Capítulo Dois

2499 Words
"Cada livro, cada tomo que está vendo aqui, tem alma. A alma de quem o escreveu e a alma daqueles que o leram e viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro troca de mãos, cada vez que alguém desliza os olhos por suas páginas, seu espírito cresce e se fortalece."   Não precisei passar da 100° página para chegar à conclusão que Zafón, o escritor de “O jogo do Anjo”, era um gênio. Havia suspense, drama, terror, comédia e me deixava intrigado a cada página que virava. O cara tinha uma narrativa incrível! Terminei o livro domingo à noite. Na minha cabeça martelava o fim que não podia ser, de fato, o fim. Muitas perguntas rondavam minha mente, procurando suas respostas. Havia lido atentamente do início ao fim, mas era como se faltasse uma parte para que eu montasse o quebra-cabeça que Zafón havia construído no livro. Ao terminá-lo, por volta das dez, coloquei-o na mesa de cabeceira. Iria procurar pela garota da biblioteca no dia seguinte, no anseio de que ela me respondesse as perguntas que me assombravam. Estava bastante perturbado quando dormi. Sonhei com o personagem principal, David Martín. Eu andava pela sua casa, tranquilamente pelo segundo andar, quando escutei um barulho muito alto no andar inferior e desci correndo para ver o que era. Eu o vi parado no meio da sala, olhando para uma figura em chamas que caminhava em sua direção. Um homem. David estava assustado, sujo de sangue e poeira. Saiu correndo porta afora, enquanto o homem em chamas se tacava de um lado para o outro, batendo nos poucos móveis e tacando fogo em tudo. Ele me notou em pé no fim da escada e a subiu atrás me mim, colocando-a em chamas. Escondi-me em um dos quartos e tranquei a porta. Ela foi arremessada no chão quando o homem se tacou em cima dela. Ele veio atrás de mim. Estava lento, e agonizava pela dor que sentia. Aproveitando que ele era devagar, driblei-o e sai. A casa estava em chamas. Não havia saída. Eu não tinha muitas opções, e escolhi a que me pareceu melhor. Eu não queria morrer queimado, então pulei a janela, caindo num espinheiro. Senti que perfuravam o meu peito. Teriam acertado meus pulmões ou coração. O homem em chamas pulou pela janela, caindo logo ao meu lado e levantando o rosto para me encarar. Completamente deformado, me arrepiando. Não saia som algum de seus lábios, mas eu sabia o que ele dizia. Ajude-me. Ajude...   Cheguei à conclusão de que não havia dormido direito quando me encarei no espelho do banheiro, prestes a escovar os dentes. Ignorei as marcas embaixo dos meus olhos e esfreguei a escova na boca. Já estava atrasado e não tinha tempo a perder. Rapidamente troquei de roupa e peguei minha mochila. Desci as escadas e encontrei meu pai na cozinha, tomando café. Ele havia posto a mesa, e o cheiro de café se alastrava por todo o cômodo. Eu me sentei em uma das cadeiras e enchi uma caneca do líquido escuro para mim. Eu iria precisar. — Passou a noite acordado? — Ele perguntou, franzindo as sobrancelhas para mim e ignorando a tevê ligada em que passava o jornal por alguns segundos. Seus cabelos grisalhos e olhos cansados refletiam o tempo que ele passava fora de casa, trabalhando. — Só não dormi direito — murmurei em resposta. Ele deu de ombros. Tomei um gole do café e o gosto forte me despertou imediatamente, apesar de ainda não me dar qualquer animação para encarar o dia. A refeição foi feita em silêncio, já que o jornal estava interessante aos olhos de meu pai, e eu estava refletindo sobre o livro. Quando terminei de comer, me despedi e saí para a varanda da casa. Dona Gertrude estava sentada em uma cadeira, observando a rua com um dos seus cachorros deitado em seus pés. Encostei em um dos pilares da entrada, mas fiquei apenas alguns segundos parado ali até Raphael chegar. — O que são essas olheiras, cara? — Perguntou Ra quando entrei no seu carro. A manhã estava tranquila, o céu azul e limpo, em contraste com o meu rosto saído direto de Madrugada dos Mortos. Deixei meu corpo caiu pesado sobre o banco do carro, e suspirei. — O livro que a garota da biblioteca me deu. Me fez ter pesadelos. Ele riu e deu partida no carro. — Foi uma garotinha que te recomendou o livro e você ficou com medo? — Não é medo, Raphael. Eu só... preciso falar com ela. Raphael passou parte da viagem fazendo piadinhas sobre mim. Depois, começamos a falar sobre as aulas interessantes de história, com a voz imponente da professora que nos levava direto para uma ditadura, e a aula de sociologia, em que todos dormiam em seus livros mais rápido do que a professora conseguia dizer “Durkheim”. Ao chegarmos ao colégio, caminhamos tranquilamente pelos corredores lotados, com Raphael cumprimentando 1 a cada 5 pessoas, enquanto eu apenas cumprimentei Júlia, uma garota que tinha grande parte das aulas comigo.             Depois de passar em nossos armários, Raphael e eu nos separamos. Tínhamos aulas diferentes, e ele caminhou feliz para educação física enquanto eu me preparava para entregar meu trabalho m*l feito sobre Contratualismo e voar pela janela enquanto pensava na garota da biblioteca e David Martín. Tive que esperar até o terceiro horário, que era de física, para poder ir à biblioteca. O professor não havia vindo por "motivos pessoais" — nas palavras da vice-diretora. Ra estava em aula. Ele tinha biologia, a matéria na qual ele era pior. Para retorná-lo as provocações, mandei uma mensagem: Matt: Sem aula de física hoje. Boa sorte com sua uma hora de biologia. Ra: O quê? Como assim?! Não me diz que o professor não veio. Matt: Ele não veio. Ra: d***a! Só porque não tenho aula com ele hoje. Guardei o celular no bolso e entrei na biblioteca. Guadalupe olhou para mim, cerrou os olhos, e voltou a sua atenção para o livro que tinha em mãos, provavelmente um desses romances ridículos. Procurei entre as paredes de livros pela garota da biblioteca. Depois de dar algumas voltas e não vê-la em lugar algum, pensei que eu podia estar andando para um lugar enquanto ela andava para outro e, consequentemente, desencontrando-a. Sentei numa das mesas, observando a sala quase vazia. Um garoto de cabelos castanhos olhou na minha direção quando puxei a cadeira, que fez um som baixo. Logo depois, voltou a atenção para o seu livro. Observei, pelo o que me pareceu cerca de cinco minutos, as prateleiras altas e cheias à espera de ela aparecer. Cansado, levantei e fui até Guadalupe. Engoli em seco, de frente para a mulher absorta no seu livro, e pigarreei. Guadalupe olhou para cima com sua carranca habitual. —Hum... Alguma garota de cabelo preto e óculos passou por aqui? — Perguntei. — A única turma sem aula é a sua. Não há motivos para ter muitas pessoas aqui — ela disse seca, voltando-se para seu livro. Quase meti a mão em minha testa ao perceber minha burrice. Eu não havia pensado nisso. A garota não estaria aqui neste horário. Eu teria que procurá-la no almoço. Com os minutos que me restavam, comecei a escrever meu trabalho de literatura, inspirado pela memória fresca do que eu havia lido. Não demorou que o sinal batesse e eu fosse para a última aula antes do almoço. Porém, somente ao entrar no refeitório percebi o quanto aquela ideia era absurda. O alvoroço ao redor das mesas era caótico, a fila parecia sem fim e havia tantas garotas com o cabelo preto e que usavam óculos que eu teria que passar de mesa em mesa a procurando. E isso, definitivamente, não era um plano. Ra me cutucou, mas continuei observando o movimento no refeitório, agora, com a esperança esmagada. — Perdeu alguma coisa? — Ele perguntou. — Estou procurando... — A garota da biblioteca, já sei. Dei-lhe um t**a na nuca, irritado. — Se já sabia, por que perguntou, b****a? — Queria ver se admitiria que está procurando por ela. Ficou caidinho, né, Matthew? — Disse, me cutucando vezes seguidas nas costelas com o cotovelo e me dando um sorriso malicioso. Revirei os olhos. — Procurei por ela na biblioteca, mas óbvio, ela estava em aula. Eu preciso que alguém me explique o livro, e ela é a pessoa que pode fazer isso. — Oh, então a procurou antes. — Não estou a fim dela, cara. Enfia isso na sua cabeça. Ele tomou um gole da sua coca. Aproveitei o segundo de silêncio e olhei ao redor. Sem sinal dela. — Se você estivesse tão interessado em saber sobre o livro, perguntaria à Guadalupe. Eu ri. — Duvido que ela tenha lido algo além de seus romances ridículos. Sem contar que se ela tivesse lido, ficaria mais perdida do que cego em tiroteio — respondi num resmungo enquanto passava mais uma vez meus olhos pelo refeitório. Discutir essa questão com Raphael era inútil, já que uma das coisas que ele menos entendia era livros. — Desiste, cara. Ela deve ter faltado. E eu de fato desisti. Pelo menos por aquele dia. No final da aula, ao invés de ir para casa tive que ir para outro bairro, onde um tal de senhor Smith precisava de alguém que aparasse a sua grama. Além da viagem de 40 minutos de ônibus — já que Raphael não podia me levar até lá por estar presente na única atividade extracurricular que fazia —, eu tive que aturar um velho magrelo e quase sem cabelo sentado em uma cadeira reclamando que os médicos que fizeram sua cirurgia no coração não eram capacitados. E, por isso, ele não podia aparar a própria grama. Infelizmente, com o grande quintal que o velhinho tinha, eu levei mais tempo que o que eu desejava e ouvi todo o caso de quando ele operara um cachorro que tivera na juventude e que tinha se recuperado muito mais rápido do que ele. O fato interessante era que ele não tinha qualquer experiência com medicina, e que o cachorro havia vivido por mais 7 anos. Pelo menos, quando o sol já estava em seus últimos minutos, eu tive a felicidade de ter o dinheiro do trabalho depositado em minhas mãos e pude ir embora feliz. Em casa, hoje era dia do meu pai de fazer o jantar. Desde que minha mãe fora embora, 2 anos atrás, nós nos revirávamos para conseguir manter a casa organizada. Certamente, não era um trabalho fácil, e apenas notamos isso quando não a tínhamos mais e as roupas se atolaram nos cestos e o chão começou a manchar com a graxa da roupa do meu pai. Tirei o sapato na entrada e bati a mão em minha calça para tirar a grama que pudesse sujar o chão que eu havia limpado com tanto esmero no sábado. Ao entrar em casa e sentir o cheiro de comida, suspirei. Eu ainda sentia falta de minha mãe. Falta de comer sua comida, de que ela me perguntasse como havia sido a escola e se eu estava com dificuldade em alguma matéria. Ela era professora de ensino médio e conhecia inúmeros professores particulares. Assim, estava sempre preocupada com que eu estivesse aprendendo tudo — mesmo que eu nunca tivesse esse interesse profundo de aprender, nem tentasse tirar as melhores notas. Apenas agora, sem a sua presença, eu notava o quão dedicada ela era a mim, mesmo com o emprego e as tarefas domésticas que meu pai e eu pouco a ajudávamos. Agora, sempre que eu a visitava ajudava-a com tudo, mesmo que ela dissesse que não fosse necessário. Já meu pai não era tão presente. Passava grande parte do tempo no trabalho de mecânico e não conversava muito comigo. Eu sabia que era a forma dele de ser, e não me incomodava. Ele mostrava se importar de outras formas, fosse através de aprender a cozinhar minha comida favorita ou comprando ingressos para irmos a uma partida de hóquei no gelo, mesmo que ele não gostasse do esporte, apenas para me ver feliz. A luz da sala estava acesa, e a tevê ligada no jornal das 8, mas meu pai não estava ali. Deixei a mochila sobre o sofá e caminhei até a cozinha, de onde o maravilhoso cheiro de bacon vinha. Encontrei meu pai de frente à bancada, picando um pimentão verde com a experiência que havia recém-adquirido. — Oi, pai — eu disse, e ele desviou o olhar para mim. Seu olhar desceu para minhas roupas sujas. — Vá tomar um banho e coloque essas roupas no cesto antes que suje a casa inteira — ele disse, o rosto que mostrava desagrado com a sujeira. Ele, que era acostumado a estar sempre sujo, não conseguia chegar em casa e sequer tomar um copo de água sem ir tomar banho e tirar sua roupa para que ela não sujasse nada. Já eu não havia me apegado com tal vigor às regras. — Tá, tá... Eu já sei o procedimento. Eu peguei minha mochila e subi para o meu quarto, sem escolha senão deixar o delicioso bacon para alguns minutos mais tarde. Deixei a mochila ao lado da cama, peguei minha toalha e fui para o banheiro. Tirei a roupa e a joguei no cesto antes de ligar o chuveiro e finalmente sentir o suor do dia ir embora. Na ânsia de comer e na fome, tomei banho o mais rápido que conseguia. Ao sair do banheiro, vesti uma bermuda e uma camisa qualquer. Desci as escadas correndo e encontrei meu pai sentado no sofá, os olhos presos à tevê. Em suas mãos, o prato estava cheio de macarrão com molho branco com bacon e linguiça. Meu estômago roncou e eu caminhei até a cozinha, onde encontrei a travessa cheia de macarrão e, ao lado, uma salada de pimentão e uma garrafa de Fanta. Minha boca salivou e eu rapidamente peguei um prato e me servi. Caminhei até a sala, uma mão ocupada com o prato e outra com o copo cheio até a borda, e sentei no outro sofá para assistir à tevê com ele. O programa era sobre um cara que sobrevivia na selva e, apesar da minha falta de interesse no assunto, não me importei. Após o jantar, despedi de meu pai e fui para o meu quarto. Passava das 21h30 quando peguei meu caderno para continuar minha resenha sobre O Jogo do Anjo. No dia seguinte e durante o resto da semana eu passei na biblioteca e perguntei à Guadalupe sobre a garota com os mesmos atributos que eu havia perguntado anteriormente. Procurei pela garota da biblioteca no almoço, na saída e até no corredor dos armários, mas não havia vestígios nenhum de que ela houvesse aparecido. Não havia formas de perguntar às pessoas sobre ela, já que nem seu nome eu sabia. O único jeito era esperar que ela aparecesse, e rezar para que ela não houvesse saído do colégio. A cada dia que chegava e eu não a via, ficava mais louco. Mas eu tinha minhas dúvidas de que era apenas para saber sobre o livro — eu já havia entregado o trabalho, e logo receberia minha nota. Começava achar que talvez, apenas talvez, devesse levar em consideração o que Ra havia me dito.
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