Desenhar sempre foi a melhor ocupação de Devlin, considerando que ela tinha se tornando também muito boa com lutas, mas que havia tentado explorar um lado menos agressivo e encontrou nas formas e linhas uma maneira de deixar a sua mente trabalhar sem maiores danos.
Mesmo que os seus desenhos assumissem uma forma quase psicodélica por parecerem desconexos demais. As crianças e os adultos que ela desenhava não possuíam rostos, por mais que em sua imaginação ela os enxergasse perfeitamente, passar para o papel era uma tarefa impossível. Entretanto, isso era a sua única forma de fazer o tempo passar. Era assim que ignorava os loucos que passavam por ela naquela clínica, ou os médicos que tentavam a fazer falar mais do que uma frase inteira. Com um tempo eles desistiram de insistir e ela teve paz, porém, muito tempo livre para gastar em nada.
Devlin estava sentada no único banco do pátio, atrás de outras dez mesas redondas com guarda-sol aberto. O dia estava chuvoso, mas a árvore que sombreava o jardim a oferecia uma cobertura apropriada. Ela escancarou o caderno em seu colo e procurou por uma folha vazia, conforme procurava ao seu redor por uma inspiração. Havia dias em que as paisagens e os insetos se tornavam o seu foco de trabalho. Naquele dia ela queria algo diferente para desenhar.
Devlin escutou os sussurros antes que os passos chegassem até mim, mesmo assim, não levantou a cabeça. Sabia que era a hora dos seus remédios, e apenas aceitou o copinho descartável com água após colocar os comprimidos na boca. Soraya, a enfermeira chefe designada a sua ala, sorriu docemente, perguntando como ela estava se sentindo. Devlin satisfazia-se com o interesse da enfermeira com a sua minha melhora. Diferente de muitos médicos e enfermeiros ali, Soraya talvez fosse a única que tivesse esperança de uma recuperação. Não era como se Devlin se permitisse ter qualquer tipo de ilusão quanto a isso.
Soraya se afastou um momento depois, apressando-se para auxiliar um idoso que tentava se sentar em uma das mesas. Devlin retornou para o se desenho, batendo de leve com o lápis contra a cabeça, esperando por qualquer luz Divina.
Ela não se lembraria o que exatamente a fez erguer a cabeça. Talvez mais uma onda de sussurros que se embolaram com minhas sinapses, ou mais uma maré daquele mar de ódio que sempre subia até o seu coração de uma hora para a outra. Ou, quem sabe, uma intuição. De qualquer maneira, o seu olhar se prendeu em um furgão n***o que acabava de entrar na clínica.
Devlin não saberia dizer exatamente por que aquilo a alarmou. Não era de costume que os carros entrassem na clínica, os pacientes eram deixados do lado de fora e seguiam a pé, escoltados. Aquele carro parecia estranhamente inadequado para uma clínica onde o único entretenimento eram os gritos dos loucos.
Enquanto ela olhava fixamente, um homem deixou o carro. Estava usando uma roupa inteiramente n***a e afastava uma grande arma para a lateral do corpo. Era careca e musculoso, com os dizeres da polícia local gravados no tecido das suas costas.
O homem abriu a porta do carro e puxou uma corrente. Um segundo depois, outro homem surgiu, cabisbaixo, acorrentado em seus pulsos e tornozelos. Ele precisou de ajuda para descer, e o seu macacão azul-petróleo era como uma mancha abaixo do céu escuro. Seus cabelos eram curtos naquela época, trançados em bolos cilíndricos que eu descobri se tratar de dreads, a altura dos fios talvez não alcançasse mais do que alguns centímetros abaixo da orelha. Era mais curto na frente, formando uma franja de aspecto crespo que escorregava para os seus olhos. Parecia um grande homem que se perdera do caminho de casa, caminhando aos tropeços enquanto tinha cada um dos braços puxados bruscamente por outros dois homens.
Faltando um metro para que alcançasse o pátio, ele encarou Devlin. Naquele momento, ela sentiu o seu coração se apertar. Ele tinha os olhos castanhos, e os cantos dos lábios que eram grossos e ressaltados pela beleza afro eram ligados a duas cicatrizes largas que quase chegavam até as suas orelhas. Mesmo sem sol, suas cicatrizes foram iluminadas, exibindo cada repuxo e torção em sua pele preta. Havia algo de quebradiço em sua expressão tristonha, como uma ferida que jamais cicatrizava. Ele pareceu a Devlin como alguém que merecia ser protegido, e ela teria deixado o seu desenho de boa vontade para ajudá-lo. Seu olhar era completamente vazio.
Ele só desviou o olhar quando outra pessoa se aproximou. Devlin reconheci quem era. Doutor Havens, um psiquiatra dos casos mais graves. Ele nunca havia chamado a sua atenção até aquele dia, caminhando com um sorriso no rosto e uma determinação quase exagerada. Parou diante do homem e sibilou algumas poucas palavras, e isso foi o bastante para que o outro abrisse um sorriso. Só então Devlin entendeu a origem das cicatrizes em seu rosto. Seu sorriso era imenso, e insano... Ela não sabia se todos notaram, mas era um sorriso de puro ódio, como se estivesse gravando cada palavra que o doutor murmurava, como se quisesse se lembrar de tudo que havia sido dito para devolver em alguma vingança futura.
Quando uma chuva bem fina começou a cair, o homem foi arrastado para dentro da clínica, e não olhou para Devlin dessa vez. A jovem-mulher ficou de pé e fez menção de seguir até o doutor e perguntar o que estava acontecendo, mas Soraya a impediu, novamente parada ao seu lado.
— Não se meta — disse suavemente.
— Isso é maldade — resmungou Devlin, deixando o meu caderno no banco. — Não deveriam tratar uma pessoa ferida dessa maneira.
Soraya soltou um muxoxo, mas sorriu levemente.
— Você fala em maldade enquanto defende um homem que dizem que escalpelou a própria mãe? Ele só está aqui porque está esperando um julgamento... E quando o receber pode ganhar uma bela pena de morte.
Devlin enrugou o nariz. Ela não queria dizer em voz alta que conseguia defender muito bem qualquer pessoa que tenha ferido um familiar, porque ninguém nunca sabia o que de fato acontecia entre quatro paredes até que uma tragédia sucedesse. E sabia que se demonstrasse apoiar as atitudes do homem, poderia muito bem ser mantida com correntes e algemas como ele estava sendo. E ela já achava que as camisas de força eram claustrofóbicas o suficiente.
— Ele não parece o tipo de pessoa que faria algo assim.
O braço de Devlin foi agarrado novamente, sem delicadeza, e Soraya pegou o seu caderno enquanto a levava para longe das gotas de chuva que deslizavam sobre elas.
— Menina, você se esquece que o d***o era um anjo. — Ela disse, soltando-a por fim, apenas quando alcançaram o arco da porta que levava até o interior da clínica. — Se for esperta, você ficará longe dele.
Devlin apenas não sabia que pior do que a sua falta de esperteza, era a sua curiosidade. Ela queria saber como aquelas marcas foram feitas. Como ele havia chamado atenção o bastante para ser internado no mesmo lugar que ela. Mesmo quando ela passou horas desenhando o seu rosto, parte dela ainda era um poço de curiosidade.
Devlin não o encontrou nos dias que se seguiram. Ela tentou ocupar o seu tempo com qualquer coisa que não fosse a sua presença, mas o tempo todo se perguntava em qual parte da clínica ele deveria estar. Os participantes do programa de reintegração ficavam na primeira ala, só que eles não moravam na clínica. O tratamento perdurava durante a tarde, e a noite, aqueles eram levados embora, e ficávamos apenas Devlin e os outros; os loucos de verdade com seus gritos de indignação.
Devlin perdeu as suas esperanças de reencontro três semanas mais tarde, e arrastou os pés pelo pátio, carregando o seu caderno de desenhos por má vontade. Sem esperar, ela o encontrou sentado em uma das mesas que imitavam uma xícara. Ele estava diante de uma xícara de chá, a bebida parecia indiferente. Estava usando uma camisa de força, e olhava ao redor como se procurasse por alguma coisa.
Devlin tentou não parecer tão empolgada quando se aproximei, chamando a atenção dos três guardas às costas do homem. Enquanto ela se perguntava como um único homem necessitava de uma escolta tão extensa, ele voltou o seu olhar para ela e sorriu.
— Moça dos olhos tristes... — ele disse, mordiscando algo em sua boca. Devlin imaginou que falar com uma cicatriz tão grande fosse h******l, mas evitou a sua expressão penosa. Ela não gostava quando demonstravam sentir pena dos seus problemas e achava que aquele homem pensaria da mesma forma sobre a sua aparência. No geral, ele era bem bonito. — Sente-se, moça triste. Deixe-me apreciar a sua companhia.
Foi difícil controlar o sorriso que subiu ao rosto de Devlin, mesmo assim, ela se sentou. Devlin ignorou totalmente o olhar de reprovação que recebeu do guarda mais próximo. Por mérito próprio, ele se afastou, juntando-se aos outros dois que olhavam fixamente para o homem em sua frente. Devlin acreditou que consideravam que mesmo com seus braços amarrados contra o próprio corpo, aquele homem encontraria uma forma de espalhar toda a sua maldade para ela. Devlin quase deu risada da ideia. Como um homem poderia ser perigoso se nem mesmo seus braços conseguia usar?
— Posso fazer um desenho? — perguntou Devlin, já abrindo o caderno.
Várias páginas sobre o dia em que eles encontraram pela primeira vez passaram rapidamente enquanto ela folheava. Ele notou os desenhos antes que ela conseguisse escondê-los, pelo sorriso insano que lançou em sua direção.
— Tudo por uma moça de olhos bonitos e tristes — respondeu ele, aprumando-se na cadeira. O movimento fez com que os guardas dessem um passo. — Talvez queira saber como consegui essa cicatriz antes que comece o seu desenho.
Devlin apoiou a caneta no bloquinho, tombando de leve a cabeça. O retrato da curiosidade.
— Foi um acidente?
— Oh, sim — ele balançou a cabeça, desfazendo a expressão alegre. — Se é que você pode chamar de acidente a faca do meu pai. — Devlin franziu o cenho, completamente imóvel. Ele suspirou melancolicamente. — Papai era um homem terrível. Batia na minha mãe e irmã todas as noites depois do trabalho. Ele as culpava por sua condição financeira tão instável.
— Ele... — forcei a minha voz, tentando não parecer tão abalada. — Ele batia em você também?
Ele negou com a cabeça.
— Ele apenas me fazia assistir. — Desviou os olhos para algo às costas de Devlin e, institivamente, ela se virou. Não havia nada, mas quando voltou a encará-lo, seu rosto parecia ocultar uma leve sombra vitoriosa. Devlin não conseguiu entender. — Então, um dia eu o desafiei. Fechei os meus olhos enquanto escutava os gritos da minha mãe, e aí...
Devlin apoiou os cotovelos na mesa, segurando a caneta com as duas mãos. Curiosidade estava pronta para fazer com que ela explodisse. Devlin arqueou as sobrancelhas, esperando. Ele não disse mais nada, mas o seu semblante se tornara sofrido novamente. Ele parecia querer chorar, e isso partiu o coração de Devlin. Apenas ela sabia o que era conviver com um pai r**m. Ela entendia totalmente a sua aversão àquele assunto. Pensou em mudar a conversa para outra coisa mais fácil, como o desenho esquecido entre os seus cotovelos, mas ficou surpresa ao se ouvir dizendo:
— E então?
O homem derramou uma única lágrima, e Devlin observei como ela lentamente contornava o seu queixo com barba rala e de fios negros até desaparecer pela gola da camisa amarelada. Ela quase se ofereceu para enxugar aquela lágrima, só que o que ele disse em seguida a fez travar.
— Meu pai se virou em minha direção e disse: Por que você está tão sério?
A dor que Devlin sentiu foi quase física, e ela inspirei profundamente para controlar o seu horror. Ela ficou imaginando quanta dor aquele homem sofrera em sua infância, então se lembrei do que Soraya havia dito.
— Disseram que você pode ter escalpelado a sua mãe — ela falou casualmente, evitando tremer.
Ele não desfez a expressão triste, mas as lágrimas que haviam em seus olhos se secaram completamente.
— Não acredite em tudo o que dizem, moça dos olhos tristes — murmurou, mastigando novamente. — Apenas aqueles que já passaram por algo parecido sabem o que é ser injustiçado.
— Como assim?
— Ora — ele olhou em volta — você deveria saber.
Suas palavras fizeram Devlin estremecer.
— É assim que se sente? Injustiçado?
Ele considerou o que ela dizia, balançando a cabeça para afastar os cabelos do rosto.
— Não, não totalmente. Acredito que cada dor e tortura serve para um propósito. — Ele pensou, estreitando de leve os olhos. — Tudo parece tão errado e sujo, até o dia em que você é isolado do mundo em que conheceu e perde tudo aquilo que pensava ser seu, e não resta nada além das próprias paranoias da sua cabeça, e outros para gritar em seu rosto o quão desnecessário você é para o mundo em que vive. — Ele parou, tombando de leve a cabeça. Sua expressão se tornou dura, completamente séria. — Você consegue me entender, amor?
— Claro... — Devlin tropeçou nas palavras. Ele praticamente a estava descrevendo. — Eu entendo.
Ele sorriu de canto, a enorme cicatriz alargando-se naquele lado.
— Um dia o seu mundo parece cair em um caos infinito, as vozes falam mais alto, e você segue os seus comandos. Não por ser uma pessoa r**m, mas por não ter ninguém além daquelas pequenas pessoas internas para manter a sua cabeça no lugar. Você sabe que pode lugar contra elas, mas tem medo dos danos, então você aceita a ordem que elas derem. Por mais insensato que pareça. — Ele trincou os dentes. — O mundo julga você como um inútil, mas não te dá uma chance para provar o contrário. Você ainda consegue me entender, amor?
— Sim — sussurrou Devlin.
Ele sorriu levemente.
— Então, um dia qualquer, arrastam você para o mais fundo no inferno, e você conhece alguém que parece entender cada angustia e medo. Você não confia nessa pessoa por tudo o que escutou sobre ela nos corredores frios da sua moradia atual, mas sabe quão profundamente é a dor de alguém que não merecia estar onde está. — Ele desviou o olhar, encarando o guarda-sol acima de suas cabeças. — Tudo parece planejado. Como uma obra do próprio destino. Você encontra a única pessoa no mundo que parece conhecer você com um simples olhar, e nem mesmo sabe o seu nome.
Devlin piscou, tomando um fôlego para se encontrar novamente.
— Devlin... — ela falou baixinho, atraindo o seu olhar de soslaio. — Meu nome é Devlin Knox.
Aquele sorriso de canto voltou para o seu rosto, e isso a fez sorrir novamente. Devlin já estava se acostumando com o tamanho excessivo daquele sorriso por conta da cicatriz, e se encontrasse outro alguém sorrindo normalmente acharia estranho.
— As pessoas te chamam de Devil... ou melhor... diabinha?
Ela balançou a cabeça.
— Por que chamariam?
— A pronúncia — ele chegou mais perto da mesa, esbarrando a camisa de força no ferro gelado. — Devlin... — sussurrou, como se acariciasse o nome dela com a sua língua. — Lembra a pronúncia de Devil... que significa mal... demônio... Além de que os seus cabelos vermelhos cor de sangue e seus olhos escuros fazem com que qualquer homem se torne pecador.
Devlin abriu outro sorriso, prendendo uma mecha de cabelo atrás da orelha. Ele acompanhou o movimento atentamente.
— Faz sentido. — Ela falou, abrindo o seu caderno esquecido.
Ela fez apenas três rabiscos antes que ele falasse novamente:
— Agora os seus amigos podem te chamar assim.
Devlin parou de escrever, levantando de leve a cabeça.
— Não tenho amigos.
Ele estalou os lábios, abrindo um sorriso completo.
— Agora você tem um.
Os dias de escuridão apenas passavam depois de uma conversa com ele. E em uma noite, quando as lembranças pareceram arrastar Devlin para o fundo do poço, ela descobriu como fazer para que a porta automática do seu quarto permanecesse aberta. Ela usou um tubo de caneta no batente inferior e esperou. A falta de atenção do enfermeiro liberou a sua passagem, e ela caminhou por vários minutos até encontrar a porta que levava ao terraço. Para a sua surpresa, lá estava o seu amigo sem nome, como se estivesse esperando todo aquele tempo.
Ele pareceu feliz — na sua própria medida de felicidade — ao ver Devlin ali. Ele a convidou para sentar na beirada do parapeito, sentando-se ao lado dela de imediato. E contou mais detalhes sobre a sua vida. Sua infância não era um assunto em pauta, e ele não fazia questão de voltar, mas esclarecera sobre os crimes que fora acusado, sempre deixando claro que a polícia não investigara direito. Aquele homem era considerado um Psicopata sem razão. Era como uma criança que não teve a oportunidade de crescer, vivendo para sempre em um pesadelo onde seu pai a menosprezava.
Falando hoje, parece ainda mais estranho, só que Devlin achava que naquela época — cerca de cinco meses atrás — ela já estava se apaixonando por um anônimo. Ansiando pelas horas em que passariam a sós, e sonhando todas as noites com a possibilidade de uma fuga. Ele não mencionava nada parecido com ela. Na verdade, nas últimas noites, apenas brincava com ela em um de seus jogos favoritos: Cartas.
— Tire uma carta — ele disse, espalhando o baralho pelo piso de concreto.
— Você vai adivinhar o meu futuro? — ela brincou.
— Não seja estúpida — disse bruscamente, desfazendo o sorriso do rosto dela. Rapidamente, ele tocou na mão dela, olhando em seus olhos. — Apenas escolha uma carta, diabinha.
Diabinha. Esse apelido a derrubava e levantava ao mesmo tempo. Mesmo nos momentos em que ele a tratava com desdém, ou era rude demais, se demonstrasse qualquer tipo de afeto, ela se esquecia completamente do que pensava que era errado. Principalmente por levar em conta de que ele odiava ser tocado, e apelidos carinhosos eram o máximo de recompensa que a poderia dar pelos momentos de parceria.
— Tá... — resmungou Devlin, usando a outra mão para pegar a carta. Ela não queria quebrar o contato entre eles.
Devlin virou a carta e encontrou um homem inteiramente vestido com um conjunto chamativo. Ele sorria olhando para o lado e segurava uma espécie de pena dourada e rodeado por corações. Todas as noites ela encontrava a mesma carta.
— É o Valete de novo... — Ela deu um bocejo. — Esse é o seu nome? Valete?
Ele riu baixinho, pegando a carta com a mão que estava sobre a dela, e Devlin quase gemeu de frustração.
— Meu nome é Tristan — disse, guardando a carta no bolso do uniforme idêntico ao dela. —Mas não me importaria se você me chamasse de Valete.
Devlin deitou no chão e apoiou a cabeça com uma das mãos.
— Por que esse nome?
— Você não vê? — ele perguntou incrédulo, levantando-se e pulando o corpo de Devlin como se ela não fosse nada além de um obstáculo. Devlin girou para encontrá-lo subindo no parapeito, dançando comicamente, e ela deu uma risadinha. — O Coringa é a carta premiada. Imprevisível. Agente do caos! Ele é que há entre a alegria e a tristeza, a dor e o prazer. Só que quase ninguém se lembra do valete... Ele é aquele capaz de atrair aliados, de manipular, convencer as pessoas a apoiarem seus ideais — Ele parou diante da luz da lua, tornando a sua pele escura no mais profundo amulatado. — Ele é a própria morte disfarçado de esperança.
Devlin se sentou rapidamente, batendo palminhas.
— Se um dia você escapar daqui, precisará de um parceiro do crime. — Ela se levantou com entusiasmo. — Eu me ofereço.
Ele a olhou de cima a baixo, estreitando os olhos.
— Só os melhores trabalham para mim.
— E onde estão esses melhores que te deixaram apodrecer aqui dentro?
Tristan a lançou um olhar fulminante e pulou do parapeito para o terraço, aproximando-se como uma cobra.
— Eles estão vindo, amor. Só estão esperando o meu sinal.
Devlin ousou bufar.
— E qual sinal seria esse?
— Preciso tirar alguém daqui, antes que tentem me libertar. — Ele girou ao redor dela, puxando levemente uma das mechas do seu cabelo. — É algo terrivelmente perigoso. Você sabe, quando tudo acontecer, será um completo caos. E não teria tempo para pensar em nada além de mim mesmo.
— Quem você quer tirar daqui? — ela perguntou, esperançosa.
— Uma mulher chamada Sandy Fowler — ele disse, e ela quase abaixou a cabeça de vergonha. — Talvez se você conseguir tirá-la daqui...
Devlin não escondeu a sua raiva quando levantou a cabeça e disparou:
— Por que precisa de outra mulher?
Ele desdenhou com uma das mãos.
— Não preciso de uma mulher. — Ele suspirou cansado, olhando para Devlin. — Preciso de um dos meus gênios que foram presos neste lugar.
Devlin ficou sem palavras, chateada demais para falar qualquer coisa. Ansiosa demais para provar que poderia ser útil. Entretanto, Tristan não a deixou falar. Ele caminhou para longe, abrindo a porta que levava até a escadaria.
— Se você concordar com isso, posso recompensá-la de alguma forma... Algum dia.
Interesse cresceu no peito de Devlin.
— Vai me dar o que eu quiser?
Ele estava escondido pelas sombras, mas ela jurava que um sorriso esticava o seu rosto.
— Darei o que você merece.
Aquela foi a última conversa que eles tiveram até aquela noite, quando ela o encontrou apenas para dar uma resposta. Ansiedade exalou pelas mãos de Devlin, umedecendo-as o tempo todo. Tristan ainda estava segurando em seus ombros ao perguntar:
— Tudo começa essa noite, amor — O sussurro dele se misturou ao vento gélido da noite. — Nós temos um acordo?
Devlin poderia pensar em cada conversa que escutou sobre sua arte de manipular. Poderia encontrar uma maneira de não se deixar levar pelo brilho em seus olhos castanhos. Ainda assim, aquela parte dela que já fora arruinada desde a infância teve um novo propósito a partir daquele momento; tornar-se algo mais. E por mais que não sobrasse nada além dos seus ossos no final, ela assentiu com a cabeça.
— Temos um acordo. — Devlin confirmou, recebendo o sorriso de cicatrizes dele como o seu p*******o.
Tristan olhou para além dos portões da clínica e de volta para Devlin.
— Seja rápida, eles chegarão na próxima madrugada.
A brisa do inverno suspirou ao redor de Devlin. Um sussurro mudo que a amaldiçoou por estar tratando de um acordo com o próprio diabö, mas, em vez de oferecer a sua alma e qualquer resquício de pureza em meu corpo, ela estava ofertando de bom grado tudo o que restava de sua sanidade.