Samantha
Eu conseguia ver a angústia estampada no rosto do padre Vergas. A tensão que ele carregava era visível, especialmente quando Dona Dulce fez aquela pergunta sobre as rosas. Ele não podia mentir, claro. Ele jamais se prestaria a isso, e, por algum motivo, senti a necessidade de intervir, de protegê-lo de qualquer constrangimento.
— Ah, Dona Dulce — comecei, tentando manter meu tom casual e seguro —, essas rosas são para uma futura fiél da paróquia. Ela vai se casar e está vindo morar na cidade logo após o casamento. O padre está ajudando a organizar a decoração, então deixou tudo nas mãos dele. A noiva resolveu de supetão.
Menti. Pela segunda vez no dia, criei uma história para aliviar o fardo do padre. Não sabia para quem eram as flores, mas sentia que ele não estava pronto, ou talvez nem quisesse compartilhar o verdadeiro motivo. Era o mínimo que eu podia fazer, já que ele não parecia capaz de se defender naquele momento.
A expressão no rosto de Dona Dulce mudou para algo entre insatisfação e resignação. Ela não gostava de ficar de fora de nada, especialmente quando se tratava de casamentos ou novos moradores da cidade. Mas, ainda assim, teve que se conformar com a minha explicação, mesmo que visivelmente incomodada por não saber logo de quem se tratava essa "noiva misteriosa".
— Ah, entendi... uma nova membra, hein? Bem, espero que seja alguém que traga boas energias para a cidade — disse ela, mais para si mesma do que para nós.
Senti que o clima entre nós se acalmou, mas o desconforto do padre não passou despercebido. Ele ainda estava tenso, m*l conseguia me encarar, e isso me machucava. Depois de tudo o que aconteceu entre nós, era isso o que eu receberia dele? Nem uma palavra de agradecimento, nem mesmo um olhar?
— Oziel, leve os buquês imediatamente para a igreja — disse o padre, sua voz firme, mas ainda evitava cruzar olhares comigo.
Me sentia invisível ali, e isso me corroía por dentro. O padre sequer me olhou ou reconheceu o que fiz por ele. Era como se tudo aquilo que aconteceu — o beijo, a conexão que senti entre nós — não tivesse significado nada..
Oziel se aproximou, sem fazer perguntas, apenas obedeceu ao pedido do padre, carregando os buquês com cuidado. Enquanto ele saía da loja, a sensação de vazio me invadiu. O que eu esperava? Talvez estivesse sendo boba, esperando demais. Mas, de qualquer forma, a indiferença dele doía.
Olhei para o padre Vergas por um instante, esperando que dissesse algo, qualquer coisa. Porém, ele se manteve calado, formal, sem sequer me agradecer por ter salvado a situação. Depois de tudo, só restava aquele vazio, aquele silêncio frio.
Padre Vergas
Ao sair da floricultura, senti um alívio que beirava o desespero. Ter Samantha tão próxima, rodeada por outras pessoas, era uma tortura. Eu, um homem de fé, sendo corroído por um desejo impuro por uma menina tão jovem. Mas ali estava eu, escapando de uma cilada para cair direto em outra.
Sem sequer olhar ao redor para verificar se estava sendo seguido ou vigiado, entrei apressadamente numa loja de joias. Meu coração batia acelerado enquanto uma simpática vendedora me atendeu com um sorriso gentil.
— Gostaria de ver um anel de compromisso — pedi, a voz saindo mais firme do que esperava. E, claro, eu tinha as medidas. Não era à toa que sempre fui obsessivamente detalhista. Anotei o tamanho mentalmente de cada dedo dela numa ocasião passada, apenas por… precaução, ou ao menos, era o que eu dizia a mim mesmo.
A vendedora aceitou o papel com as medidas sem questionar absolutamente nada. Seu rosto demonstrava profissionalismo, o que me acalmou por um breve momento. Mas então, ela me olhou novamente, aquele olhar que ficou tempo demais, examinando o segundo papel que eu havia entregue. Meu estômago revirou. O suor começou a brotar em minha testa, e tentei disfarçar minha aflição.
— Perdão, acho que cometi um engano. Talvez seja melhor verificar isso depois — tentei puxar o papel de volta, mas a mulher, sorrindo, afastou-o com leveza.
— Não se preocupe, Padre Vergas. Esses detalhes são comuns. Este casal de pombinhos com certeza será abençoado, especialmente com o senhor cuidando de cada passo do compromisso — ela disse, com um brilho ingênuo nos olhos.
Senti meu mundo despencar. Meu coração saltou à garganta, e engoli em seco. O que estava fazendo? O que significava aquilo? A culpa corroía minha alma, o peso de cada pecado crescendo nas sombras da minha mente. Era um anel para Samantha… um símbolo de algo que nunca deveria existir.
— Que Deus me perdoe — murmurei baixinho, desviando o olhar.
Saí da loja de joias com o anel guardado no bolso, o peso daquele pequeno objeto parecia uma âncora afundando minha alma ainda mais nas profundezas do pecado. Cada passo que eu dava parecia ecoar na rua, denunciando o que havia acabado de fazer. O que eu estava planejando? Era insano.
O vento frio da tarde golpeava meu rosto, mas não conseguia me trazer de volta à realidade. As vozes das pessoas ao redor, o barulho da cidade, tudo parecia distante, abafado pelo turbilhão dentro de mim. "Padre Vergas," eu me repreendia mentalmente, "você jurou devoção, pureza, e agora está traindo a própria essência do que significa ser um servo de Deus."
Meus passos me levaram automaticamente para a paróquia. Aquela igreja, que tantas vezes havia sido meu refúgio, agora me parecia um tribunal, e eu, o réu. A porta pesada rangeu ao abrir, e o silêncio lá dentro era quase sufocante. Olhei para o altar, a cruz imponente pendurada no centro, e a culpa apertou ainda mais meu peito. Sentei no primeiro banco, sem forças para continuar em pé.
Fechei os olhos, tentando rezar, buscando algum tipo de conforto divino, mas as palavras não vinham. Minha mente estava cheia de imagens de Samantha — seu sorriso, sua juventude, a inocência que eu estava destruindo em pensamento. Aquele anel no meu bolso queimava como o próprio inferno.
— O que está acontecendo comigo? — sussurrei, perdido. Eu, um homem que sempre seguiu a retidão, agora preso numa armadilha criada por meus próprios desejos.
O som de passos se aproximando me tirou do torpor. O sacristão, um senhor de idade avançada, veio até mim com um semblante preocupado.
— Padre, está tudo bem? O senhor parece... aflito.
Aflito? Aflito era pouco. Eu estava afundando. Mas sorri, um sorriso vazio, e balancei a cabeça.
— Estou bem, só... orando.
Ele assentiu, mas ficou por ali, como se soubesse que algo estava errado. Não podia desabafar, não podia confessar, afinal, quem ouviria a confissão de um padre? Isso era um fardo que deveria carregar sozinho.
Levantei-me abruptamente, incapaz de permanecer naquele ambiente. Era como se as paredes da igreja estivessem se fechando sobre mim. Saí sem dizer mais nada, com o sacristão me observando em silêncio.
Caminhei sem rumo pelas ruas, o coração ainda acelerado. No fundo, sabia que minha alma estava à beira de um precipício, mas não conseguia me libertar daquela obsessão. Samantha. A garota que deveria representar pureza e inocência para mim, agora se tornara um desejo proibido, um pecado secreto que eu alimentava dia após dia.
Samantha
Fechei a floricultura com um suspiro leve, já ansiosa para chegar em casa, quando meus olhos caíram sobre um envelope que havia sido discretamente deixado no balcão. Curiosa, o peguei e, ao ver o que estava escrito — "Encontre-me na igreja à meia-noite" —, meu coração disparou. Não havia dúvidas, aquela caligrafia elegante só podia ser dele, do Padre Vergas. A lembrança do nosso beijo secreto, daquela única demonstração de afeto que ele tinha me dado, reverberava dentro de mim como um eco incessante. Sabia que algo especial estava por vir, e não pude conter a alegria que tomou conta de mim.
Minhas mãos tremiam levemente enquanto guardava o envelope na bolsa, saindo apressada da loja. O caminho até a paróquia era curto, e cada passo parecia sincronizado com as batidas do meu coração. Estava pulsante, acelerado, como se algo inevitável estivesse prestes a acontecer. Ao chegar à igreja, já mergulhada no silêncio da noite, bati levemente nas portas de madeira. Esperei, chamei pelo Padre Vergas, mas nenhum som veio em resposta.
Foi então que a voz dele preencheu o ambiente antes que eu tivesse a chance de abrir as portas. Uma nota celestial, suave e acolhedora, me envolveu de tal maneira que senti meu corpo inteiro relaxar. Era como se ele estivesse me chamando para perto, me fazendo sentir bem-vinda, querida. Com um sorriso tímido, empurrei as portas pesadas da igreja, e o que vi me deixou sem fôlego.
Lá estava ele, parado no meio do corredor, cercado por buquês de rosas vermelhas — as mesmas rosas que eu havia preparado com tanto carinho na floricultura. Elas estavam organizadas em dois lados, doze assentos decorados, seis de cada lado, amarrados por um tecido branco que as unia como uma trilha de flores até ele. Cada detalhe era tão cuidadosamente pensado, tão lindo, que meu coração apertou ainda mais no peito.
Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto enquanto caminhava em sua direção, o sorriso se abrindo involuntariamente. Cada passo era carregado de emoção, de expectativa. Quando finalmente cheguei perto dele, o Padre Vergas, com seu semblante sério — talvez pelo peso do que estava prestes a fazer —, ajoelhou-se diante de mim. Um joelho tocando o chão, o outro dobrado, como se estivesse prestes a me fazer um pedido, daqueles que só vi em filmes.
— Para que isso, padre? — murmurei, boquiaberta, abrindo os braços em confusão e emoção.
Ele não disse nada de imediato, mas sua expressão era grave, quase como se estivesse travando uma batalha interna. Com mãos firmes, ele puxou de dentro da batina uma pequena caixinha — de um bolso que eu nem sabia que existia — e, com a mesma calma, a abriu lentamente, revelando o conteúdo brilhante: um anel de compromisso.
Meu coração quase explodiu quando ele finalmente abriu a boca para falar.
— Samantha — disse ele, com a voz embargada pela emoção, — Eu... gostaria de te pedir oficialmente em namoro.
Aquelas palavras, saídas da boca de um sacerdote, eram um desafio à própria lógica, mas ao mesmo tempo, tão genuínas. Na mente dele, o gesto era o de um cavalheiro pedindo formalmente a dama, uma cerimônia de compromisso que ele acreditava ser necessária. Eu, completamente tomada pelo momento, corri em sua direção, me jogando nele, o abraçando com tanta força que senti seu corpo estremecer. O calor de seu toque, o cheiro suave de sua batina, tudo naquele momento parecia absolutamente perfeito.
Nós dois estávamos ali, agora os dois de joelhos no meio daquela igreja, cercados por flores, entrelaçados no que parecia ser um abraço eterno, compartilhando uma emoção tão profunda que transcendia qualquer pecado ou julgamento.
— Sim, padre — sussurrei em seu ouvido, as lágrimas misturadas com risos. — Sim.
E naquele instante, entre o eco das paredes da igreja e o bater sincronizado de nossos corações, algo mudou. Ele não era mais apenas o Padre Vergas para mim, ele se tornou o meu namorado.