Capitulo 4

2688 Words
Nas aulas da faculdade, o olhar daquele moreno me marcava, buscava-me, cercava-me e eu fugia como um rato foge do gato, eu queria distância daquele olhar, daquele desejo, eu necessitava renascer, eu precisava acreditar em mim, o medo não podia me vencer. Os olhos dele eram marcantes, mas eu já tinha marcas no meu corpo que me bastavam, que eu não conseguia remover e minha busca era apenas para esquecer meu passado, o mantra que o Ricardo repetia parecia ser verdade. Eu sentia que meu corpo era daquele monstro e que estava marcada para sempre pelos meus pecados com aquele homem perverso. Era meu primeiro final de semana na nova cidade, o Sr. Colis e a tia Carla insistiram para que eu saísse de casa para conhecer a cidade onde estávamos morando. Eu queria ficar no meu quarto, estudando o que tinha aprendido na faculdade, além de pesquisar sobre o trabalho de anatomia que precisava apresentar, afinal, minha dupla não havia aparecido naquela primeira semana de aula e eu precisava iniciar o trabalho sozinha. Contrariada, porém, obedecendo ao pedido do Sr. Colis e da tia Carla, fomos à praia em frente à nossa casa, o lugar era lindo, tranquilo e me transmitia paz. Eu estava recomeçando e o sal do mar pairava naquela imensidão impregnando o meu corpo tentando cicatrizar minhas feridas que apenas eu enxergava, porque elas doíam diariamente, latejavam me lembrando, sem piedade, do passado que eu tentava esconder. Era domingo à noite quando o Sr. Colis pediu uma pizza para jantarmos. Nós três estávamos sentados na mesa e meu olhar triste vencia os olhares entusiasmados do Sr. Colis e da tia Carla, eles tinham entusiasmo para o recomeço, eles tinham apostado no meu renascimento. O Sr. Colis, tentando quebrar o clima que estava na mesa, falou: — Minha menina, você gostou do nosso primeiro final de semana? Sabendo que eu precisava dar rumo à conversa em respeito àquele amor que eles sentiam por mim, eu respondi: — Foi divertido! Voltei meu pensamento para as boas lembranças que tínhamos conquistado naquele final de semana e terminei: — A praia é linda! A maresia é refrescante, limpa a alma. A tia Carla tentou impedir o rumo que a conversa tomaria: — Eu gostei mesmo foi do restaurante onde almoçamos. Aquele camarão estava divino. O Colis comeu dois pratos. Juntas, rimos da gula do Sr. Colis e ele nos interrompeu: — Esta cidade é encantadora! Preciso levar vocês em mais lugares que descobri quando fiquei explorando por aí. Ele voltou o olhar para mim e, com uma voz de conforto, me disse: — Nossa casa foi escolhida de frente para o mar para você olhar para ele e todos os dias se sentir purificada, limpa e energizada. Ele tinha razão. Aquele lugar me dava energia para que eu recomeçasse. Fiquei ali retribuindo o olhar de amor que ele tinha por mim, e a tia Carla continuou: — Então você deveria estar mais feliz! Viemos para esta cidade para que você busque sua felicidade, que você esqueça o passado, que construa seu futuro com o presente cheio de energias positivas. Eles tinham razão! — É que as lembranças vêm o tempo inteiro. Sinto falta da Alice no meu ventre, sinto-me suja e impura, às vezes, sinto que não vou conseguir reconstruir minha vida. O Sr. Colis colocou um pedaço de pizza no meu prato e continuou: — Somos sua família agora! Estamos com você, acreditamos em você, mas apenas você pode querer continuar. A medicina irá te ajudar a salvar outras Alices, outras Larissas, outras Estelas. Ele respirou fundo, sabendo que a conversa tinha tomado um rumo sem volta, teríamos que falar do meu passado e continuou: — Se permita e nos permita te ver feliz, nós passamos toda a nossa vida vivendo para isso, não nos decepcione. Ele tinha razão, eles eram a minha família, não só hoje, como sempre. Meus pais não faziam falta para mim porque os meus verdadeiros pais estavam ali na minha frente, pena que descobri isso tão tarde. Embora meus pais dissessem que eles estavam querendo apenas ser pagos, eu acreditava que eles me amavam, eu sentia que eles me amavam. Eu tinha tanta ânsia de descobrir o amor verdadeiro, quando, na verdade, sempre tive esse amor na minha casa. Eu tinha o dever de não os decepcionar, eu tinha o dever de superar, de atender todas às expectativas das últimas pessoas que acreditavam em mim. Eu, com o coração esperançoso, resolvi dar fim àquele sentimento de tristeza, eu precisava ser forte, então parti a pizza que o Sr. Colis tinha colocado no meu prato e a coloquei na boca, não apenas como comida, aquilo era uma metáfora do que eu estava vivendo, o Sr. Colis tinha me dado outra chance de viver algo novo, algo que ele tinha procurado para mim por meses, para que fosse o melhor e eu precisava experimentar provar, aprovar e repetir. — Essa pizza com massa fininha é incrível, a melhor que já comi na vida, o senhor escolheu bem! Ele entendeu meu recado, sorriu, e a tia Carla finalizou minha metáfora: — Ele busca o melhor para você desde que você nasceu. Aquela conversa acendeu minha esperança e me deu mais forças para viver e buscar a felicidade. Todo o final de semana tinha sido para me mostrar que eles confiavam em mim e que eu era capaz. Eles tinham percebido minha tristeza após o primeiro dia de aula, que eu tentava esconder chegando atrasada nas aulas, trancando- me no quarto para tentar estudar o que minha concentração não deixava. Meus verdadeiros pais eram incríveis e a maresia que eles me apresentaram estava funcionando, estava cicatrizando minhas feridas. Era minha segunda semana de aula, eu havia dormido melhor, ido mais disposta à faculdade, eu estava determinada a conseguir viver bem. Cheguei à sala de aula cedo antes de todos, diferente da semana que havia passado. O tempo que morei no sítio fez com que eu tivesse o hábito de acordar cedo, diferente daquela cidade que parecia ferver mais tarde. À noite, a cidade parecia que tinha vida e eu acompanhava da janela do meu quarto as luzes dos bares, dos celulares, dos carros que passavam ali enlouquecidos por diversão e cheios de vida. Fiquei ali sentada lendo alguns artigos de obstetrícia de risco que tinha baixado no meu celular, eu queria muito salvar mais “Alices”. O barulho da sala de aula não me incomodava, eu estava muito concentrada, fiquei ali lendo com a cabeça baixa até que um cheiro invadiu a sala, entrou sem pedir permissão no meu nariz e na minha cabeça, interrompendo minha concentração. Ele chegou, sentou-se atrás de mim e eu consegui rastreá-lo sem precisar olhar, eu sabia o ponto exato em que ele estava, a energia dele me atraía e o cheiro dele me hipnotizava. Era a primeira vez que nos sentávamos próximos um do outro. Ele sentado ali atrás de mim não permitiria que eu o olhasse sem que ele percebesse, eu precisaria passar as aulas ali sentindo todos os arrepios que ele me causava sem conseguir fugir, lutar contra meu desejo. Olhei para a sala à procura de outra cadeira, a cadeira que a Paula Assunção tinha deixado vazia, mas não a achei e senti um alívio em lembrar que finalmente conheceria minha dupla de trabalho, mas também um desespero porque eu não tinha saída, para continuar o meu objetivo de renascimento eu precisava continuar na sala e me tornar a obstetra de partos de risco para salvar mais Alices, eu não poderia me levantar da cadeira. A aula começou e eu não conseguia me concentrar no que a professora explicava, o cheiro dele tirava minha concentração, eu conseguia sentir o hálito quente que ele exalava pertinho da minha nuca que estava desprotegida com meu cabelo curto. O olhar dele me incomodava, ele buscava que eu retribuísse, que eu cedesse, que o olhasse, que mostrasse que eu o desejava com verdade e transparência. Mas eu resisti, resisti durante as aulas, resisti durante os intervalos e me mantive ali sentada, olhando para qualquer lugar que ele não estivesse. Faltava pouco para finalizar a aula, ele estava inquieto e os pés dele balançavam minha cadeira insistentemente, ele queria chamar minha atenção, ele queria ser correspondido. Então, ele, aproximando sua boca do meu pescoço para que eu sentisse hálito quente queimar meu pescoço, falou bem baixinho: — Morena, sua dupla chegou. Infelizmente não vou ter o prazer de dividir conhecimento com você nesse trabalho de anatomia. Eu me arrepiei com aquele ardor, o desejo estava no meu corpo, nos meus movimentos imperceptíveis, no levantar dos meus pelos e, sem conseguir resistir àquela última investida dele, eu respondi virando da cadeira e fixando meus olhos que estavam com fome há horas daqueles olhos tão marcantes: — Você não precisa balançar minha cadeira a aula inteira para dizer só isso. Você está incomodando, pode parar? Ele sorriu com minha tentativa de mudar o assunto, de não corresponder àquele desejo que sentíamos mesmo sem nos conhecer e sem explicação. Ele sorriu porque eu tinha cedido, eu tinha o correspondido sem perceber, ele sorriu de felicidade. — Apenas o balançado te incomodou? Eu fiquei sem saber o que responder e fiquei calada observando um olhar que solicitava resposta correta, solicitava verdade, solicitava meu desejo. A aula acabou e eu virei meu corpo de volta para frente da sala. Comecei a olhar todos na sala em busca de quem seria a Paula Assunção, aquela resistência ao desejo me tinha feito esquecer que a Paula estava ali durante todo o tempo. Ele percebeu minha procura e novamente sussurrou e com ironia, antes de se levantar da cadeira para ir embora: — Uma pena que te incomodei só com o balançado da cadeira, mas como você se concentrou muito nas aulas, não deve ter percebido que a Paula é aquela ruiva que está sentada na terceira cadeira da quarta fila. Vejo-te amanhã, morena, e espero te incomodar mais. Esperei-o se levantar e sair e em seguida fui buscar a pista que ele tinha me dado, então encontrei uma menina linda com cabelos ruivos, alta, esguia com muitas sardas no rosto. Ela estava organizando seu material e tinha uma expressão de cansaço e preocupação, então me apressei para pegá-la ainda na sala e falar que precisávamos terminar o trabalho juntas. Era a primeira vez que tentava fazer amizades depois da minha decepção com a Estela, mas eu precisava renascer e precisava também de novos amigos. Tomei coragem, me levantei da cadeira e enquanto a Paula terminava de se organizar, perguntei com tom de vergonha: — Paula Assunção? Ela levantou o rosto, sorrindo, olhou-me dos pés à cabeça e com muita simpatia, respondeu: — Oi, pode me chamar de Paulinha. Ela era simpática e seu rosto de preocupação tinha ido embora, ela estava ali de sorriso aberto para novas amizades. — Oi, me chamo Larissa. Eu vim falar com você porque, na aula passada de Anatomia, a professora determinou que formássemos dupla e apresentássemos um trabalho juntas ainda esta semana. — Meu Deus, Larissa, hoje é meu primeiro dia de aula, eu não sabia, como resolvemos isso? Eu passei a última semana toda trabalhando por experiência no bar do lado para garantir meu emprego. Seu rosto cheio de sardinhas ficou tomado pela preocupação, ela havia faltado à aula para trabalhar. O sotaque dela, diferente da maioria daquela cidade, não escondia que ela não era daquele lugar, assim como eu. — Então, como o trabalho era para apresentar esta semana, eu iniciei a pesquisa, falta pouco para terminar. Vamos conseguir apresentar, fica tranquila. Pela primeira vez, eu tranquilizava alguém com minhas palavras, pela primeira vez, eu mostrava forças para alguém. Nossa amizade tinha começado bem. Ela se levantou da cadeira e me deu um abraço, sugerindo: — Hoje eu não consigo parar para fazer essa pesquisa, porque vou assinar meu contrato de trabalho, mas podemos nos reunir amanhã após a aula e, se necessário, podemos terminar à noite, quando eu voltar do bar. Amanhã meu expediente é reduzido. Eu não sabia do passado da Paula, ou melhor, Paulinha, mas sabia que ela tinha uma carga forte, era notório que suas sardinhas no rosto carregavam muito esforço e sonho para estar ali na faculdade. Eu não sabia se poderia confiar em alguém tão cedo, mas precisava tentar e ela aparentava valer a pena. Eu a respondi com um sorriso no rosto, balançando a cabeça com o movimento de sim. Ela finalizou: — Então, até amanhã, dupla. Posso te chamar de Lari? Ela queria proximidade e resolveu descontrair me chamando por um apelido carinhoso que me surpreendeu, pois era um apelido que ninguém havia me chamado antes. Mais uma vez, ela demonstrava que eu estava no caminho certo e aquela amizade tinha tudo para seguir em frente no meu recomeço. Eu respondi, sorrindo e retribuindo aquela simpatia: — Sim, Paulinha! Entrei no carro, sorrindo, diferente dos outros dias que tinha saído da faculdade. Eu estava contente em estar seguindo em frente, de ter feito uma amiga, o Sr. Colis percebeu: — Vejo que nosso final de semana serviu para que você voltasse a sorrir. Acho que vou levar mais camarão e pizza para você. — Talvez tenha sido a maresia da praia ou o ritmo desta cidade que nos embala. Sorrimos juntos e ele sabia a que eu estava me referindo. Pela primeira vez, eu cogitava a possibilidade de ser curada da doença “Ricardo”, curada do meu pecado. — Eu vejo que seu coração está embalado por algum novo amor. Eu congelei, ele me fez lembrar o cheiro, o hálito, a voz e o olhar do moreno sedutor. Estava tão animada com minha nova amizade, que havia me esquecido momentaneamente das horas que passei sendo torturada pelo desejo. Engoli seco e falei: — Pare com isso, eu nunca mais vou amar outro homem! Sem chances! Estou feliz com uma amiga que fiz, conheci finalmente minha dupla, ela parece ser uma pessoa de boa índole. O Sr. Colis, sem mudar o tom de voz, disse: — Minha menina, não diga isso, até porque você não conheceu o amor verdadeiro, você se deixou levar pelo desejo de mudança, de ser amada, de ser reconhecida, não confunda isso com amor verdadeiro. Ele tossiu, como se fosse falar de alguém, da sua experiência e disse: — Amor verdadeiro tem como base o respeito, a cumplicidade e o cuidado. Ele te deixa livre para voar para onde quiser, mas você sente a necessidade de pousar ali juntinho dele. Você tem liberdade, você é admirado! O amor é puro! Você já sentiu algo assim? Ele estava certo, o desejo pelo Ricardo não era puro, ele gerava uma adrenalina dependente, diferente do que estava acostumada com a minha rotina sem emoções. Ele era bonito e chamava a atenção de todos, fazendo com que as pessoas prestassem atenção em mim, ele também me elogiava, fazia-me rainha, diferente dos meus pais que pouco ligavam para mim, ele me fazia sentir importante. Com ele, eu não me sentia abandonada. Ele era como uma maconha para mim, causava-me momentos bons e eu tinha dependência de sentir aquele desejo, aquele pecado que percorria no meu sangue e me trazia momentaneamente prazer. Ele não me respeitou, ele não cuidou de mim, ele não era meu cúmplice e muito menos compartilhava comigo o seu verdadeiro eu. Ele me fantasiava, ele trilhou o meu plano de execução sem piedade. Eu não tinha vontade de estar ali livremente junto a ele, eu apenas tinha vontade de sentir o que minha rotina e meus pais me negavam todos os dias, eu tinha desejo de ser correspondida. Em resposta ao que o Sr. Colis havia me dito, eu resolvi ousar, surpreender e, principalmente, entender quem tanto me entendia: — É isso que você sente por tia Carla? Ele não me respondeu, ele se arrependeu de ter se exposto tanto, apenas aumentou o som do rádio que tocava um rock dos anos 80. Mas ali, naquele silêncio afirmativo, eu tive a certeza de que eles se amavam verdadeiramente.
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