a flexibilidade de seu corpo. Os olhos de Camilla fixaram-se nele e, por um momento, seus olhares se encontraram. Ela percebeu o azul dos olhos dele: um azul da cor do céu do deserto, um azul tão brilhante que a fez vibrar de emoção. Mas o farol abriu, o carro virou a esquina e os dois homens ficaram para trás.
Voltou-se para Johnny. Numa cidade tão grande, seria possível que ele soubesse quem era aquele afegão de olhos azuis? Mas Johnny estava recostado no assento, imerso em pensamentos, tão cansado quanto ela e ansioso por reencontrar-se com a esposa. Camilla não o perturbou. Nem sequer tinha certeza se os dois homens eram reais ou apenas invenção da sua mente cansada. Mesmo assim... aquele azul... Sim, aqueles olhos a tinham perturbado. E muito.