Capítulo 3
MAJU NARRANDO
Eu tentei. Juro que tentei.
Depois daquele dia em que vi Rafael – ou pensei ter visto – eu botei na cabeça que ia enterrar aquilo. Deve ter sido cansaço, ressaca, qualquer coisa. Qualquer coisa, menos ele. Eu sabia que ele estava morto. Eu matei ele, né? Então, por que diabös eu estava tão paranóicä ao ponto de ficar assombrada desse jeito?
A semana passou voando, como se o tempo estivesse me empurrando pra frente sem nem me dar tempo de respirar. Trabalhei que nem uma condenada, corri pra cima e pra baixo, advoguei, resolvi problemas do morro, cuidei dos gêmeos... Fiz tudo o que uma mulher-maravilha precisa fazer. E deu certo, ou quase. Porque toda vez que eu baixava a guarda, lá estava ele. Em algum canto da minha visão. No meio da rua, numa sombra qualquer. No espelho retrovisor. Parado. Me olhando.
O pior? Eu piscava, olhava de novo, e não tinha mais nada.
Não contei pra ninguém. Nem pro Fantasma. Como é que eu ia falar uma coisa dessas?
" Amor, tô vendo meu ex-noivo que eu matei por você andando por aí."
Ele ia achar que eu tava surtando. Talvez eu estivesse mesmo. Mas sabe o que era pior? A dúvida. Aquela malditä dúvida que grudava no meu peito e não soltava. "E se..."
Hoje era segunda. Mais uma semana que começava. Eu estava saindo pra ir pro escritório. Um calor infernäl logo de manhã, o sol rachando o asfalto da Rocinha, e eu ali, tentando ajeitar a cara no espelho do carro. Olheiras fundas, mas paciência. Vida que segue. Passei pela barreira e peguei a pista.
Foi quando vi.
Na calçada, perto do ponto de ônibus. Uma silhueta conhecida demais. Mesmo corte de cabelo. Mesmo jeito de ficar parado, mãos no bolso. Meu peito gelou.
Rafael.
Segurei o volante com tanta força que os dedos doíam.
"Não, Maju. Não é ele. Não é."
Pisquei rápido, tentando afastar aquilo. Quando olhei de novo, não tinha mais ninguém.
Maju — Merdä...— murmurei sozinha, respirando fundo e acelerando mais do que devia.
O dia foi um infernö. Minha concentração parecia ter ficado naquela calçada. A cada intervalo entre reuniões, na pausa do café, até no banheiro... lá estava ele. Não em carne e osso, mas na minha cabeça. Às vezes, eu até achava que ouvia a voz dele. Aquela voz grave e manipuladora que eu conhecia tão bem.
O pior era ter que sorrir pras pessoas no escritório, como se nada estivesse acontecendo. A advogada poderosa, a dona da porrä toda... mas, por dentro, eu tava desmoronando. A dúvida me corroía.
Quando cheguei em casa, já era noite. Eu tava esgotada, mas me forcei a erguer o queixo e sorrir. Minha família não merecia minha bagunça.
Na varanda, encontrei Leandro sentado, a camisa aberta, a barriga tanquinho à mostra – o gostoso sabe que é bonito e se exibe mesmo. Tinha uma cerveja na mão e uma expressão de paz, mas o olhar dele... Ah, aquele olhar.
Fantasma — E aí, minha mulher-maravilha? Mais um dia vencido? — A voz dele era tranquila, mas afiada. Ele sentia o cheiro da minha inquietação a quilômetros.
Maju — Mais um. — Fui até ele e me encostei no peito dele. O abraço quente e firme me deu uma sensação de segurança momentânea.
Fantasma — Você tá estranha, Maria Júlia e eu já te falei isso. Tá acontecendo alguma coisa?
Eu sabia que ele ia perguntar. O Fantasma sempre pergunta. Conhece meu tom de voz, meu jeito de andar, até a respiração. Respirei fundo e sorri, disfarçando.
Maju — Não é nada. Tô só cansada. Muito trabalho hoje.
Ele me olhou daquele jeito... olhos estreitos, expressão desconfiada. Leandro não é bobo, mas também sabe respeitar o meu tempo.
Fantasma — Você precisa maneirar, Maju. Desse jeito vai acabar pirando.
Eu ri baixinho, tentando não transparecer o nó na garganta.
Maju — Mulher-maravilha não pira.
Fantasma — Mulher-maravilha é teimosa. Igualzinho aos filhos. — Ele deu um gole na cerveja e fez uma pausa. — Por falar em filho, você não perguntou do Lucas?
Maju — E aí, conversou com ele? — Desviei o olhar. Qualquer assunto que tirasse o foco de mim era bem-vindo.
Leandro riu com um ar de pai orgulhoso e debochado.
Fantasma — Conversei. Dei uma dura nele. Falei que ele ia perder o rumo da vida se continuasse naquela palhaçada.
Maju — E o que ele disse?
Fantasma — Riu na minha cara. — Leandro riu junto. — Depois perguntou se eu queria que ele fosse um santo igual ao pai.
Eu não aguentei e ri também.
Maju — Santo? Logo você, Leandro? Santo de que igreja? Do morro?
Fantasma — Ei, respeito! Falei pra ele que ser santo não é comigo, mas pelo menos ter um mínimo de juízo, ele precisa, né?
Maju — E como você quer que ele tenha juízo se ele é sua cópia?
Ele fez uma cara de convencido, batendo no peito.
Fantasma — Tá reclamando por quê? O moleque é doce que nem o pai. Encanta todo mundo e depois some igual fumaça.
Maju — Encanta mesmo. Igualzinho. — Revirei os olhos. — Por isso que ele vai dar trabalho pra alguma menina por aí.
Fantasma — Trabalho? Só se for trabalho bom. — Leandro gargalhou e me puxou mais pra perto, me envolvendo em seus braços fortes. — Relaxa, Maju. O Lucas tá bem. É só fogo da idade. Hormônios sabe?
Maju - Espero que quando seja a Mirella você leve tão na boa, como está com o Lucas.
Fantasma - Maju na boa, também não força né?
Me aconcheguei no peito dele, rindo, mas por dentro o nó na garganta continuava ali. A paz dele deveria ser a minha. O abraço dele era onde eu queria morar, mas nem mesmo Leandro conseguia afastar o que tava preso dentro da minha cabeça.
De madrugada, o Leandro dormia do meu lado. E eu não conseguia. Os olhos fixos no teto, a respiração presa. O silêncio era ensurdecedor. Às vezes, o barulho do morro chegava baixinho, como um lembrete de que a vida não para nem mesmo à noite.
Fechei os olhos e lá estava ele. O rosto de Rafael.
Como se ele estivesse aqui. Vivo. Me olhando.
Tentei afastar, mas ele voltava. Sempre voltava.
— Você está morta, Maju. Morta de medo... — A voz dele parecia ecoar na minha mente.
"É coisa da sua cabeça", eu repetia mentalmente. Mas e se não fosse? E se Rafael realmente estivesse por perto? E se tivesse voltado de algum jeito pra me cobrar?
Me virei na cama, puxando o lençol até o queixo, o coração acelerado. Leandro roncava baixinho ao meu lado. Ele parecia tão sereno, tão seguro. Se eu falasse alguma coisa, ele ia acreditar? Ou ia achar que eu tava pirando de vez?
Não. Eu não podia contar pra ele. Não agora. Não enquanto eu mesma não soubesse o que era tudo isso.
Respirei fundo e fechei os olhos mais uma vez, tentando encontrar paz no escuro. Mas a verdade é que o passado não morre fácil. E, quando menos se espera, ele volta. Vivo. Pronto pra cobrar a conta.