Tudo mudou

1174 Words
Uma semana havia se passado desde que Rafael recebeu o diagnóstico do Dr. Silva, e sua condição permanecia inalterada. Ele ainda estava envolto na escuridão impenetrável que havia se tornado sua realidade, e, a cada dia, sua frustração crescia. Se antes ele já era conhecido por sua frieza e autoridade implacável, agora, essas características haviam se exacerbado. Rafael se tornara mais c***l, mais amargo, mais distante. Era como se a cegueira estivesse alimentando algo sombrio dentro dele, transformando-o em uma versão ainda mais calculista e insensível de si mesmo. A notícia de sua verdadeira condição, no entanto, havia sido cuidadosamente abafada. Ninguém fora do círculo íntimo sabia da extensão do seu estado. Para o mundo exterior, Rafael havia apenas fraturado o fêmur no acidente, o que justificava sua ausência temporária dos holofotes e da diretoria da empresa. A história oficial era de que ele estava se recuperando em sua cobertura de dois andares em Manhattan, longe dos olhares curiosos e da imprensa. Dentro de casa, mudanças haviam sido feitas para acomodar sua nova realidade. Seu quarto, antes localizado no andar superior, foi transferido para o térreo, logo ao lado de seu escritório. A antiga antessala, que antes servia como uma área de recepção, havia sido completamente transformada em um quarto confortável e altamente funcional. O espaço estava equipado com tudo o que Rafael poderia precisar: uma cama ajustável, monitores de saúde, dispositivos médicos e até uma série de equipamentos que ele poderia usar para se comunicar diretamente com a empresa. Ele não se importava de estar fora dos olhos do público; na verdade, gostava da ideia de controlar tudo à distância, longe das expectativas dos outros. A manhã de sua alta chegou, e Renato e Douglas, seus amigos de longa data, foram buscá-lo no hospital. Eles eram os poucos que sabiam da verdadeira extensão de sua condição. Ao entrarem no quarto de hospital, ambos notaram imediatamente a expressão ainda mais dura no rosto de Rafael. Seus olhos, embora abertos, não viam nada. A cegueira parecia ter acentuado o semblante severo que ele carregava. Renato foi o primeiro a falar, tentando aliviar o ambiente com um tom leve: "Finalmente, hein? Você já estava monopolizando o quarto mais caro do hospital por muito tempo. Aposto que eles estão felizes de te ver fora daqui." Rafael não reagiu de imediato. Sua mão apertava a lateral da cadeira de rodas, como se estivesse descontando toda a sua frustração naquele gesto: "Eu teria preferido ficar aqui mais tempo, se significasse que eu poderia voltar a enxergar", ele respondeu secamente, o tom de voz deixando claro que o humor de Renato não tinha surtido efeito. Douglas, que empurrava a cadeira de rodas, também tentou descontrair: "Ah, vamos lá, Rafael. Sabemos que é uma situação difícil, mas ficar se martirizando não vai ajudar em nada. Além disso, ainda somos nós que temos que te carregar pra lá e pra cá. Alguma vantagem você tem." Rafael soltou um leve suspiro, que era mais de exasperação do que de qualquer outra coisa. Ele havia perdido a paciência com quase tudo e todos ao seu redor. O tempo não havia suavizado sua raiva, apenas a afiado. A cegueira, que no início parecia ser temporária, estava começando a parecer uma maldição perpétua. Enquanto Renato e Douglas empurravam sua cadeira pelos corredores do hospital, ambos tentaram manter a conversa leve, falando sobre assuntos triviais, como se tentassem distrair Rafael do peso de sua própria condição. Eles mencionaram negócios, mulheres e até mesmo esportes, na esperança de arrancar qualquer reação que não fosse frustração. Mas Rafael, envolto em sua escuridão e em seus próprios pensamentos sombrios, apenas ouvia, sem participar muito. No fundo, ele sabia que seus amigos estavam tentando ajudá-lo, mas nada parecia ter efeito. O simples fato de que ainda estava cego o corroía por dentro. Ele, que sempre fora um homem de controle absoluto, agora estava preso em uma situação que não podia dominar. Tudo parecia escapar de suas mãos, e essa impotência era o que mais o atormentava. Chegando na garagem, Renato fez uma última tentativa de arrancar algum humor do amigo: "Sabe, eu ouvi dizer que as enfermeiras ficaram tristes com sua alta, Rafael. Acho que você deixou uma legião de corações partidos por aqui." Rafael, no entanto, apenas bufou, ignorando completamente a tentativa de humor: "O que eu deixo pra trás não me importa mais", disse ele, sua voz fria como gelo, "Tenho outras coisas em mente." No carro, o silêncio se instalou por alguns minutos, e Rafael afundou ainda mais em seus pensamentos. Ele sabia que não podia permitir que essa situação o quebrasse. Era o CEO de um dos maiores conglomerados do mundo, e ser cego não mudava isso. Ele continuaria governando sua empresa com punhos de ferro, custasse o que custasse. E agora, com a perna quebrada e engessada por três meses, tinha uma excelente desculpa para se manter afastado de reuniões presenciais e outros compromissos. Trabalharia de casa, protegido de olhares curiosos e comentários maliciosos. Mas ele também sabia que precisava de alguém ao seu lado. Não apenas uma assistente qualquer, mas alguém de extrema confiança, que pudesse ser seus olhos e ajudá-lo em qualquer emergência. Lucia, sua assistente anterior, não servia mais. Logo entraria em licença maternidade, e Rafael precisava de alguém imediatamente. Enquanto o carro percorria as ruas movimentadas de Manhattan em direção à sua cobertura, Rafael pensava em como encontraria essa pessoa. Ela teria que ser excepcional, discreta, inteligente o suficiente para lidar com todos os aspectos administrativos, mas também com habilidades médicas. Ele sabia que, cego, estava vulnerável a acidentes, e precisaria de alguém que pudesse intervir rapidamente se algo desse errado. "Ela precisa ser uma enfermeira", pensou Rafael, enquanto passava a mão pelo gesso da perna. "Mas também precisa ser muito mais do que isso. Ela precisa entender de negócios, de administração… e, acima de tudo, ser discreta. Não posso me dar ao luxo de confiar em alguém que não esteja à altura." Rafael se afundou ainda mais no banco do carro, enquanto os sons da cidade o cercavam. Manhattan estava tão viva quanto sempre, mas, para ele, tudo era apenas um borrão de sons indistintos. O mundo lá fora continuava a girar, mas ele, dentro de sua mente e de sua escuridão, planejava o próximo passo. Precisava encontrar aquela mulher perfeita, aquele tesouro em forma de pessoa que o ajudaria a manter o controle enquanto ele estivesse nessa prisão de escuridão. Quando finalmente chegaram à sua cobertura, Renato e Douglas o ajudaram a sair do carro e empurraram sua cadeira de rodas até o elevador. Nenhum dos dois comentou sobre as mudanças visíveis na casa. O andar de baixo, que antes era composto por salas de estar e áreas de recepção, agora estava adaptado para sua nova realidade. Eles sabiam que qualquer comentário seria recebido com indiferença ou irritação, então optaram por continuar em silêncio, ajudando Rafael a se acomodar em seu novo quarto. Ao entrar, Rafael sentiu o cheiro familiar de sua cobertura, mas tudo parecia diferente. Tudo havia mudado.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD