Capítulo 5
LUCAS NARRANDO
A primeira luz do dia já estava cortando o horizonte quando eu saí do barraco. O morro ainda dormia em silêncio, com um ou outro barulho de cachorro latindo e galös cantando como se alguém fosse ouvir. Meu corpo estava leve, o rosto carregando aquele sorriso satisfeito de quem fez a noite valer a pena.
Passei a mão no cabelo, bagunçando mais do que ajeitando, e respirei fundo o ar frio da manhã. Não vou mentir: eu estava naqueles dias em que tudo parece encaixar. A mulher, uma das moradoras aqui do pedaço, tinha sido exatamente o que eu precisava pra esquecer da vida. Corpo cheio de curvas, sorriso fácil e sem grude — do jeito que eu gosto.
Entrei no carro, liguei o som baixinho e me preparei pra ir pra casa. Só que, no meio do caminho, passei pela quadra e avistei um rosto familiar. Davi estava encostado no balcão do bar, parecendo perdido em pensamentos enquanto mexia num copo d'água — provavelmente porque ainda era cedo demais até pra cerveja.
Dei meia-volta sem pensar duas vezes e estacionei o carro. Uma conversa fiada antes de ir pra cama nunca fazia mäl.
Lucas — Tu madrugou, hein, Davi? — falei assim que me aproximei, puxando uma cadeira.
Ele levantou o rosto, meio surpreso, e deu um sorriso curto.
Davi — E você? Já saiu do plantão? — ele respondeu com uma piscada.
Lucas — Plantão não, meu parceiro. Foi lazer mesmo.
Me joguei na cadeira com aquele ar convencido, fazendo questão de esticar os braços como se a noite tivesse me renovado. Davi entendeu o recado na hora e riu, coçando a barba rala.
Davi — Ah, Lucas... Tu não presta mesmo.
Lucas — Não presto, mas me divirto — retruquei, puxando um copo do balcão e servindo uma dose de whisky. Um ardido pra acordar de vez. — Você tinha que ver, Davi. Mulher gostosa que só. Corpo violão, pele macia... — Fiz um gesto no ar, desenhando curvas invisíveis. — Irresistível.
Davi riu alto, quase cuspindo o que estava bebendo.
Davi — Você não tem jeito mesmo, irmão.
Lucas — É a vida. Não fui eu que inventei as mulheres bonitas.
Ele deu uma risada de canto e balançou a cabeça, o olhar ainda meio perdido. Davi era assim: ria, brincava, mas tinha uma sombra de seriedade sempre por perto. Já eu? Não tinha tempo pra sombra nenhuma.
Lucas — E você? Tá fazendo o quê aqui a essa hora? — perguntei, desviando o assunto pra ele.
Davi — Só vim dar uma caminhada. A cabeça tá cheia.
Lucas — Cheia de quê? — perguntei, mesmo sabendo que Davi era o tipo que só falava o que queria.
Davi — Deixa quieto. Coisa minha.
Lucas — Ah, não vem com essa, não. Tu parece minha irmã quando eu pergunto alguma coisa.
Foi só falar em Mirella que o olhar dele mudou. Não foi muita coisa, mas eu conheço Davi tempo o suficiente pra saber ler até o silêncio dele.
Lucas — Que foi? — perguntei, com uma sobrancelha levantada.
Davi — Nada... É que você tocou no nome dela.
Lucas — E daí? Minha irmã tem nome, não tem? Mirella. Grande coisa.
Ele riu sem graça e desviou o olhar pro balcão, batucando os dedos de leve no vidro. Ali já era o suficiente pra me deixar com a pulga atrás da orelha.
Lucas — Você tá estranho, Davi. Se tem alguma coisa pra falar, pode desembuchar.
Ele hesitou por um segundo, mas acabou soltando.
Davi — É que ... Sei lá. Como é que a Mirella tá?
Lucas — Ué, tá igual sempre. De nariz empinado, respondona e se achando a dona do morro. Por quê?
Davi — Sei lá... você acha que ela tá saindo com alguém? Ou... gostando de alguém?
A pergunta me pegou meio de surpresa. Não porque era impossível — minha irmã era bonita, porrä —, mas porque era o Davi perguntando .
Eu parei por um segundo, tentando entender a intenção por trás da pergunta .
Lucas — Cara, sinceramente? Acho que não. Mirella é outra vibe. Aquela ali parece que só pensa em brigar com o mundo .
Davi riu fraco, ainda batendo os dedos no copo .
Davi — Você acha mesmo?
Lucas — Pior que acho . Olha, minha irmã é cabeça dura pra cäralho . Se ela quiser alguma coisa, ela vai atrás . Mas, até onde eu sei, ela não tem tempo pra esse tipo de coisa, não .
Davi — Hum ...
Lucas — Inclusive, — continuei, apontando pra ele com um meio sorriso — acho que ela ainda é virgëm.
Davi arregalou os olhos, quase engasgando.
Davi — Que isso, Lucas? Tá falando sério?
Lucas — Tô falando sério. Tu acha que algum cara tem coragem de chegar perto dela? Mirella tem o mesmo sangue que eu. E, se for pra ter alguma coisa com alguém, coitado do infeliz que tentar. Vai ter que aturar muita coisa.
Eu ri, mas o Davi não acompanhou. Ficou calado, olhando pro copo como se tivesse encontrado um segredo no fundo dele.
Lucas — Por que tu quer saber disso, hein? Tá interessado? — soltei, só pra provocar.
Ele levantou o olhar devagar, mas não respondeu. Aquilo me fez ficar sério na hora.
Lucas — Davi, se liga. A Mirella é minha irmã. Eu sei que ela tem aquele jeitão dela, mas não arruma confusão, não. Não quero ver você se metendo em problema por causa dela.
Ele respirou fundo, apoiando os cotovelos na mesa.
Davi — Não é isso, Lucas. Relaxa. Só tô perguntando por perguntar.
Lucas — Sei... Perguntando por perguntar.
Fiquei encarando ele por um tempo, como quem quer arrancar a verdade no olhar. Davi era meu parceiro, mas a Mirella... Por mais insuportável que ela fosse, era minha irmãzinha. Se algum babacä ousasse fazer besteirä com ela, eu não pensaria duas vezes antes de resolver o problema.
Lucas — Olha só, Davi, vou ser direto. A Mirella é problema. Tu conhece. Não vai se empolgar com coisa que não dá pra controlar, não.
Ele não respondeu de novo, só ficou ali, pensativo, como se estivesse calculando alguma coisa na cabeça. E eu? Preferi encerrar o assunto. Não queria nem imaginar o que se passava na cabeça dele.
Levantei da cadeira, esticando o corpo com preguiça .
Lucas — Chega . Vou pra casa dormir . Já falei demais por hoje .
Davi me olhou e deu um sorriso fraco .
Davi — Falou, Lucas . Vai descansar .
Lucas — Vou mesmo . Tu vê se toma juízo, hein?
Ele riu baixinho, mas não respondeu .
Saí do bar com aquela sensação estranha . O dia ainda tava começando, mas minha cabeça tinha ficado meio cheia depois daquela conversa . Davi podia até ser meu amigo, mas eu conhecia ele . Sabia quando estava interessado em alguma coisa — ou alguém .
Entrei no carro de novo, mas antes de ligar o motor, parei por um segundo . Mirella, virgëm? Será mesmo? Pode até ser . Mas uma coisa era certa: ela era dura na queda . Quem quiser se meter com ela vai ter que ser muito macho pra aguentar .
Sorri sozinho, dando partida no carro .
Lucas — Coitado do Davi ...
Falei isso em voz alta, mesmo que ele não estivesse ali pra ouvir .
Dei uma acelerada leve , deixando o morro pra trás enquanto o sol subia, dourando as casas e as ruas estreitas . Mais um dia começava, e eu só queria esquecer daquela conversa e dormir em paz .
Mas algo me dizia que o jogo tava só começando . E, quando se trata da Mirella, o jogo nunca é fácil .