Diário de Dorotéia.
Dear, Corine.
Sabe, Corine, eu já tentei me livrar dos pesadelos, das lembranças, mas parece mais forte que eu.
Eu sinto falta dos meus vestidos bonitos, dos cabelos cacheados que me faziam gostar do que via no espelho.
Mas eu me lembro deles dizendo o quanto o meu cabelo era bonito e sedoso, e temo que deixar os fios crescerem me faça ser vista novamente.
Eu queria usar novamente o meu batom.
Eu gostava de um batom vermelho, em alguns dias, Corine.
Eu usava um vestido branco longo, batom vermelho e cabelos soltos, eu me sentia radiante, mas eu estava de branco naquele dia.. de branco.
O vestido branco me faz lembrar daquele dia, o batom vermelho me faz lembrar do sangue e da dor.
Eu não gosto muito das pessoas, porque eu confiei em pessoas e elas me machucaram. Eu conhecia cada um daqueles homens, eu até estudei com alguns, fui amiga das irmãs deles.
Mas a guerra nos mostra o piior das pessoas.
Aqueles homens, antes de serem soldados.
Aqueles sete homens, eram somente jovens brincalhões, que faziam propostas indecentes e eu recusava. Fui criada para ser uma esposa, não para aceitar propostas indecorosas, mas quando a guerra começou, tudo ficou ainda mais explícito. Eles passaram a ser mais ofensivos. E a minha recusa os deixaram irritados.
Mas agora, eles não eram mais jovens arruaceiros.
Eram soldados e eles tinham o poder.
Eram eles que diziam quando podíamos sair.
Eram eles que forneciam a água, que protegiam os hospitais, as igrejas.
Eles se achavam no direito de pegar o que queriam, Corine. Só porque tinham armas e dependíamos deles.
A comida era racionada, e eles trocavam um alimento por s£xo.
A água era ligada e desligada para divertimento ou porque precisavam racionar.
Eram vários batalhões, mas eles, os homens que eu conhecia, eles eram responsáveis pela minha vila.
Deixaram-os perto de casa, para que fossem mais humanos com a população, mas não foi isso que aconteceu, Corine.
A guerra barbariza de todas as formas.
E eu lutei contra eles, porque não era isso que eu queria.
Aquele dia, Corine. Edmond queria que eu ficasse de joelhos na frente de todo o batalhão para que eu pudesse levar um galão de água para casa. Eu preferia morrer de sede.
Barney
Jess
Wayne
Royce
Jaime
Jamar
E Edmond
Eu sabia o nome de cada um deles, porque moravam na mesma vila que eu.
Eu tentei esquecer, eu juro que tentei.
Mas eu não conseguia.
Edmond era o comandante do batalhão. E eu já tinha tomado um sorvete com ele, mas só.
Porque ele só queria diversão, e eu não podia, porque o meu pai também era rígido, era amoroso, mas queria a filha, e filho bem casados.
Construindo uma família e sendo felizes, mas a guerra não deixou, Corine.
Eu queria que algo tirasse o nome deles da minha mente.
Eu queria não sentir.
Eu queria que ao menos o nome e o rosto deles desaparecessem da minha frente.
mas não consigo.
É por isso que me escondo de Salomão.
Eu não sei ainda se confio nele, porque os olhos dele me assustam.
E o que ele quer, eu não posso oferecer, ou posso?
Eu estou perdida.
Ainda estou presa na guerra.
E acho que só um soldado mais forte do que eu pode me tirar de lá.
Será que esse soldado é Salomão?
**********
Sabe, Corine. A psicóloga diz que eu preciso reaprender a confiar.
Que preciso fazer exercício de confiança.
Ela está certa, mas é difícil ainda.
Eu só confio em poucas pessoas.
Eu confio na Rebeca Mubarak, porque ela escutou os meus gritos e me acalentou.
Eu confio na Lucrécia Frank, porque ela é severa, mas me acolheu da maneira dela. Até achamos que Lucrécia é autista, os modos, os métodos. Ela não foge da rotina, não importa que aconteça, mas ela é uma senhora. E quando ela era criança, não havia diagnóstico como há hoje, e não faz sentido uma investigação agora, ou talvez seja só as características dela.
Ah, Corine
Confio em Paloma Cavalari também.Fomos amigas na Ucrânia e somos amigas aqui no Brasil.
Eu também confio em César, o marido de Paloma. Ele se esforçou para trazer ao Brasil, mesmo não me conhecendo, foi graças a ele que eu cheguei até Rebeca e Lucrécia, sem ele eu teria pulado de uma ponte.
Eu, por incrível que pareça, eu confio em Richard e Rosimeire Frank.
Eu sei, eu sei, Corine, que ninguém confia neles, nem mesmo Paloma que é filha deles, nem mesmo César que é o genro.
Até Lucrécia não confia no filho e na nora.
Rosimeire e Richard, eles são dois estelionatários. Vivem de aplicar golpes em qualquer pessoa.
Aplicaram um golpe na mãe de Callebe e Salomão.
Mas Rosimeire e Richard são bons na maneira deles.
Salvaram Rebeca.
Cederam o quarto deles na casa de Lucrécia para nós duas quando chegamos.
E Richard nem mesmo olha por muito tempo para mim, porque sabe que eu não gosto.
Eu me lembro que um dia me levantei só de bermuda e top, porque só eu e Rebeca estávamos.
Lucrécia estava no mercado.
Richard e Rosimeire estavam fora do país, mas chegaram de repente, porque um empresário americano queria mat@r os dois.
Ele se virou de costas quando me viu, e pediu desculpas.
Eu comecei a gritar, Corine. Foi mais forte que eu.
Esperei que ele se ficasse ofendido com os meus gritos
mas ele se sentou lá fora e me deixou acalmar para poder entrar em casa.
Richard podia ser um gatuno, aplicar golpes, viver atrás do dinheiro do Cesar Cavallari que era o seu genro.
Richard forjou um problema de saúde, César descobriu.
Rosimeire forjou um sequestro relâmpago, mas também foi descoberto.
E para completar, boa parte do salário de Rebeca eram gastos por eles, porque Rebeca os amava.
Richard não era um abusador, mas não tinha um pingo de problema em pegar dinheiro de uma mulher.
Callebe e Salomão odiavam Richard e Rosimeire, mas eu..
Eu aprendi a confiar em quem não me machucava, em que não me olhava com desejo, e Richard me tratava como seu eu fosse uma filha.
Era respeitoso, não nos tocava e tinha o máximo cuidado em não ficar nem na mesma sala com uma de nós sozinho.
Ele tinha muitos, muitos defeitos, mas tinha uma única qualidade, e era essa qualidade que me fazia confiar nele.
Corine! Eu estava me esquecendo.
Eu confio em Lindinalva, a mãe biológica de Estelinha.
Mas eu vou contar sobre isso depois.. Eu tenho meus motivos para confiar nela.
Conto depois, porque as lembranças estão me fazendo vacilar.
E hoje é dia de raspar a minha cabeça.
Quem faz isso, é Rebeca, mesmo a contragosto, mas eu ainda não estou pronta para me ver como gostava novamente.