Capítulo 12

1897 Words
Padre Vergas Eu me aproximei dela, talvez mais do que deveria, mas havia algo em Samantha que me desarmava por completo. Quando ela pegou aquela estatueta, quase como se soubesse que isso poderia me acalmar, me senti vulnerável. Havia algo de reconfortante em falar sobre a história, sobre o que eu conhecia e compreendia, como se, por um breve momento, pudesse fugir do caos dentro de mim. — Sim — repeti, sentindo o peso das minhas próprias palavras. — A história... ela faz o mundo parecer menos caótico, dá uma ordem, uma razão para as coisas. Dá sentido ao presente, sabe? Ela virou a estatueta entre os dedos, seus olhos azuis fixos nela, mas sabia que sua verdadeira atenção estava na minha pessoa. Algo naquela postura dela, casual e ao mesmo tempo intensa, me mantinha preso. O cheiro suave do perfume que ela usava parecia envolver o quarto, deixando o ar mais denso. Era quase sufocante, mas de um jeito que eu não sabia explicar. Quando ela falou, sua voz foi baixa, quase como um sussurro: — Você entende o passado, então... por que tem tanto medo de viver o presente? A pergunta me atingiu em cheio. Por um segundo, meus pensamentos se embaralharam, e eu não sabia como responder. O peso da minha batina, da minha responsabilidade como sacerdote, parecia se multiplicar diante dela. A cima de tudo tentei manter o controle, mas a senhorita Cruz estava tão próxima... e, de certa forma, ela já havia atravessado minhas defesas. — O presente... — comecei, mas minha voz falhou. Meus olhos vagaram pelas prateleiras, pelos livros, pelas estátuas, como se procurassem algo, qualquer coisa, que me salvasse daquele momento. — O presente é... — Olhei para ela, e seus olhos encontraram os meus. — O presente é perigoso. Ela sorriu de canto, um sorriso que parecia conhecer segredos que eu ainda estava descobrindo. — Então, você acha que o passado é seguro? — Não — respondi, sentindo meu coração bater mais rápido. — Mas o passado já está escrito. É imutável. Não há pecado em olhar para trás e aprender com ele... mas o presente? Ele é cheio de tentação. E era exatamente o que essa menina-mulher significava em minha vida. Uma tentação viva. Cada gesto dela, cada palavra, cada sorriso parecia um desafio à minha fé, aos meus votos, ao que acreditava fielmente ser o meu verdadeiro e inquestionávio propósito. E o pior de tudo é que eu sentia que estava perdendo essa batalha. Lentamente. — Você fala como se estivesse prestes a cometer um crime — ela disse, percebi de imediato um toque de instigação em sua voz. — Mas me diga, padre... se fosse tão errado, por que isso parece tão certo? Ela se virou, devolvendo a estatueta com cuidado à prateleira, e por um breve momento, o silêncio tomou conta do quarto. Eu a observei em silêncio, lutando contra o desejo de me aproximar ainda mais. Sabia que deveria me afastar, tinha a plena consciência disso, mas meus pés não se moviam. Estávamos presos em um espaço e tempo que parecia só nosso. — Eu... — comecei, mas nada de concreto parecia sair da minha boca. Ela se virou novamente, me olhando de forma incisiva, esperando algo de mim. Mas eu não sabia o que dizer. Muito menos sabia como dar o que ansiosamente desejava de um ser espiritual, aquele que havia consagrado a vida exclusivamente aos deveres cristãos. — Não precisa responder agora — ela disse, dando um passo à frente. — Mas, em algum momento, o senhor terá que decidir. Não dá para viver entre dois mundos para sempre. Ela estava tão perto agora que eu podia sentir o calor do seu corpo. Sua mão pousou suavemente no meu braço, e por um segundo, todo o meu ser estremeceu com aquele simples toque. Sentia-me um traidor, mas ao mesmo tempo, não conseguia resistir. — Samantha... — murmurei, tentando encontrar alguma força dentro do meu interior. — Não podemos continuar assim. Isso... — apontei para nós dois, para o quarto, para tudo ao nosso redor — ...não deveria estar acontecendo. — Mas está — ela sussurrou, seus olhos nunca deixando os meus. — E você sente isso tanto quanto eu. Fechei os olhos por um segundo, tentando me recompor, mas quando os abri novamente, ela ainda estava ali, próxima, me desafiando a quebrar todas as regras que eu jurara seguir. Samantha Eu estava tão perto que podia sentir o cheiro de incenso misturado ao perfume suave da sua pele. O quarto pequeno parecia se encolher ao nosso redor, como se o mundo inteiro estivesse nos forçando a ficar cada vez mais próximos. Meu corpo agia sozinho, movido por uma vontade que não conseguia explicar, e quando entrelacei meus dedos em volta da sua nuca, senti-o fraquejar. Puxei sua cabeça na minha direção, fazendo com que ele se curvasse, ficando na minha altura. Nossos narizes se roçaram, e o calor da sua respiração tocou a minha pele. Era doce a forma como seus lábios tremiam, como se fosse um menino perdido, vulnerável. Ele, o homem maduro, cheio de convicções e certezas, agora parecia frágil, inocente. Seus lábios trêmulos revelavam uma parte dele que eu nunca esperava encontrar — a pureza que ele ainda carregava. Uma pureza que, no fundo, não queria roubar. Muito menos desviar. Abri um sorriso de canto, roçando de leve o meu nariz contra o dele. Era impossível não notar o quanto ele estava dividido, quanto lutava contra algo tão natural, tão humano. Meu coração acelerava, mas ao mesmo tempo, havia algo reconfortante ali, uma ternura que jamais imaginei sentir por ele. Não era apenas desejo. Era algo mais profundo. Algo que queria preservar, apesar de toda a tentação que nos rodeava. — Namora comigo, Padre? — sussurrei, com a voz leve, quase como um pedido inocente. Eu o senti se encolher um pouco, mas não de medo. Era outra coisa. Uma hesitação misturada a ânsia, uma febre tangível, cercado a uma incerteza que o dominava por completo. Continuei, sem me afastar. — Não precisa ser nada além disso. Sem contato sexua,l... apenas um par de namorados. Alguém em quem confiar, com quem conversar... beijar... e amar. Os olhos dele, por um período, encontraram os meus, mas ele não conseguiu sustentar o olhar. Sentia o peso daquelas palavras, da minha proposta, ali soube que ele iria recusar, porém no meu interior, bem lá no fundo, fantasiei que ele ansiava aceitar. Estava tentado, mais do que jamais admitiria. — Samantha... — ele murmurou, com a voz tensa, quase num fio de lamento. — Isso... não pode acontecer. Eu não posso... Mesmo dizendo isso, havia uma nota contraditoria no seu tom. Eu podia sentir, quase tocar, como se ele estivesse à beira de ceder. Mas, no último instante, ele recuou. Não aceitou. Se negou. No entanto percebia-se o conflito que fervia dentro dele. Soltei sua nuca devagar, deixando que aquela conexão física se desmanchasse. Eu o observei, ele parecia perdido em pensamentos, ainda envolvido pelo calor que acabávamos de compartilhar. Afastei-me um pouco, sentindo o ar frio preencher o espaço entre nós, mas não era desconfortável. Pelo contrário. Havia uma tranquilidade, uma aceitação de que eu havia plantado uma semente no seu coração. Enquanto me afastava, meu olhar percorreu aquela figura alta, forte. Aquele homem de um metro e oitenta, mais velho, meu padre Vergas. Ele era tudo o que eu jamais imaginei que poderia querer. Mas ali estava eu, oferecendo algo que nem mesmo ele sabia que precisava. Mesmo que tenha resistido, o deixei pensando, pois mesmo que fosse minusculo algo havia mudado. Se transformado. Padre Vergas ficou ali, parado, ainda imerso no turbilhão de emoções que haviamos compartilhado, se desenrolando de uma maneira inexplicávelmente tentadora demais para ser contida, presa. E enquanto saía silenciosamente daquele quarto, sentia no fundo do peito que, apesar de tudo, alguma coisa entre nós estava apenas começando. Padre Vergas A proposta dela... aquelas palavras ainda ecoavam na minha mente, como um sussurro constante. Desde o momento em que Samantha me pediu para namorar — de um jeito tão simples e direto, como se fosse a proposta mais natural do mundo para um sacerdote — não conseguia pensar em outra coisa. O toque dos dedos dela em minha nuca, o calor dos nossos corpos tão próximos, o suave roçar dos nossos narizes... tudo estava gravado em mim como se fossem cicatrizes invisíveis. E a pior parte? Não queria que desaparecessem. Passei o restante do dia completamente distraído. Cada vez que tentava me concentrar nas minhas obrigações paroquiais, a imagem dela surgia, nítida como um sonho. Seu respirar suave, o brilho daqueles olhos azuis que pareciam me despir de todas as minhas defesas... eram como fantasmas que me assombravam, mesmo no silêncio da madrugada. Nem o peso da cruz, pendurada na parede do meu quarto, conseguia afastar as lembranças da sua boca colada à minha. Dias se passaram, mas a tormenta dentro de mim só aumentava. Era como se cada vez que tentava afastar a tentação, ela se enraizasse mais fundo. Minhas unhas estavam rentes à carne de tanto que as roía, o peso da ansiedade era sufocante. O pecado estava entranhado em cada fibra do meu ser, e eu não sabia mais como lutar contra ele. A verdade é que não queria lutar. Até que, hoje, sem conseguir mais suportar, fui até a floricultura onde ela trabalhava. O meu coração batia forte enquanto caminhava pelas ruas, sentindo que cada passo me levava direto ao abismo. Quando finalmente a vi, mantive a compostura. Formal. Sério. Nada do que aconteceu entre nós deveria transparecer. — Boa tarde, Samantha — disse-lhe, a voz firme apesar da tempestade interna. — Boa tarde, padre — ela respondeu com um respeito profissional, que me desconcertou pela precisão. Como se nada tivesse acontecido. Encomendei uma dúzia de buquês de rosas vermelhas, tentando manter a conversa no nível mais superficial possível. Sabia que Oziel, meu ajudante, viria buscá-las depois. Eu apreciava a discrição dela. O jeito como agia como se nada entre nós estivesse mudado... e, ao mesmo tempo, me perguntei se ela estava pensando o mesmo que eu. Se, assim como eu, as lembranças a perseguiam também. Antes de sair, Dona Dulce entrou. Uma senhora idosa, conhecida por toda a cidade por sua infinita curiosidade. O tipo de pessoa que sempre sabia mais do que deveria. — Padre, sua bênção! — ela exclamou, juntando as mãos em devoção, com Oziel ao lado. Ele me olhou com respeito, mas depois seu olhar se desviou rapidamente para Samantha, apenas parando quando pigarreei. Senti a tensão crescer dentro de mim. Aquela situação, tão mundana, me fazia temer que qualquer deslize pudesse revelar o que eu tentava desesperadamente esconder. Mas foi o que veio a seguir que me deixou sem saída. — Padre, para que tantas rosas? — perguntou Dona Dulce, seu tom cheio de malícia disfarçada. Fiquei desconcertado, a resposta não veio imediatamente, e meu desconforto parecia transbordar rente a superficie. Mas, para minha surpresa, Samantha interveio com uma calma impressionante. — São para a ornamentação de um casamento — respondeu ela, sem hesitar, me salvando do embaraço. Dona Dulce bateu as mãos de leve, entusiasmada. — Casamento? Que maravilha! Quem vai se casar na nossa cidade? Eu não estou sabendo de nada! A tensão no ar ficou sufocante, insuportavelmente embaraçoso. Um padre não podia mentir.
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