Capítulo 21

1827 Words
Continuação… Padre Vergas Chegar à residência de Samantha nessa noite era como cruzar uma fronteira invisível, uma linha tênue entre o que eu sabia que devia evitar e o que meu coração, teimoso e obstinado, ansiava. Depois de nosso abrasamento debaixo daquela árvore, onde as palavras e os toques se transformaram em algo mais profundo, mais visceral, agora estávamos aqui, de volta a um cenário íntimö que ambos conhecíamos tão bem, mas que agora carregava um peso diferente. Ao entrar, tudo parecia carregado de expectativa. O ar estava denso com a tensão que nenhum de nós ousava nomear. As paredes da pequena sala pareciam mais próximas do que antes, quase sufocantes, enquanto nos olhávamos, tensos, sem dizer uma palavra. Cada segundo que passava sem que quebrássemos aquele silêncio fazia meu coração martelar mais forte, mas, ao mesmo tempo, havia algo reconfortante em apenas estar ali, a poucos passos dela. Samantha, sempre tão expressiva, tentava disfarçar o nervosismo, mas seus olhos não conseguiam esconder o turbilhão de emoções. Ela foi a primeira a quebrar o silêncio, sua voz soando baixa, mas firme: — Vou levar as delícias para a cozinha. Acho que precisamos de um cafézinho, não? — disse ela, com um sorriso suave e hesitante. Eu apenas concordei com um leve aceno, sem conseguir dizer nada de imediato. Havia um nó na minha garganta, fruto de tudo o que não estava sendo dito. Observá-la nesse momento era, de certo modo, doloroso e ao mesmo tempo encantador. Samantha, agindo imprevisivelmente meio desajeitada ao andar, mas que mesmo assim não tirava toda a sua doçura, e porque não dizer… fofura. Ela era adorável. Andou para trás, de ré, indo de costas para o outro cômodo com as mãos ocupadas, carregando o que restava das guloseimas que havíamos trazido conosco. O silêncio entre nós, agora entrecortado pelo som suave de seus passos, parecia gritar a profundidade do que ambos sabíamos que estava por vir. Enquanto ela desaparecia pela porta que levava à cozinha, senti um suspiro escapar dos meus lábios. Meu olhar a acompanhou até o último segundo, quando sua figura desapareceu, levando consigo a leveza que ainda restava no ambiente. Ali, sozinho por um momento, não pude evitar refletir sobre o que estávamos prestes a enfrentar. O que compartilhamos debaixo daquela árvore havia sido inevitável, como o encontro de duas almas que, por mais que tentem, não conseguem fugir uma da outra. Mas agora estávamos aqui, numa casa, sozinhos, onde situações mais alarmantes poderiam surgir sem termos a capacidade e a força para manter o controle necessário para que nada aconteça, senão ambos não nos perdoariamos; eu pela sacristia, meu dever e propósito, e ela por querer manter sua pureza intacta. Todavia estávamos cercados por uma espécie de magnetismo que nos empurrava para algo muito maior, algo que ia além de nós. Eu sabia que passaríamos a noite juntos, como havíamos combinado, mas a dimensão desse encontro agora parecia imensa, um precipício para o qual caminhávamos sem olhar para trás. Fechei os olhos por um instante, tentando silenciar os pensamentos que gritavam dentro de mim. O dever, o desejo, a fé, tudo se misturava numa tempestade que não sabia como acalmar. Quando finalmente me movi, respirei fundo, preparando-me para segui-la até a cozinha, onde sabia que mais do que palavras seriam necessárias para enfrentar o que viria a seguir. Samantha O bule com água já estava no fogão, e a chama crepitante era o único som que preenchia o ambiente silencioso. E assim me permiti vagar pelos meus próprios pensamentos enquanto esperava. Meus olhos perderam o foco, e a mente, sem aviso, voltou àquela estrada onde tudo havia acontecido. Os momentos que compartilhamos sob aquela árvore voltavam como uma brisa suave, mas cheia de significado. Fechei os olhos, abraçando meu próprio corpo, como se quisesse recriar aquela sensação. Seus lábios nos meus, a maneira como sua respiração entrecortada me arrebatou, me fazendo sentir tão viva, tão vulnerável, mas de uma maneira boa. Aquela ventania que envolveu a nós dois, ali no meio do nada, me fazia imaginar se aquilo não era mais do que apenas uma coincidência. Talvez, quem sabe, até uma benção divina. Deus, olhando para nós, dois seres solitários, e pensasse: "Por que eles não podem ser um para o outro, se juntos parecem ser tão certos?" Sentia-me desejada, não de um jeito mundano ou superficial, mas de uma maneira honesta, limpa. Perdida nessas memórias, quase consegui sentir novamente o calor dos braços dele em volta de mim, e um sorriso pequeno se formou nos meus lábios. Foi então que a voz grave do Padre Vergas rompeu pela cozinha, me arrancando bruscamente dos meus devaneios. O choque da realidade me fez abrir os olhos rapidamente, desfazendo o abraço que fazia em mim mesma. Em meio à confusão, virei o bule fervente sobre minha mão sem perceber. A água quente escorre com uma velocidade assustadora, e antes que eu pudesse sequer gritar, ele estava ao meu lado. Com uma velocidade e precisão que me deixaram surpresa, ele lançou sua mão grande para o lado, afastando o bule com a parte de trás da mão antes que despejasse ainda mais do liquido quente sobre a minha pele. O impacto foi tão forte que apagou a chama do fogão, e a água derramada fez um chiado alto ao se espalhar sobre a superfície. Mas o que mais me chamou a atenção foi a ardência que explodiu naquela região. O padre sabiamente desligou o gás antes de me acolher. Um calor insuportável percorreu minha pele, e eu me encolhi instintivamente, segurando a mão queimada. Vergas, com um olhar aflito, imediatamente verificou o dano que eu havia sofrido. No entanto, ao olhar para sua mão, vi a marca vermelha que o alumínio fervente havia deixado nele. Ele estava machucado por minha causa. — Está doendo muito? — Sua voz carregava um misto de preocupação e culpa. Ele puxou minha mão com cuidado, verificando a queimadura com olhos atentos. — Eu… eu estou bem — respondi, mas a dor insistia em pulsar, e a visão da pele dele, marcada pelo acidente, fez minha garganta apertar. Ele ignorou a própria queimadura, focando apenas na minha. O toque dele era leve, quase hesitante, mas ainda assim firme. Ele me conduziu até a pia, abrindo a torneira com urgência para que a água fria corresse sobre a minha pele. Enquanto o alívio começava a acalmar a dor, eu olhava para ele, para a sua mão ferida, e me sentia culpada. Ele havia se machucado tentando me proteger, como sempre fazia. Tentei desviar o olhar, mas o silêncio entre nós gritava. Meu coração batia mais rápido, e ao mesmo tempo, havia um sentimento de admiração e de frustração. Como ele podia sempre estar ali para mim, sempre tão disposto a me resgatar, mesmo quando as consequências recaem sobre ele? — E o senhor? Sua mão… — Minha voz saiu mais fraca do que eu gostaria, enquanto olhava para a queimadura dele. Ele balançou a cabeça, minimizando a dor que claramente sentia. — Não se preocupe comigo. Importa-me mais que a senhorita esteja bem — disse ele, com aquela serenidade que me desarma completamente. O olhar que ele me lançou naquele momento, mesmo em meio ao caos e à dor, foi suficiente para me fazer sentir algo mais profundo. E ali, enquanto ele cuidava de mim com tanta dedicação, soube que, por mais que tentássemos lutar contra esse sentimento, por mais que as circunstâncias gritassem o contrário, algo maior nos unia, algo que nem a queimadura mais dolorosa poderia apagar. Padre Vergas Levei Samantha até o quarto para cuidar de sua queimadura, um lugar que antes havia sido o meu, mas agora carregava uma nova identidade, um toque delicado e pessoal. As paredes tingidas de lilás e cinza, talvez as cores favoritas dela, refletiam uma calmaria que contrastava com a tempestade de sentimentos que compartilhamos. O quarto estava diferente, mas ainda carregava uma parte de mim, assim como eu carregava uma parte dela em meu coração. Peguei a pomada e, com toda a suavidade que consegui, comecei a aplicá-la em sua pele ardida. Cada toque era cuidadoso, quase reverente, como se aquela simples ação carregasse o peso de todos os sentimentos que eu não podia estar sempre expressando. A ardência física, aos poucos, cedia ao frescor do medicamento, mas dentro de mim, algo queimava com uma intensidade muito maior. Enquanto passava o creme sobre sua pele delicada, senti uma felicidade interna, uma satisfação quase inexplicável. Estar ali, cuidando dela, vendo aquele rosto de menina mulher, me fazia sentir que não havia outro lugar no mundo onde eu gostaria de estar. Meu olhar repousou sobre ela por mais tempo do que o necessário, admirando suas feições, sua expressão de leve dor misturada com o silêncio. E, naquele momento, percebi o quanto a admirava – mais do que deveria, mais do que eu me permitia. Ela quebrou o silêncio, sua voz suave, mas preocupada: — E a sua mão? O senhor se machucou também, padre. Eu já esperava que a pergunta surgisse novamente, minha Samantha era tão especialmente cuidadosa que sempre dava um jeito de fazer meu corpo ser desarmado por ela, mas a verdade era que a dor física não me importava. — Isso não é nada — respondi, sorrindo de leve enquanto terminava de cuidar da queimadura dela. — A dor de perder a minha namorada por um mês foi um castigo muito maior do que qualquer ferimento físico, dado ou recebido. Suas sobrancelhas se franzem levemente, e ela me olhou com uma mistura de surpresa. No entanto, era a mais pura verdade. A ausência dela havia sido um fardo que eu carreguei como uma cruz pesada, e estar ali, tão próximo novamente, era um alívio para uma alma que já estava sufocada de saudade. Aproximei-me um pouco mais, e nossos olhos se encontraram. Ela estava tão perto, e ainda assim parecia tão longe, como se uma barreira invisível nos separasse. A cada olhar, a cada toque acidental, o meu mundo girava em torno dela. E mesmo com toda a minha devoção à vida religiosa, percebia que algo mais forte, mais humano, nos ligava de maneira inexorável. Terminei de passar a pomada, mas não me afastei. Fiquei ali, ao lado dela, apenas sentindo a presença dela, o calor que vinha daquele quarto que já não era mais o meu, mas que carregava vestígios da minha existência. — A senhorita não imagina o quanto me castigou — confessei, em voz baixa, mais para mim mesmo do que para ela. E naquele instante, percebi que o que mais temia não era a punição de Deus, mas a punição de nunca mais poder tocá-la, de nunca mais sentir sua proximidade, mesmo que por breves momentos. Ela abaixou a cabeça, talvez pensando no peso das minhas palavras, e eu soube que, por mais que tentássemos fugir, esse sentimento que compartilhamos era uma batalha infinita que nenhum de nós estava pronto para perder.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD