03 - Richy

3855 Words
Era a terceira reunião de Richard Wees naquele dia. E ele considerava que planejar reuniões e ter o azar delas serem feitas num dia chuvoso e muito frio, era um péssimo sinal de que nada terminaria tão bem quanto o esperado. Ele em geral não acreditava em dialetos populares e nem em questões de má sorte, mas um dia chuvoso ainda era um dia perdido, e ele odiava ter de admitir que nem sempre a sua intuição estava errada. O escuro terno que Richy usava ainda estava molhado em alguns pontos dos seus ombros. Ele teve que sair às pressas de casa para participar daquela reunião, para a qual ele sequer estava convidado. Há muito tempo Richy deixara de ter obrigações com aquela empresa, e seus interesses para além das longas e envidraçadas paredes daquele imenso edifício de vinte e três andares eram muito maiores do que apenas se sentar numa sala e observar enquanto as pessoas falavam e ele avaliava o que era melhor de ser feito. Naquela manhã, ele acordou atrasado, mas por seu mérito havia dormido muito tarde depois da bela surra que ganhou. As suas costelas ainda estavam doloridas e ele estava se esforçando para não ofegar pela dor no centro do seu peito, onde levou um chute tão forte que nem sabia como é que tinha conseguido respirar na hora. Richy nunca reclamava, é claro. Ele não frequentava hospitais, e tinha de contar com as poucas pessoas ao seu redor que conheciam a sua vida para lhe oferecer alguma ajuda. Ele observou a sua imagem refletida em seu relógio de ouro, querendo que as pessoas naquela mesa percebessem que ele já estava ficando de saco cheio, embora ele só quisesse averiguar se o seu rosto já não apresentava os hematomas abaixo dos olhos e nem o corte nos lábios. Tomar o café fumegante que lhe fora servido naquela manhã foi a tarefa mais árdua da vida de Richard Wees. Ele queimou a língua e notou com um tardio alarme que estava com aquela parte do corpo ferida também, e quando o café desceu por sua garganta, ele sentiu a ferida em sua língua chiar. Provavelmente teria prendido a língua nos dentes ao tentar travar o maxilar para receber um soco. Ele teve de apanhar muito para estar próximo o suficiente do seu inimigo. Naquela noite ele tinha esquecido uma de suas melhores armas, e seu cinto de utilidade era inteiramente formado por lâminas e armas de curto alcance, até mesmo para arremessar ele tinha de diminuir a distância com seus inimigos. Richy deveria estar totalmente focado na reunião que acontecia bem diante dos seus olhos, mas, em vez disso, ele estava pensando que contaria para os seus amigos de que eles precisavam aderir a alguns projetos de armas que poderiam facilitar a vida dele nas ruas de Detroit. Richy estava se arriscando demais ultimamente. A criminalidade não tinha um fim. E todas as noites ele chegava a se perguntar quanto tempo é que ainda aguentaria sendo o saco de pancadas para que as pessoas pudessem ter uma vida menos perigosa. Richard já não era um jovem de dezoito anos. O seu corpo de homem grande e musculoso não podia fazer os mesmos esforços de antes sem que sobrasse para trás uma dor nas juntas ou um incômodo na região dos ombros. Ele estava naquela vida há pelo menos dez anos. Uma década em que ele vagava pelas ruas da cidade durante a noite, observando pelos becos e vielas por qualquer um que estivesse cometendo alguma infração ou danos a vida de outros. Richard nem sempre gostava da imagem que via refletida diante dos olhos, como aquela que via sobre o ouro polido e muito caro do seu relógio; ele estava com olhos vermelhos, sombreados por olheiras, e uma expressão geral de muito cansaço. Ele já não dormia antes de tudo, e agora com a pressão da polícia em seus ombros, e o medo de deixar com que as pessoas mais humildes sofressem nas mãos da criminalidade, ele poderia contar nos dedos quantas horas é que dormia por semana. Não era saudável que alguém dormisse tão pouco. Não era saudável que alguém que arriscava a vida durante a noite não fizesse nenhum acompanhamento médico. Não era saudável que Richy ficasse cada vez mais debilitado para poder proteger aqueles que não podiam. Mesmo assim, todas as noites, ele se vestia com uma ridícula — porém altamente necessária — fantasia e se esgueirava pelas construções da cidade à procura de qualquer sinal preocupante. Havia dias em que ele não encontrava nada. Havia dias em que a cidade caia num marasmo quase suspeito. Aqueles eram os dias de folga de Richard Wees. E esses dias raramente aconteciam. Então fazia chuva ou um calor insuportável, ele ainda vigiava toda a cidade pela madrugada a fora, e por isso nem sempre conseguia acordar cedo para participar de alguma reunião i****a. Richy observava os papéis sobre a mesa, todos dispostos de maneira que ele avaliasse o projeto de exportação das produções ali realizadas, enquanto fingia escutar a sua equipe tentando convencer o cliente de que fechar os negócios para vender suas armas de fogo a ele não seriam possíveis no momento. Era dono da única empresa de armamento e defesa em Detroit, sendo uma das maiores dos estados unidos. Richy odiava armas. Nunca foi um grande fã de objetos que poderiam m***r de maneira sorrateira — embora seus gostos pessoais envolvessem tudo aquilo que fosse afiado e pontiagudo, como famas, estrelas ninjas, adagas, arco e flecha. E as armas de fogo sempre lhe causavam uma súbita sensação de estar voltando para uma cena desagradável de seu passado. É evidente de que nem tudo se pode escolher na vida, e o fardo de ter uma empresa que exportava sua mercadoria para cerca de 40 países era uma dessas escolhas que a vida tinha lhe feito. Os pais morreram há algum tempo. Ele já era um homem formado. Já tinha se especializado em pelo menos três cursos superiores, e dedicava a juventude em muitas festas e noites com mulheres do nível de modelos. Foi uma grande surpresa ter recebido a notícia da morte dos pais, e depois de muitos anos longe daquela cidade terrível, ele teve de voltar. Porque apesar de haver um CEO para comandar aquela empresa, ele ainda era o único presidente e acionista majoritário. Richy odiava Detroit com todas as suas forças. Há cerca de dez anos, quando retornou para assumir os negócios, ele via que a cidade estava nos seus primeiros meses de cair totalmente em ruínas. Ainda havia mais polícia nas ruas do que criminosos, mesmo assim, muita podridão acontecia por baixo dos panos. E boa parte das armas que sua empresa fabricava, era usada por aquelas mesmas pessoas que queriam causar a mais completa devastação nas ruas. Foram apenas dez anos para fazer uma cidade inteira se render às desgraças. Hoje em dia, não se podia mais ver crianças brincando nas ruas. A maioria delas teve de sair das escolas, porque aquele local foi o primeiro onde os ataques se iniciaram. Os mais velhos não se sentavam nas praças, porque tudo havia sigo degredado e pichado, querendo que a imagem da cidade fosse a sua completa destruição. Os mais ricos e favorecidos não frequentavam certos pontos da cidade, detendo-se em uma espécie de barreira que criaram para se diferenciar dos pobres e criminosos. Detroit foi dividida em duas. De um lado, as festas, os bancos, os prédios luxuosos que enclausuravam pessoas ricas, a cadeia repleta dos bandidos que se multiplicavam como vermes, separados pelo longo rio cortado por oito pontes antigas que formavam a ilha da cidade. No outro lado, prédios e fabricas abandonadas, pessoas com rostos marcados pelo sofrimento, e muita criminalidade. A situação só estava piorando. Ele fazia o que podia durante o dia, impedindo que muitas de suas armas fossem vendidas para compradores m*l-intencionados — muito dinheiro girava na mão deles ao entregar armamento para os criminosos que eram pagos para m***r outras pessoas ricas. No entanto, a situação sempre fugia de controle, e ele acabava tendo de interferir de outros modos. Neste momento, por exemplo, enquanto ele olhava pelas janelas do chão ao teto de sua sala de reuniões, observando o lado obscuro de Detroit erguendo-se como uma sombra além do rio, como um animal preparando-se para o ataque, ele escutava as contraposições de seu comprador. — Eu acredito que todos tem o direito de se defender — dizia o homem, batendo suavemente na mesa conforme falava. Richy detestava pessoas que queriam impor respeito através de atitudes ostensivas. Quando o homem batia na mesa, ele conseguia ouvir os anéis de ouro em seus cinco dedos tilintando o metal contra a madeira. Richy evitou pensar quantas pessoas teriam morrido para que a riqueza daquele homem pudesse lhe dar o capricho de ter cinco anéis de ouro. — Mas fica fora do meu alcance assegurar que apenas pessoas de bem vão até a minha loja. E, sinceramente, eu não entendo por que é que precisamos nos reunir para que eu possa receber as mercadorias pelas quais posso pagar. Vocês não são da polícia. Não precisam ficar perguntando para qual será o uso de tais armamentos. Ainda que sejam em grande quantidade, eu acho que o problema é meu para dizer a maneira que irei usar. Não sei por que é que vocês estão tão interessados em saber qual será a finalidade das armas. — Porque, senhor... Swift... — disse Richy, encontrando o nome em algum papel. Ele duvidava que estava usando o nome certo. Ele não queria estar ali, e não tinha o menor interesse de vender suas armas para o maior fornecedor das facções criminosas que se espalhavam por Detroit. E teve de conter o sorriso ao pensar que o homem tinha o mesmo sobrenome de uma cantora pop. Porque se não tivesse, então Richy provavelmente só estava usando aquele sobrenome por gostar de ouvir canções da mulher em segredo. — Nós não estamos apenas interessados no seu dinheiro. O senhor não é o único que compra nossas mercadorias, e com certeza não seria o último. Nós queremos nos certificar com essa reunião de que as armas não serão dadas de mãos beijadas para as pessoas que podem nos m***r a qualquer momento que decidirem que o lado norte é mais interessante do que o sul. Além do mais, a quantidade de aras que o senhor está querendo comprar é o suficiente para que cada adulto dessa cidade tenha pelo menos duas armas. Mesmo não sendo da polícia, é natural nossas desconfianças. O homem encrespou os lábios, como se retendo algumas palavras ofensivas. É claro que ele não teria coragem de dizer nada na frente de Richy. Era bem provável que se tivesse escolha, não teria feito aquela reunião bem no dia em que Richy estava disposto a impedir o comércio dos marginais. E, alie isto aos seus quase dois metros de altura, um corpo de ombros largos que se colocava em ternos e gravatas para esconder a brutalidade por baixo, e uma expressão no rosto de quem sempre poderia perder as estribeiras ao menor sinal de desrespeito. Richy não era um homem para se dizer quaisquer palavras, por isso o comprador hesitou, virando-se para olhar o CEO, que se mantinha na ponta oposta da mesa. — Senhor Smith... — frisou ele, lançando um olhar de censura na direção de Richy. Ele só podia fazer aquilo por ter, literalmente, carregado Richy em seus primeiros dias de vida. Era Larry Sanchez, seu padrinho, amigo de longa data de seus pais, e a única pessoa que Richy poderia considerar como sua família. — Precisamos que o senhor entenda que a situação é mais complicada do que parece. — O que há de complicado? — perguntou o homem. — Tirando as centenas de mortes que acontecem por dia, e o fato de que a polícia não está dando conta de manter todos os criminosos em suas rédeas? — questionou Richy, arqueando uma sobrancelha. — Ah, acho que o que há de complicado é apenas o quanto as taxas subiram depois da grande queda na bolsa de valores, e que é apenas o dinheiro que apesar de o senhor oferecer de modo tão árduo, acabe não sendo de todo interessante para fechar este negócio. — Eu sou um dos maiores comprados dessa empresa — disse o homem, apontando um dedo para a mesa. Richy observou o gesto, resistindo bravamente contra a vontade de arrancar aquele dedo fora. Será que o homem não tinha a menor consideração com as pessoas que enceraram aquela mesa e a mantiveram limpa? O seu dedo deixava carimbos de suor em cima da mesa escura, e Richy estava começando a querer resolver as coisas de outro modo. — Eu p**o o salário de vocês, muito mais do que imagino que as empresas que importam seus produtos podem fazer. Eu exijo um pouco mais de consideração. Não posso perder grandes negócios só porque vocês estão com medo de uma situação que perdura por anos. — Sim, senhor Smith, é uma situação que já leva muitos anos de negligência — disse Larry, soando calmo e paciente como sempre. — Nós não podemos deixar que a nossa cidade continue caindo em desgraça por conta de interesses pessoais. Nós não podemos continuar fabricando o material que estes criminosos usam para deixar nossas famílias e conhecidos como reféns. E se continuarmos vendendo para você, o que garante que não seremos a próxima empresa amanhã que estará destruída? — E o que garante que não sejam? — perguntou o homem, inclinando de leve a cabeça. — Eu recebo encomendas de meus compradores, eu repasso as encomendas para que vocês me retornem com o valor que esperam receber, e eu sempre p**o a quantia abusiva que solicitam, então... Como é que agora eu vou dizer aos meus compradores que as encomendas do mês anterior, que já estão atrasadas, não serão mais enviadas? Isso, meus senhores, é o motivo para que muitas fábricas e empresas tenham caído em ruínas. O fato de se negar a atender o outro lado, querendo diferenciá-los como animais. — E eles são animais — disse Richy sem pestanejar. Houve um clima muito tenso se espalhando pela mesa de reuniões, no que o restante da equipe, que se resumia em duas pessoas do seu setor financeiro e dois dos líderes de projetos de armamento, murmuravam entre si baixinho. — Precisam ser enjaulados o quanto antes na prisão. E não, senhor Smith, Swift, O c*****o-que-seja o seu sobrenome, eu não vou e eu não quero continuar vendendo mercadorias para você e aquelas pessoas do outro lado do rio. Por mim, todos vocês deveriam já estar presos ou expulsos dessa cidade. Não vou contribuir para que continuem fugindo da polícia. Essa é a minha palavra final. E acredito que ninguém fará objeções ao dono da empresa. O homem ficou da cor de um tomate, e os seus cabelos curtos e grisalhos pareciam ter se arrepiado um pouco mais do que já estavam. Ele usava um terno, mas dava para ver as tatuagens dos pulsos que chegavam até os seus dedos. Ele não era acostumado a usar aquela roupa para mais do que cruzar a cidade e tentar empurrar dinheiro nas mãos da equipe de Richy para obter armamento pesado. E com toda a certeza não era acostumado a escutar negativas tão diretas quanto aquela. Ele se ergueu num ímpeto, arremessando sua cadeira para trás com a raiva subindo-lhe ao rosto. — Está cometendo o maior erro da sua vida, senhor Wees — vociferou o homem, apontando um dedo na direção de Richy. As veias em seu pescoço estavam saltadas e mesmo de longe era possível ver que as gotículas de sua saliva espirravam pela fúria em suas palavras. — Aquelas pessoas podem ter problemas para lidar com pessoas ricas e esnobes como você. Ainda assim, são pessoas. Eu tenho amigos daquele lado. Pessoas que jamais colocariam as mãos em mim ou em qualquer amigo próximo. A verdade, senhor Wees, é que os pobres se uniram para acabar com pessoas como você, e é aí que está o seu medo. Richard Wees se ergueu, levantando-se tão vagarosamente que se poderia dizer que ele estava em câmera lenta. A verdade é que ele não se preocupava em agir com fúria para demonstrar o seu ódio ou a sua desaprovação. O comprador estremeceu ao vê-lo totalmente erguido, estreitando seus intensos olhos verdes em sua direção. Um pequeno sorriso começou a se curvar nos lábios de Richy, e ele muito calmamente apontou na direção da porta. — O senhor é livre para ir embora antes que meus seguranças acabem com essa pose de empresário que um drogado de beira de esquina como você nunca teve — disse ele em voz baixa e fria. — Mande saudações para os animais que você conhece, e pergunte a cada um deles se eu tenho medo de alguma coisa, caso o senhor não tenha percebido com seus próprios olhos. Só que ele sabia que o homem estava quase se sentando novamente pelo modo com que seus joelhos tremiam. Ele causava medo nas pessoas sem ter a intenção, mas havia momentos como aquele em que esse tipo de dom fazia a diferença. Por muito tempo ele esteve aumentando cada vez mais os valores das encomendas de armamento, querendo evitar que as pessoas do outro lado da cidade tivessem recursos para a compra. De alguma maneira que ele ainda não havia descoberto — e que suspeitava que se tratasse de pequenos golpes contra as contas bancárias mais recheadas daquela cidade —, aquelas pessoas estavam conseguindo cada vez mais dinheiro para comprar armas de fogo e aumentar o terror naquela cidade. Ele não queria mais ser parte disso. Esteve por dez anos tentando consertar o erro do seu pai ao criar aquela empresa numa cidade que sempre prometeu cair. Ele não queria mais ter a polícia em seu encalço, arrumando todo o tipo de desculpa em suas declarações de impostos ou notas fiscais só para demonstrar que estavam cientes de que boa parte das armas nas ruas eram gravadas com o nome de sua família. O homem diante dele também abriu um sorriso, mas foi algo tenso, e quase como uma careta. Ele fez menção de se afastar, recolhendo seus próprios papéis. Antes de alcançar a porta, percebendo que todos na sala continuavam sentados, ele se virou para Richy e disse: — Pode não ter medo agora, senhor Wees, mas você terá quando ele voltar. — Ele quem? — perguntou. — A única pessoa que pode colocar você e todas as pessoas ricas deste lugar numa posição muito desfavorável — riu-se o homem, abrindo a porta e acenando alegremente com uma mão. — Nos veremos em breve, senhor Wees. Em seu funeral. Com isso, o comprador partiu. Richy revirou os olhos, largando-se na cadeira mais uma vez. A sua equipe o observou, querendo entender o que é que ele estava planejando para ter agido daquela forma. Ele sempre estava se perguntando se as pessoas não percebiam o quanto tinham causado ativamente para a destruição daquele lugar. Todos em sua equipe possuíam pelo menos um amigo ou parente do outro lado da cidade. Mesmo assim, nunca lhes ocorrera que as vendas de seu trabalho eram o que realmente fazia com a segurança daqueles que estimavam se tornasse quase nula. — Alguém tem algo para dizer? — questionou Richy. — Eu tenho — disse Larry, cruzando as mãos abaixo do queixo. Ele sempre carregava aquela pose de interesse educado que geralmente tirava Richard do sério. — Richy, você tem que tomar cuidado ao se comunicar com essas pessoas. O motivo dessa reunião era justamente para que negássemos qualquer interesse futuro nas vendas de armas de fogo para o lado sul, mas você tinha que ter tomado um pouco mais de cuidado com as suas palavras. — Ah, me poupe, Larry — disse Richy com rispidez, gesticulando com a mão num gesto casual. — Você quer salvar o mundo ou continuar a contribuir para o seu fim? — Eu quero que as pessoas parem de morrer, Richy — respondeu ele, apertando a mandíbula. — Eu quero que as pessoas nessa sala não tenham de se preocupar todos os dias pelos parentes e amigos esquecidos do outro lado. Eu quero que os trabalhadores desta empresa, que não recebem o suficiente para esbanjar recursos como uma segurança reforçada, possam voltar para suas casas sem temer que alguns dos criminosos do lado sul tenham se escondido em seus lares. Eu quero que você, Richy, permaneça vivo para fazer a diferença nesta cidade, e você não pode começar estragando tudo. — Muito bem. — disse Richy em voz de desgosto, erguendo-se mais uma vez. — Continuem seu trabalho sem mim, já que eu estou sempre atrapalhando tudo. Larry também se ergueu, alcançando Richy antes que ele contornasse a mesa para chegar até a porta. A mão de seu padrinho foi até o seu peito, empurrando-o de leve. Richy olhou para baixo, vendo a pele preta e ainda firme do homem, apesar de ele já ter passado dos seus setenta anos de vida. Richy não teve coragem de empurrá-lo para longe, apenas ergueu os olhos de volta para ele. Larry, ainda com a mão contra o peito de Richy, na direção do seu coração disse: — Não se esqueça de que foi por falar algo errado que você perdeu tudo. Ele não se esquecia. Não havia como se esquecer. Todos os dias quando acordava ele se lembrava do som da risada de sua esposa, aquela com quem se casou assim que atingiu a maior idade. Ele ainda se lembrava de como os cabelos pretos dela combinavam com os seus, e de como ela tinha um sorriso largo e de covinhas, que a tornava a criatura mais encantadora de todo o mundo. Ele ainda se lembrava de como a expressão dela se congelou no puro choque ao perceber que tinha sido baleada, ao cair sobre ele e manchar suas roupas de sangue. Ele ainda se lembrava de como ela parecia querer dizer alguma coisa. Uma última coisa que ele não pôde descobrir. Ela morreu nos braços dele, e a única coisa da qual ele jamais poderia esquecer na vida, era do som do disparo e do sangue se empoçando contra os seus joelhos. — Não se preocupe — disse Richy em voz fria e odiosa. — Não há um dia sequer em que eu não sou capaz de me lembrar de como tudo aconteceu. Larry não disse mais nada. Richy sequer deixou que ele fizesse, já que abriu a porta com força, empurrando o velho homem para o lado, conforme se apressava para sair dali o mais rapidamente possível. Ele atravessou os corredores amplos das salas de portas abertas e vazias, encontrando boa parte de seus funcionários do lado de fora, alguns carregando papéis, outro segurando copos de café fumegante. Todo mundo cumprimentou a sua passagem com um aceno de cabeça, no que ele ignorou, cego pelo desejo de estar fora daquele lugar.
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