Desconfianças

1088 Words
Agora será o meu fim. Qual será sua reação a meu ver? Surpresa é claro, mas e depois? Assim que nossos olhos se encontram, é como se o mundo parasse. Meu corpo inteiro estremece, e preciso fazer um esforço sobre-humano para não perder o controle. Ele está parado ali, imponente, mais bonito do que minha memória ousava lembrar. A barba impecável realça a força de seu queixo, e os cabelos negros, alinhados para trás, brilham sob a luz como se tivessem sido esculpidos em obsidiana. Meu coração dispara. Ele pisca uma vez, depois outra, como se precisasse se convencer de que sou real. Seus olhos, intensos e profundos, se apertam, revelando a confusão e o choque que tentam romper sua fachada impenetrável. É como se ele quisesse me decifrar, me despir de qualquer máscara que eu pudesse estar usando. Seu rosto endurece lentamente, os lábios se comprimem em uma linha fina, e o ar ao nosso redor parece vibrar com algo indefinido, quase palpável. Meu rubor é instantâneo, feroz. As memórias de nossa última vez juntos queimam na minha mente, e tenho certeza de que meu rosto inteiro está tão vermelho quanto uma chama. Antes que ele tenha tempo de pensar o pior – que eu planejei isso, que essa situação não é obra do destino –, eu me apresso, minha voz trêmula, mas firme. — Olha, antes que pense qualquer coisa, eu não sabia que ia trabalhar para o senhor. Estou aqui por um acaso do destino. As palavras saem rápidas, mas ainda assim soam pequenas, frágeis no peso do silêncio que se segue. Ele não responde de imediato. Apenas me encara, como se tentasse desvendar o caos que agora, com certeza, está estampado no meu rosto. Sua respiração é controlada, quase exagerada. Ele ergue uma sobrancelha com ceticismo, e o gesto faz com que um arrepio percorra minha espinha. Quando finalmente fala, sua voz é grave, mais baixa do que eu lembrava, mas com um tom que faz meu estômago se apertar. —Você está dizendo que está aqui porque o destino nos pregou uma peça? —Exatamente. Seus olhos se demoram nos meus e ele sorri para mim de um jeito jocoso que me arrepia o meu corpo inteiro. Ele meneia a cabeça. —O senhor não acredita? Ele me encara. —Por que saiu do hotel? Não vai me dizer que te mandaram embora por minha causa? Eu aceno um não e ergo meu queixo. —Não, eu pedi a conta. Estava enfrentando alguns problemas pessoais. Seus olhos negros me avaliam, desconfiados. —Sei, problemas...E agora não está? —Não! —Hum, interessante —ele diz como se ainda não acreditasse. —Pelo visto sua perna sarou. —Digo mudando de assunto. —Sim, demorou um pouco por causa do esbarrão — ele diz, parecendo querer me lembrar daquele dia. —Bem, bom apetite. Eu giro meu corpo para sair. —À propósito, eu não mordo, relaxe, não precisa me tratar como se fosse uma gueixa. Tão...tão serviçal. Não cabe mais a nós esse tratamento, não é Ester? Me dá um branco. Não sei o que dizer a respeito disso, apenas aceno um sim para ele. Murat me dá um novo sorriso, estremeço inteirinha e me perco dentro de seus olhos negros. Sinto como se minha mente tivesse sido roubada e eu perdesse a capacidade de reagir ou de pensar. Não sei quanto tempo se passou entre nós até que ouço Murat dizer: —Pode ir. Pisco caindo na realidade, aceno com a cabeça e saio de sua presença. Mas a imagem dele fica piscando no meu cérebro e fico revoltada comigo mesma por ele mexer tanto comigo. Calma! Isso passará é só você se acostumar com esse deus grego, ou melhor, turco. Logo você o olhará como se ele fosse um homem comum. Entro na cozinha, Norma me aponta as panelas. —Bem, vou me recolher. A limpeza das panelas e pratos são por sua conta. Daqui a pouco vai até a sala de jantar para verificar se ele terminou e serve a sobremesa. E boa sorte. Espero que Murat goste. Deus! Ainda tem a sobremesa. Assinto para ela e vou em direção as panelas e as começo lavar. O tempo passa. Escuto atrás de mim uma limpada de garganta. Deus! A sobremesa! Eu giro meu corpo e dou com Murat na cozinha. Ele está encostado no arco da entrada da cozinha, com o braço cruzado e as pernas cruzadas. —E Norma? —Ela...já se recolheu. Ele se ergue e vem na minha direção. Meu corpo se arrepia inteirinho com a sua figura imponente na cozinha. —Ela te falou que sou o formigão dessa casa? Que adoro um doce? Eu aperto meus lábios para não rir, mas não consigo e lhe dou um sorriso nervoso. —Não, não senhor. Perdoe-me, eu me perdi no tempo lavando essas panelas. Vá até a sala de jantar e eu sirvo a sobremesa para o Senhor. Seu olhar se intensifica no meu rosto e ele sorri para mim e sem tirar os olhos dos meus arrasta uma cadeira e se senta em frente a grande mesa da cozinha, como se quisesse sentir minha reação ante a isso. —Pode servir aqui mesmo. —Ele diz com um sorriso estranho, como se tivesse algo por trás de seu sorriso. —Aqui? —Por um momento me sinto atordoada e desconfortável com ele se sentando no meio da cozinha e me olhando. Murat abre mais o sorriso. —Aqui. Por que não? Tem medo de mim, Ester? —Medo? Não, senhor. —Sem esse senhor, por favor. Só Murat. Todos aqui me chamam pelo nome. E não cabe mais a nós esse tratamento depois de tudo que vivemos. Parece que adora ser lembrada disso. Deus! Que odioso! —Sim, senhor. Quer dizer não senhor! Murat. Ele se recosta na cadeira rindo de me ver tão atrapalhada. Ele me olha mais à vontade do que nunca, me avaliando com um sorrisinho de canto no rosto. Deus! Desvio meus olhos dos dele e vou até a geladeira e retiro o pequeno pudim, que era para ser um manjar branco se houvesse ameixa com calda. Coloco em frente a ele. Murat passa os olhos pela sobremesa e dá um sorriso. —Foi você que fez? —Sim, eu mesma. —Como se chama? —Ele pergunta, seus olhos fixos nos meus. —Manjar branco. Ele deveria ser servido com ameixa, mas Norma me disse que o senhor não gosta.
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