Padre Vergas
A manhã na paroquia começou com o som familiar dos sinos e o aroma suave de incenso que enchia o ar. Mas, para mim, o ritual diário tinha um gosto amargo. As chicotadas da noite anterior ainda ardiam na minha pele, e o tecido da batina parecia abrasivo contra as marcas vermelhas e sensíveis. Cada movimento era um lembrete da batalha interna que havia enfrentado, e o desconforto se tornava uma presença constante.
Durante a missa, me esforçava para manter a compostura. A congregação estava calma, e o jovem ajudante Oziel estava lá, observando com atenção. Havia algo em seu olhar que indicava que ele percebia que eu não estava completamente presente, mas assegurei a ele, com um sorriso que não conseguiu disfarçar a inquietação, que estava tudo bem.
As palavras proferidas pareciam se perder no ar, enquanto a dor das chicotadas era uma constante distração. Tentava focar nas orações e nas necessidades espirituais dos meus paroquianos, das minhas ovelhas, mas a sensação do pesar. do desalento, era um obstáculo significativo.
Após a missa, recebi a visita esperada do cardeal Cristovão. A chegada dele era um evento que sempre aguardava com um misto de ansiedade e receio. O cardeal, era um homem baixinho com cabelos brancos e usava óculos, tinha uma presença distinta, e sua visão era sempre acompanhada de um certo formalismo. Havia algo particularmente desconfortável em ter sua visita tão cedo no início do ano, mas era uma parte inevitável do meu papel.
Cristovão e eu nos dirigimos para a cantina da paróquia, onde a limonada gelada parecia uma deliciosa pausa do calor escaldante. Sentamos, e, enquanto degustamos a bebida refrescante, a conversa fluía de maneira leve, mas com uma constante tensão subjacente. O cardeal estava aqui para avaliar como estava indo a minha colocação sacerdotal nessa distinta cidade do interior.
— Como vai a missão, padre Vergas? — perguntou o cardeal, ajustando os óculos enquanto observava atentamente.
— Está indo bem, cardeal — respondi, tentando não deixar transparecer a preocupação que sentia. — A aceitação tem sido positiva.
Cristovão assentiu, claramente satisfeito com a resposta, mas o calor e a pressão estavam começando a se acumular. Após a limonada, decidimos fazer uma caminhada pelas ruas para sentir a vibração da cidade e ver como os habitantes estavam recebendo o trabalho da paróquia.
Enquanto caminhávamos pelas ruas quentes, não podia deixar de me sentir apreensivo. Havia sempre a possibilidade de que o cardeal estivesse aqui para me transferir para outra cidade, ou até para outro estado, mas Cristovão rapidamente descartou essa ideia, afirmando que estava contente com o progresso e o impacto que eu estava causando.
— Sua missão aqui está indo muito bem — disse ele, com um tom que parecia confirmar a minha esperança. — Não há planos para transferência.
A conversa logo tomou um rumo diferente quando o cardeal demonstrou interesse em visitar a floricultura local. Samantha Cruz trabalhava lá e, embora estivesse ansioso para evitar qualquer situação constrangedora, não havia como evitar. Fui com ele, ciente de que a presença dela poderia trazer à tona sentimentos que eu estava tentando desesperadamente equilibrar.
Quando chegamos à floricultura, Samantha estava envolvida, focada em seu trabalho. O cardeal, sempre observador, ficou radiante ao vê-la, mas seu olhar logo se fixou em mim. Sentia seus olhos pesados, avaliando-me por inteiro, como se estivesse adquirido visão de raio x, ou pior, ganhando o dom da clarividência. Notando a tensão em minha postura, não se deteve.
Cristovão fez um pequeno pigarreio, claramente ciente da dinâmica que estava se desenrolando. Ele me deu um olhar significativo e, com um tom sutil, disse:
— Padre Vergas, lembre-se de vigiar seus pensamentos e ações.
O aviso era claro e direto, o cardeal estava atento ao que estava acontecendo. A situação era desconfortável, e a presença de Samantha, que parecia alheia ao que se passava ao seu redor, era um desafio que eu não estava preparado para enfrentar.
Enquanto me esforçava para manter a compostura, o cardeal continuava a se envolver com a floricultura e sua atmosfera, enquanto lutava internamente para não deixar que meus sentimentos transparecessem.
Samantha
Estava ocupada organizando um buquê de flores quando a campainha da loja soou, sinalizando a chegada de clientes. Levantei os olhos e vi o Padre Vergas entrando na floricultura, acompanhado por um homem de aparência distinta. Ele estava vestido com uma túnica branca e um manto da mesma cor, cobrindo seus ombros.
Padre Vergas parecia hesitante, como se estivesse esperando o momento certo para apresentar o visitante. No entanto, antes que ele pudesse falar, o cardeal avançou com uma agilidade inesperada e se dirigiu diretamente a mim. Sua visão astuta parecia avaliar cada detalhe à medida que ele se aproximava.
— Boa tarde, senhorita, sou o cardeal Cristovão — disse o senhor com um sorriso afável, erguendo sua mão na minha direção.
Olhei diretamente para o Padre Vergas, que fez um gesto discreto, sinalizando que eu deveria beijar a mão do cardeal. Havia um leve sentimento de relutância em mim, mas me inclinei e executei o gesto com um toque de formalidade, tentando esconder meu incômodo, pois esse simples gesto trazia memórias ruins da minha vida anterior.
O cardeal parecia satisfeito com o cumprimento e, com um olhar perspicaz, começou a fazer perguntas.
— Então, minha jovem, você é nova aqui? — perguntou ele, seus olhos examinando-me de maneira inquisitiva.
Havia algo em seu olhar que me fazia sentir que ele estava mais interessado em saber detalhes da minha vida pessoal do que eu estava disposta a compartilhar. Responder a essas perguntas me deixaria desconfortável, portanto hesitei ao tentar encontrar palavras adequadas.
Felizmente, o Padre Vergas percebeu meu embaraço e interveio com uma elegância que, no momento, me pareceu como um alívio.
— Samantha veio para a cidade em busca de emprego e conseguiu — disse o padre com uma voz calma e resoluta. — Não há nada extraordinário nisso.
A resposta de Padre Vergas desviou o foco das perguntas do cardeal, e logo a conversa mudou de direção. O cardeal, com um ar de satisfação, começou a escolher uma dúzia de lírios brancos da loja.
— Estes são para uma pessoa especial para mim — disse ele, enquanto examinava as flores com cuidado.
A mudança de assunto trouxe uma sensação de alívio, então me concentrei em preparar os lírios para que eles fossem embalados adequadamente. Enquanto o cardeal escolhia cuidadosamente as flores, a atmosfera na floricultura parecia voltar à normalidade. O Padre Vergas, observando de perto, parecia aliviado pela conversa ter se desviado para um tópico mais neutro.
Com a nova atenção voltada para as flores e o cardeal, consegui recuperar um pouco da tranquilidade. As perguntas intrusivas do cardeal haviam sido gentilmente desarmadas pela intervenção do Padre Vergas, dessa maneira pude finalmente focar no que eu fazia melhor: cuidar das flores e garantir que tudo estivesse em ordem para os clientes.
Dias depois...
Era uma tarde tranquila na floricultura, o sol lançando seus raios dourados através das janelas. Estava organizando uma nova remessa de flores quando a campainha soou novamente, automaticamente levantei os olhos para ver quem estava entrando. Era Oziel, o jovem ajudante do padre, com um sorriso largo no rosto. Eu o reconheci imediatamente do dia da passagem de ano.
— Olá, Samantha! — ele disse com entusiasmo. — Lembra de mim?
A essa altura, vivendo numa cidade de poucos habitantes todos saberiam meu nome.
Sorri, surpresa com a visita.
— Claro, Oziel. Como você está?
— Bem, obrigado! — respondeu ele, olhando ao redor da loja. — Estava pensando se você gostaria de sair para um café ou algo assim. Acho que seria bom conversarmos á sós, né gatinha? - Piscou ele.
Antes que pudesse responder, uma figura familiar apareceu à porta da floricultura. Era o Padre Vergas, com uma expressão de concentração que imediatamente associei ao seu papel de guia espiritual. Ele parecia ter surgido do nada, e sua presença de relance alterou a atmosfera na loja.
O olhar de Padre Vergas se fixou em Oziel, e na hora pude sentir uma tensão crescente. Sem hesitar, ele avançou e puxou Oziel para a porta da loja com um gesto digamos... agressivo? A campainha soou novamente quando ele o pressionou contra a entrada.
— Padre Vergas, o que está acontecendo? — perguntei, um pouco confusa com a súbita interrupção.
— Oziel — começou o padre, sua voz baixa e firme. — Não é apropriado que você fique dando em cima da moça.
Oziel tentou protestar, mas o padre continuou, sua voz carregada de autoridade.
— Samantha não está interessada em namoricos. Ela veio para a cidade para trabalhar e se estabelecer, não para se envolver em relacionamentos. Você deve se aquietar e se concentrar na santidade. Há coisas mais importantes a se preocupar do que perseguir uma jovem que está aqui para levar uma vida tranquila.
Oziel, visivelmente desconcertado, tentou argumentar, mas as palavras do padre foram implacáveis.
— Pense mais em Deus e no seu papel aqui. A vida espiritual deve ser sua prioridade, não o desejo de formar relacionamentos românticos — disse o padre, sua voz mais suave, mas ainda firme. Soltando-o devagar.
A conversa entre eles foi breve, e logo Oziel se afastou, parecendo frustrado e contrariado. Padre Vergas voltou-se para mim, com um olhar de desculpas misturado com uma determinação firme.
— Desculpe por isso, Samantha. Apenas não quero que você se sinta pressionada ou desconfortável.
Acenei com a cabeça, ainda um pouco surpresa com a intervenção, mas aliviada por não ter que lidar com mais uma situação constrangedora. Padre Vergas deu-me um sorriso reconfortante antes de se afastar, deixando-me para refletir sobre o que acabara de acontecer.
Enquanto voltava ao meu trabalho, a sensação de inquietação se dissipava lentamente. Apesar da intervenção abrupta, estava grata por ter alguém que se preocupava com meu bem-estar. Agora, era hora de seguir em frente e continuar com as tarefas diárias, mantendo o foco nas flores e nas clientes que entravam descontraídas na loja.
- Bem vindas.