Capítulo Três

2203 Words
— Eu não entendo o professor de física — Raphael começou a reclamar, pouco tempo depois que entrei no carro. Era uma terça-feira ensolarada que tinha tudo para ser um belíssimo dia. Eu havia descansado, tomado um belo café da manhã e até mesmo havia me aquecido, dando uns pulinhos no mesmo lugar. — É sério, cara. Ele fica nos mandando prestar atenção no que ele está dizendo, mas ele mesmo se perde nas suas palavras. Ele fica encarando o nada e depois volta a falar, repetindo as coisas. Deve estar louco. Apesar das minhas expectativas, Raphael parecia disposto a começar o dia de maneira negativa, a começar pela empatia que havia esquecido em casa. O primeiro motivo para que ele não devesse chamar alguém de louco era que ele mesmo não batia bem da cabeça. Eu revirei os olhos e tentei falar do modo sutil. — Talvez seja por causa dos tais "problemas pessoais" dele — sugeri. O professor sempre tinha olheiras fundas e um olhar constantemente preocupado, como se a qualquer momento alguém fosse entrar na sala e dizê-lo que um ente querido havia morrido. Esse pensamento não me alegrou. Novamente fiz uma sugestão a Ra: — Talvez ele esteja preocupado com algo. — Hum — Ra disse, e eu sabia que seu "hum" significa que ele não acreditava que pudesse ser esta a causa do professor estar vago. Porém, ninguém tiraria da minha cabeça a ideia de que ele devia estar lidando com uma fase r**m. Naquele dia estávamos atrasados, o que significava que todas as vagas boas do estacionamento estavam ocupadas. Ra deu algumas voltas, até que desistiu, bufando, e estacionou em um lugar qualquer. Ao sairmos do carro, ele tirou um paninho branco do bolso e acariciou a lataria, murmurando que depois a recompensaria com um belo banho no melhor lava-jato da cidade. Eu apenas o esperei de braços cruzados, impaciente. Nesse primeiro horário, tínhamos aula de história juntos. Chegamos logo depois do sinal bater, e a professora e os alunos já estavam na sala, apesar de haver bastante barulho das conversas. Todos os alunos estavam sentados incorretamente em suas carteiras, conversando uns com os outros ou jogando chicletes para seus amigos. Nós atravessamos o corredor entre duas fileiras até a nossa mesa no fim da sala, enfrentando pés e mochilas que faziam a pequena distância parecer um campo minado. — Sr. Turner, não está se esquecendo de nada? — A professora perguntou a Raphael com seu olhar duro. Ele travou por um segundo no meio da sala, antes de se virar na direção do quadro. Ela apontou para a cabeça dele. Ra havia inventado de trocar seu boné por um chapéu preto, que ficava bem com seu cabelo loiro. — Ah, é — ele disse. Tirou o chapéu e colocou-o rente ao tronco, inclinando-se em uma leve reverência. — Desculpe-me, madame. — Alguns risos foram ouvidos pela sala, e Ra deu as costas para professora, caminhando para a carteira com uma careta que significava "argh, odeio ela". Algumas garotas soltaram risinhos. Raphael, o galã da turma. As mesas eram de duplas e ele se sentou ao meu lado. Todos os olhares voltaram para a professora, menos o de uma garota de cabelo castanho, que não tirava os olhos de Ra. Dei uma cotovelada nas costelas dele. — Ganhou uma admiradora — acenei levemente com a cabeça na direção dela. Ra encarou-a, deu um sorriso de canto e uma piscadela. Revirei os olhos. — Vê se não ilude a p***e garota. — Sei que você não tem pinta igual a mim. — Azar dessas garotas que se apaixonam por você. — Fala como se eu não tivesse coração. — Você tem? — Questionei com tom surpreso, fingindo que ouvia a informação mais inovadora do mundo. Dessa vez, foi ele quem revirou os olhos, e eu sorri. — Prestem atenção na aula, senhores — a professora advertiu a todos os alunos que ainda conversavam e nos calamos, fingindo estar sérios e prestando atenção no que acontecia. Porém, o que deveria ser anotações de Raphael, se tornaram mensagens no caderno com uma caligrafia horrorosa. Ra: E a garota? Matt: Da biblioteca? Ra: Por acaso existe outra? Matt: Presta atenção na aula ao invés de encher meu saco. Ra: Sou hétero. Respirei fundo e arranquei a folha, amassando-a. Raphael começou a escrever na seguinte, e arrastou o caderno até mim. Ra: Então... Viu ela? Matt: Não. Ela sumiu. Ra: Deve ter se transferido. Tem certeza que em nenhum momento assustou a garota? Matt: Acho mais fácil você ter feito isso. Ra: Ela deve ter se amarrado em mim. Matt: Ela te chamou de louco. Ra: Não precisa ter ciúmes. As garotas caem em cima de mim, sou um imã para elas. É normal. Ra: Mas essa é para você. Ignorei uma vez mais sua implicação, mesmo que em minha mente martelasse o pensamento que vinha me assombrando; a ideia de que eu realmente gostava da garota, e meu interesse era maior do que compartilhar minhas ideias e dúvidas cruéis sobre o livro — que cada dia que se passava sem resposta, diminuíam mais. O primeiro horário passou rapidamente ao que a aula interativa me distraiu e eu fui para a aula de matemática que, por sua vez, pareceu não ter fim ao que eu conversava com Ra pelo celular. O dia passou rapidamente, e logo eu estava na última aula: física. Quando o sinal bateu, esperei todos os alunos saírem para ir até o professor de física. Robert ajeitava seus papéis sobre a mesa, alheio ao resto da sala. Ele era mais novo que a maioria dos professores, apesar das olheiras o deixarem com uma aparência cansada e envelhecida. Tudo apontava para a confirmação de que algo o preocupava. Aproximei-me da sua mesa e ajeitei a mochila no ombro. — Professor? — Chamei-o, e ele levantou o olhar para mim, surpreso com o fato de um aluno querer conversar consigo após a aula. Percebi em seus olhos arregalados que eles eram tão escuros quanto os da garota da biblioteca. — Sim, Matthew? — Alguma coisa anda preocupando o senhor? Parece estar com a cabeça em outro lugar — questionei. Seus olhos ficaram mais vivos por um momento, talvez por perceber que estava deixando visível aos seus alunos que algo externo o incomodava. — Oh... Nada além de alguns problemas pessoais. Obrigado pela preocupação, Matthew — ele fechou sua pasta cheia de papéis e me deu um tapinha nas costas. Dei um sorriso fraco, mas que queria mostrar que eu o desejava forças para lidar com seja o que fosse que estivesse acontecendo. Eu deixei a sala, e quase bati de frente com Raphael. — Obrigado, amigo, mas não d****o te beijar — Raphael disse com um sorriso no rosto e eu fingi estar decepcionado. — Oh, por que não? Eu sou exatamente o seu tipo — pisquei os olhos algumas vezes ao que o encarava, numa tentativa de imitar uma garota que estivesse dando em cima dele. Senti-me desconfortável com o jeito que não era meu. Já Ra não pareceu se incomodar com a atuação p***e, nem mesmo com a personagem feminina. — Piscando os olhos assim que não é mesmo. Parece que tá sofrendo um ataque epiléptico nos olhos. Eu soltei uma gargalhada, rindo desenfreado, mas Raphael, sem reação, parecia estar genuinamente pensando aquilo de mim. — Voltando ao motivo de eu estar aqui e não no meu carro — ele disse quando parei de rir, estendendo o livro do Percy Jackson na minha frente. — Vamos comigo entregar o livro na biblioteca? Arqueei as sobrancelhas em surpresa. — Você ainda não o devolveu? — Por que a surpresa? Você sabe que evito aquele lugar ao máximo. Reviro os olhos e o encarei tediado. Apenas faria aquilo porque ele era a minha carona todo dia. — Vamos logo. Nós caminhamos pelo colégio vazio, ouvindo o faxineiro reclamar ou os últimos alunos que estavam ali conversarem. Nós entramos na biblioteca, dessa vez sem chamar a atenção de Guadalupe, que apenas continuou concentrada no seu livro. Raphael se aproximou do balcão onde ela ficava. — Vim devolver o livro, senhora Guadalupe. — Ele disse, porém, ela não respondeu nada, os olhos ainda emergidos nas páginas amareladas. — Dona Guadalupe? — Ele chamou de novo, e em seguida começou a sacudir a mão em sua frente para saber se chamava a atenção. — Cara, acho que ela foi substituída por uma imagem que meche os olhos como se lêsse. Segurei minha v*****e de rir. Eu não tinha dúvidas de que Guadalupe estava fazendo aquilo para irritá-lo, e decidi dar uma volta pela biblioteca no meio tempo para dar uma olhada nos livros. Passeei meus dedos pelas prateleiras, sentindo a textura de cada um dos exemplares. Então virei em um dos corredores, e ali estava ela. Nas pontas dos pés e com um dos braços esticado para cima, enquanto o outro estava cheio de livros e ela o usava como apoio. Seu cabelo preto estava no mesmo r**o de cavalo, com seus óculos e sobrancelhas franzidas em frente ao desafio de alcançar um livro que sua altura não permitia. Aproximei-me silenciosamente e peguei o livro para ela. — Ah, obrigada — ela disse, sorrindo ao ter o livro em mãos. Ajeitou os olhos e então olhou para mim. Surpresa cruzou os seus olhos, e eu sorri para ela. — Você. — É, eu. — Dei de ombros, de repente um pouco tímido. Mas não deixei isso abalar minhas palavras que esperavam para escapulir pelos meus lábios já a uma semana. — Sabia que te procurei a semana toda? — Ela começou a abrir a boca em surpresa, aparentemente, preparada para me questionar algo. Porém, voltou a fechá-la. Ao invés disso, deu um sorriso fraco que pedia desculpas. — Desculpe por isso — disse. — Problemas pessoais. Franzi as sobrancelhas. Esta também havia sido a resposta que o professor havia me dado. Ignorei a ideia que se formava na minha cabeça. Não era como se ter problemas pessoais fosse algo raro. Todos tinham. Muitos. — Por que tantos livros? — Perguntei, deixando de observá-la e abaixando o olhar para os livros nos seus braços. — Os que peguei semana passada já li. Ri fraco, incrédulo e surpreso. — Onde arruma tempo? A escola anda dando tanto trabalho que eu nem tempo para ler te... Eu preciso que você me explique aquele livro! — Ela riu pela minha reação. Eu também ri, porque imagino como meus olhos devem ter se arregalado, como sempre acontece quando me lembro de algo importante para mim. Cocei a nuca, sem jeito. — O Jogo do Anjo não é um livro que você simplesmente explica para alguém — ela respondeu. — Talvez você possa entender mais o autor ao ler as outras obras que fazem parte da trilogia. Ela mudou os livros de posição nos braços, e rapidamente estendi os meus para pegá-los. — Eu levo para você — eu disse, e ela sorriu, deixando que eu os tirasse de seus braços. Olhou para baixo e ajeitou os óculos. — Então tem outros? E você já leu? — Na verdade... Não. Fiquei traumatizada com o fim — confessou. Parecia envergonhada. Talvez fosse por não ter lido os outros, apesar de todos aqueles livros que preenchiam sua vida. — Não é a única. Fomos até a mesa de Guadalupe. Raphael estava escorado lá, à minha espera. Quando nos viu, surpresa cruzou todo o seu rosto e ele caminhou em direção à primeira estante que viu, de repente, interessado nos livros. Do jeito que parecia uma velinha que sentava no passeio no fim da tarde para fofocar sobre a vida alheia, eu sabia que ele iria me entupir de perguntas depois. Guadalupe olhou carrancuda para mim, como sempre, e depois deu um sorriso para a garota da biblioteca. Pisquei os olhos diversas vezes diante do acontecimento numa tentativa de processar o que eu havia visto. Nos três anos no colégio, nunca a havia visto sorrir. — É do primeiro ano? — Perguntei à garota. — Hum... — Ela parecia não querer dizer. Arqueei a sobrancelha, incentivando-a a falar. — Eu não estudo... Aqui. — Mas só alunos podem entrar aqui — questionei sem entender, as sobrancelhas franzidas. Ela pareceu ficar desconfortável, os olhos indo de um lugar à outro. Ela olhou desesperada em direção à saída da biblioteca, atrás de mim. Virei, mas não havia ninguém lá. Quando voltei meu olhar para ela, os livros estavam nos seus braços e ela passava por mim, indo para a porta. Segurei-a pelo braço. — Espere... — Pedi. Ela se virou e me encarou, com urgência no olhar. — Qual o seu nome? Ela titubeou ao responder-me. — Alina. Ela se virou e deu um passo, continuando presa pela minha mão no seu pulso. Seu olhar encontrou o meu, em um pedido que a deixasse ir. Pensei rapidamente em algo que pudesse dizer. — Você pode me encontrar amanhã na cafeteria da esquina? — Questionei. A indecisão dela era perceptível, mas com um aceno de cabeça como confirmação, eu afrouxei meus dedos em seu braço, que escorregou, e ela saiu apressadamente da biblioteca. Encarei a porta por onde ela havia saído em silêncio por alguns segundos, feliz em tê-la encontrado e em ter conseguido marcar algo. Eu agora tinha a certeza de que a veria. — Somente dessa vez eu perdoo o barulho. Da próxima vez vai ter que encontrar outro lugar para pegar livros para os trabalhos de literatura — Guadalupe disse seca, estragando meu momento feliz. Eu grunhi, decepcionado pela sensação boa ter sido tirada de mim. — Tudo bem, dona Guadalupe.
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