No dia seguinte acordei com vontade de voltar a dormir. Tomei um banho frio para despertar o corpo e a mente. Vesti uma roupa de corrida, calcei meus tênis e fui tomar café.
— Bom dia — digo.
— Bom dia — meu pai responde.
— Bom dia querida, como foi a festa? —Minha mãe pergunta.
— Não foi uma festa. Fomos pra um bar aqui perto.
— Ah, mas como foi?
— Legal. Tentei juntar a Fernanda com o Miguel mas não deu muito certo.
— Quem é Fernanda?
— Minha nova amiga. Ela é bolsista lá na escola.
— Bolsista?
Reviro os olhos.
— Onde ela mora? — Meu pai perguntou.
— No Cantagalo.
— Sofia você não está andando em favelas né? — Até parece que esse tom de preocupação dela me engana, é só preconceito mesmo.
— Nós nos preocupamos com você, esses lugares são perigosos — meu pai diz.
— A única coisa perigosa é o preconceito de vocês — me levanto— melhor eu sair, pode ser contagioso.
— Sofia! — Meu pai grita.
— A propósito, a avó dela está muito doente, em fase terminal. E é a única pessoa que ela tem no mundo.
Depois de gritar irritada saí e fui correr no calçadão. Infelizmente eu tinha deixado a carteira em casa, então não podia comprar nem uma água. Depois de uns quarenta minutos voltei para casa pingando a suor, meus pais graças a Deus já tinham ido trabalhar. Tomei outro banho e vesti uma roupa qualquer, então fui matar a fome que estava me matando.
— Oi Rosa — eu digo sorrindo.
— Oi querida, o que vai querer?
— Qualquer coisa.
Ela riu e me serviu um crepe de presunto e suco de abacaxi. Depois de comer fui fazer meu trabalho de química, onde eu teria que apresentar uma experiência qualquer, então optei por algo simples, joguei permanganato de potássio em 40 ml de água e depois coloquei 20 ml de vinagre e 20 de água oxigenada. A água que havia ficado roxa pelo permanganato voltou a ser transparente. Anotei a explicação e decidi ligar para o Miguel. Sua voz de ressaca era inconfundível.
— Deus do céu, você foi em um karaokê?— Pergunto rindo.
— Engraçadinha, o que tu quer?
— Nada, só queria ouvir sua voz princesa.
— Vai te catar Sofia.
— Só queria saber o que tu acha da Fernanda...
— Ela é legal.
— Só?
— E bonita.
— Só?
— Aonde você quer chegar?
— A lugar nenhum. Pode voltar a dormir princesa, beijos.
— Tchau sua doida.
Desliguei e fiquei sem saber o que fazer. Sou meio hiperativa. Resolvi ir comer um j**a no shopping.
Depois de almoçar resolvi comprar algumas roupas, comprei um vestido vermelho maravilhoso e achei outro em preto a cara da Fernanda, então resolvi dar de presente. Comprei dois saltos novos e uma bolsa de couro marrom linda.
Ao invés de ir para minha casa fui direto para a da Fernanda, dessa vez não bloquearam minha passagem e o safado do Pierre piscou pra mim.
Bati no portão e ela não demorou a atender.
— Sofia?
— Oi amore mio.
— Apaixonou comigo, né? — Diz rindo.
— Engraçadinha.
— Entra aí.
— Só um minuto — fui até o carro e peguei a sacola. Então entreguei pra ela.
— O que é isso?
— Bom eu estava sem nada pra fazer então fui almoçar no shopping. Acabei fazendo compras e achei esse vestido a sua cara.
— Não posso aceitar Sof.
— É claro que pode.
Eu entrei em sua casa e ela estava fazendo um bolo na cozinha. Eu não sabia cozinhar, nunca precisei, mas mesmo assim ofereci minha ajuda, ela disse o que eu deveria fazer e eu até que me virei bem.
— E aí, como sua vó está?
— Ah, na mesma. Mas ela gostou de você.
— Também gostei dela.
Passamos o resto da tarde conversando e depois que meus pais me ligaram duas vezes eu fui embora. Quando cheguei em casa eles vieram me enchendo de perguntas, ignorei todas, peguei um pedaço de bolo que a Rosa havia feito e subi para o meu quarto. Comi o bolo enquanto trocava mensagens com o Miguel, ele estava pegando uma p**a qualquer. Tomei um banho e caí na cama.
Acordei na madrugada seguinte com meu celular tocando, me sentei na cama, cocei os olhos e olhei no relógio, eram cinco e quarenta da manhã. Quando olhei no visor e vi o nome da Fernanda me apavorei, atendi no mesmo instante.
— Fernanda? O que houve?
Ela estava soluçando de tanto chorar, senti meu coração apertar.
— Minha avó morreu.
Foi como se todo o ar tivesse sido tirado de mim. Ela não podia estar passando por isso agora.
— O que? Como isso aconteceu?
— Lá pelas onze da noite. O rabecão chegou uma. E o corpo vai ser liberado para o enterro às seis. Passei a madrugada inteira ligando pra resolver as coisas do enterro.
— Por que não me ligou? Eu teria te ajudado.
— Eu não quis incomodar. Mas gostaria que você fosse pro enterro comigo.
— Claro, estou indo pra sua casa agora.
— Obrigada.
— Amigas são pra essas coisas.
Desliguei o telefone e me levantei em um pulo. Coloquei um vestido preto, calcei uma sapatilha também preta, passei uma escova no cabelo e saí pegando meu celular, dinheiro e chave do carro. Quando desci as empregadas estavam começando a fazer o café, passei na cozinha, dei bom dia pra elas e peguei uma torrada. Quando cheguei ao estacionamento já tinha engolido ela. Dirigi igual uma maluca, cheguei na casa da Fernanda em pouco mais de seis minutos.
A porta de sua casa estava lotada de motos e tinha três carros contando com o meu. Bati no portão e quem atendeu foi um cara armado, entrei sem nem cumprimentá-lo e vi a Fernanda abraçada com seu irmão. Quando ela me viu, veio correndo.
— Sofia.
— Oi amiga — sorri fraco e a abracei forte. — Não se preocupe, vou ajudar em tudo que você precisar.
Ela suspirou.
— Vou morar com meu irmão.
— O que?
— Passamos tanto tempo separados. Agora só temos um ao outro.
Olhei para ele, que tinha um sorriso sacana ao me olhar. Será que até quando a vó dele morre esse cara não consegue deixar de ser um i****a? Soltei um suspiro.
— Vamos pro velório?
— Vamos — a voz dela estava fraca, eu não podia imaginar a dor que ela estava sentindo.
Ela foi no meu carro comigo, coloquei na rádio e deixei bem baixo, tocava alguma música internacional suficientemente triste para me fazer chorar.
Chegamos ao cemitério e o corpo estava terminando de ser ajeitado, as últimas flores foram colocadas e os caras saíram, então a Fernanda sentou-se no cantinho e começou a chorar, sentei ao seu lado e fiquei olhando pro chão. As pessoas começaram a aparecer, dando os pêsames para a Fernanda e um sorriso sem graça pra mim.
Nem me dei conta do tempo passando, quando vi o cara do cemitério já estava lá pra levar o caixão, nos levantamos e caminhamos atrás dele. O Pierre e o Menor ajudaram o cara a colocar o caixão ao lado da cova. A Fernanda chorou mais e foi abraçar o irmão, então o cara passou as cordas e apareceram mais dois o ajudando a descer o caixão. Então eles começaram a jogar terra.
Quando olhei novamente pra Fernanda ela estava desmaiada, abafei um grito com a mão e corri até ela, o irmão e um cara que eu não conhecia seguravam ela. Como eles estavam de moto, levaram ela pro banco de trás do meu carro.
— Vamos levar ela pra minha casa, me segue — ele disse e eu assenti com a cabeça.
Que dia louco. Segui ele até o morro, abriram passagem quando o viram e eu subi até o alto da favela, então paramos em frente uma casa branca, estacionei e eles pegaram ela no colo e a levaram pra dentro, fiquei na porta olhando.
— Não vai entrar patricinha? Ninguém vai te morder não — o Pierre disse e eu mordi meu lábio inferior, estava com vergonha e nem sei do que.
Por fim entrei e ele fechou a porta atrás de mim e foi caminhando na minha frente até o quarto, o segui e vi que os meninos já tinham conseguido fazer ela acordar e tomar um pouco de água. Olhei ao redor e o quarto era bem bonito, a casa era grande e arejada.
— E aí, como você está? — Perguntei por perguntar, sua expressão já revelava muita coisa.
— Vou ficar bem. Amanhã eu vou à aula.
— Não se preocupe com aqueles idiotas, eu prometo que se for preciso dou um coro em todos.
— O que? Como assim? — Pierre perguntou.
— É que tem uns...
— Nada! — Ela me interrompeu. A encarei e seu olhar pedia para que eu não contasse.
— Fernanda é melhor me contar ou eu vou descobrir e vai ser pior.
Ela soltou um suspiro.
— O pessoal lá da escola não vai muito com a minha cara por eu ser bolsista.
— Eles mexem contigo? — Ele parecia muito irritado.
— Sim, eles mexem com ela o tempo todo — eu disse.
Ele socou a parede fazendo um quadro cair, meu coração disparou.
— Isso não vai acontecer mais. Eu vou pagar sua escola a partir de agora.
— O que? Não precisa Pierre — ela se levantou da cama.
— Precisa sim. E vou te comprar um carro também, o Menor pode te ensinar a dirigir — ele disse e o olhou pro garoto em seguida, que assentiu com a cabeça.
A Fernanda começou a reclamar e ele saiu do quarto a deixando sozinha.
— Senta amiga — eu puxei ela pra cama — é melhor você não se esforçar muito.
— Eu tô bem — ela sussurrou.
— Quer carona amanhã?
— Sim, obrigada.
— Então eu passo aqui, é melhor eu ir antes que meus pais deem queixa na polícia.
Ela riu e me abraçou, então eu saí do seu quarto e me direcionei a saída.
— Tchau pra vocês — eu disse pros garotos que estavam na sala.
E antes que eu encostasse na porta ela se abriu e alguém entrou. Coloquei a mão no peito assustada.
— p**a que pariu, quase tive um infarto.
— Eu também — o cara disse me olhando da cabeça aos pés — encantado — ele disse, se curvou e beijou minha mão fazendo cena.
— O prazer é todo meu — respondi contracenando com ele.
— Poderia dar-me a honra de saber seu nome?
— É Sofia, meu bom senhor e o seu?
— Pode me chamar de Talibã moça. Aonde vai com tanta pressa?
— Pra casa, antes que meus pais coloquem a polícia atrás de mim, isso não seria legal.
Ele fez uma careta.
— Não mesmo, mas foi um prazer te conhecer — ele beijou minha bochecha e se juntou aos bandidos no sofá.
Saí de lá rindo, gostei desse cara. Então entrei em meu carro e fui direto pra casa.
Só me dei conta de que estava com fome quando cheguei e senti o cheiro de algo no forno, já era meio dia, quando meus pais me viram vieram correndo me abraçar e me apertar.
— Onde você se meteu?
— A avó da minha amiga morreu, eu fui ao velório.
— Podia ter nos avisado, ficamos tão preocupados.
Olhei pra eles com aquela típica expressão: aham Cláudia, senta lá e fui pra cozinha ver o que teria de almoço.
— Está quase pronto Srta.
— Só Sofia, Rosa — respondi rindo.